sábado, 29 de novembro de 2014

Vargas Llosa / Ucrânia: a paixão europeia



Fernando Vicente


Mario Vargas Llosa

Ucrânia: a paixão europeia

A agressão de Putin é só o primeiro passo em seu desafio ao sistema democrático ocidental, mas os ucranianos são livres e custará muito à Rússia arrebatar essa liberdade


29 nov 2014

Quem se sente desmoralizado com a construção da União Europeia deveria ir à Ucrânia; veria como esse projeto desperta uma enorme esperança em muitos milhões de ucranianos que veem na Europa unida a única garantia de sobrevivência da soberania e da liberdade que conquistaram com a gesta de Maidan contra o governo corrupto de Yanukovich e que hoje está ameaçada pela Rússia de Putin, empenhado na reconstituição do império soviético (embora não se chame assim). Veria também a serenidade estoica que mostra uma sociedade invadida por uma potência estrangeira, que se apoderou da quinta parte de seu território, e cujas fronteiras orientais, onde morrem diariamente mais voluntários do que indicam as estatísticas oficiais, continuam sendo atravessadas por centenas de blindados e milhares de soldados russos.
“Duzentos tanques só nos últimos dois dias e, com eles, uns dois mil militares, sem seus uniformes”, precisa-me o presidente Petro Poroshenko no gigantesco e pesado edifício que ocupa, construído para o Comitê Central do Partido Comunista da Ucrânia. “A Rússia não respeitou nem um só dia o acordo de paz que assinamos em Minsk. Mas a invasão russa serviu para nos unir. Agora, oitenta por cento do país rechaça a intervenção e está disposto a lutar”. Fala com muita calma, em um inglês cuidado –é um industrial próspero, roliço e amável e todo mundo conhece suas fábricas de chocolate– e está convencido de que a Europa e os Estados Unidos não permitirão a ocupação colonial de seu país.
Diz-se que há diferenças entre o presidente Poroshenko e seu primeiro-ministro, Arseny Yatseniuk, pois este último seria mais radical do que aquele. Conversando com ambos, separadamente, quase não notei. Ambos acreditam que a agressão russa continuará e que a Ucrânia, para Putin, é só o primeiro passo em seu desafio ao sistema democrático ocidental, que percebe como adversário essencial da Rússia e da ordem autoritária e imperial que preside; e que, nas atuais circunstâncias, o líder russo se sente encorajado pela impunidade com que atuou criando os enclaves pró-russos da Geórgia –Abecásia e Ossétia do Sul–, apoderando-se da Crimeia e infligindo uma humilhação ao presidente Obama na Síria, ultrapassando alegremente, sem o menor inconveniente, as “linhas vermelhas” que este estabeleceu.


O líder russo se sente encorajado pela impunidade com que atuou

No que Poroshenko e Yatseniuk se diferenciam é que o primeiro-ministro, estranho homem público, não trata de ser simpático a seu interlocutor e fala com uma franqueza crua que qualquer político consideraria suicida. “Ninguém vai à guerra pela Ucrânia, sabemos de sobra. Tomara que, pelo menos, nos deem armas para nos defender.” É magro, calvo, com óculos grossos de míope, muito magro e, poderíamos dizer, um asceta. Economista de destaque, dirigiu o Banco Central, foi Ministro da Economia e raramente sorri. “Não sou pessimista, mas realista”, afirma. “Os czares, Lenin, Stalin, trataram de nos fazer desaparecer. Agora todos eles estão mortos e a Ucrânia continua viva. O que devemos fazer, apesar da desigualdade de forças com a Rússia? Lutar, não há alternativa.” Pensa que se a Ucrânia cair, as próximas vítimas serão os países bálticos, a Polônia, as outras antigas “democracias populares”. “Putin não pode voltar atrás, seria morto na Rússia. Fez seu povo engolir que tudo isso é uma conjuração da CIA e dos Estados Unidos. E, por enquanto, os russos acreditam nele e estão dispostos a sofrer todas as sanções econômicas que forem infligidas pelo mundo democrático”. As sanções estão afetando seriamente a economia russa, mas Yatseniuk não acredita que isso diminuirá a vocação imperialista de Putin. “Seu principal objetivo não é econômico, mas político e ideológico”.
À cidade de Dnipropetrovsk, espraiada pelas duas margens do majestoso rio Dnieper, chegaram nas últimas semanas mais de 40 mil refugiados das províncias orientais onde há combates. O prefeito me diz que esperam outros 40 mil nas próximas semanas. Embora as migrações forçadas por causa da guerra sejam difíceis de quantificar, a cifra de ucranianos que abandonaram as cidades e povoados da fronteira já deve ter ultrapassado o milhão. Para acolher esse gigantesco êxodo há uma mobilização cidadã que apoia e às vezes supre o Estado precário, que vai se reconstituindo de maneira descontínua depois do cataclismo que representou a queda da ditadura de Yanukovich graças ao levante de Maidan.
Na enorme praça com esse nome há fotos de todos os mortos durante as ações. Falo com vários líderes da revolta e o que mais me impressiona é Dimitri Bulatov. Organizou as caravanas de automóveis que fizeram manifestações de repúdio pacíficas diante das casas dos líderes do regime e garantiu as comunicações dos rebeldes. Logo depois do início dos protestos, foi sequestrado, em plena rua, por indivíduos que –presume– pertenciam às “forças especiais” do Governo. Durante oito dias foi torturado: teve o rosto esfaqueado, cortaram metade da orelha e, finalmente, foi crucificado. Seus verdugos queriam que confessasse que Maidan era financiada pela CIA. “Confessei todos os absurdos que queriam mas, mesmo assim, estava certo de que me matariam”. Entretanto, no oitavo dia, misteriosamente, seus captores desapareceram. Hoje é ministro da Juventude e dos Esportes. Jovem e jovial, mostra sem o menor incômodo a orelha cortada, a grande cicatriz no rosto e as mãos trituradas. Informa com riqueza de detalhes sobre os esforços que fazem –ele e seus colegas do Governo– para acabar com a corrupção, ainda grande na burocracia oficial. Pergunto se é verdade que, assim que foi libertado do sequestro, foi lutar como voluntário na fronteira. “Sim, e minha mulher me disse que se voltasse vivo ela me mataria. Mas não o fez”. A mulher, que está a seu lado, jovem, bonita e risonha, assente: “Da, da” [Sim, sim].


Milhões de ucranianos que veem na Europa unida a única garantia de sobrevivência da soberania e da liberdade

O Exército ucraniano que enfrenta os russos renasceu praticamente do nada; é formado em parte por voluntários e, dada a precariedade de recursos de que dispõe o Governo, existe em boa medida graças ao apoio da população civil. Julia, minha tradutora, conta que ela e seus filhos são encarregados das coletas em sua rua para ajudar os soldados e que, toda semana, vão eles mesmos à fronteira, em veículos alugados, levando as provisões, mantas, colchões e dinheiro que permitem aos combatentes subsistir.
O único escritor ucraniano que li, Mikhail Bulgakov, hoje estaria orgulhoso da resistência e do heroísmo tranquilo de seus compatriotas. Ele foi vítima de Stalin e do regime comunista que censurou quase todos os seus livros; sua obra-prima,O Mestre e Margarida, só foi publicada nos anos setenta, muitos anos depois de sua morte. Em vez de mandá-lo ao Gulag, Stalin teve o refinamento de lhe dar um empreguinho miserável no mesmo teatro onde foram estreadas suas obras mais bem-sucedidas, para que morresse aos poucos de nostalgia e frustração.
Vou visitar sua casa-museu na bela ladeira de Santo André, onde há uma admirável igreja ortodoxa, pintores de rua e quiosques cheios de camisetas com insultos contra Putin e cilindros de papel higiênico impressos com seu rosto. A casa do escritor é pulcra, branca, cheia de ícones –suas seis irmãs e seus pais eram muito religiosos– e lá estão seus cadernos de estudante de medicina, seu título, seus livros publicados postumamente que ele nunca viu. Visitar essa casa, esse país, embora durante apenas cinco dias, me entristece, me alegra, me revolta. Uma visita tão curta nos enche a cabeça de imagens confusas e sentimentos exaltados. Mas de uma coisa estou certo: os ucranianos agora são livres e custará muitíssimo a Vladimir Putin arrebatar-lhes essa liberdade.
Kiev, novembro de 2014



sexta-feira, 28 de novembro de 2014

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Hans Ruedi Giger / Alien


Alien
Hans Ruedi Giger
ALIEN


Darkseed


Astro-Eunuchs, 1967 

creaciones


Brain Salad Surgery, de Emerson, Lake and Palmer, 1973 

imagenes

arte


Li I, 1974 

giger


Li II, 1974 

h r giger


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

México e Venezuela / Momentos terríveis


Rodez

México e Venezuela

Dois países importantes da América Latina vivem momentos terríveis no campo dos direitos humanos

     
É muito desagradável comparar horrores. Mas dois países importantes da América Latina estão vivendo momentos terríveis no campo dos direitos humanos e vale a pena destacar as semelhanças e diferenças entre ambas as situações. Quarenta estudantes assassinados no México e também na Venezuela. Dois países oprimidos pela violência, pelos sequestros, pela corrupção. O tráfico de drogas, com ramificações em todos os segmentos do Governo. A sociedade civil cansada, esgotada com tanta impunidade. O país chocado diante da morte violenta e da crueldade dos assassinos. Os jovens nas ruas protestando diariamente diante da violência contra seus colegas. Enorme riqueza e pobreza desesperadora. Desconfiança na classe política de antes e na de agora também. Corrupção, sempre corrupção.
Chávez e Maduro acabaram com todas instituições da Venezuela
Mas as terríveis semelhanças terminam aqui. No México, uma luta contra o narcotráfico, focada como um combate militar, resultou em uma violência sem controle. Na Venezuela, agora peça importante no tráfico mundial de drogas, os militares com seu famoso Cartel de los Soles não lutam contra o narcotráfico mas participam ativamente do mesmo. No México, os 40 estudantes foram assassinados em uma zona remota, onde aparentemente não chega o poder do covarde Governo central. Na Venezuela, os estudantes foram assassinados nas ruas das principais cidades do país, com pleno conhecimento e apoio do Governo de Maduro. No México, os culpados, os assassinos de fato e os autores intelectuais, estão presos e são repudiados por todos. Na Venezuela, os assassinos dos estudantes estão soltos, não há um único culpado e o Governo não expressou pesar por nenhuma dessas mortes.
Diante da morte dos estudantes, Peña Nieto demonstrou fraqueza e inabilidade política

O procurador do México mostrou-se oprimido, “cansado” de tanto horror, enquanto sua equivalente na Venezuela, a promotora Ortega Díaz, é uma feroz militante do partido do Governo que culpa os manifestantes. A defensora do povo chegou inclusive a justificar a tortura, com argumentos muito parecidos aos usados pelos militares em Guantánamo. A tortura na Venezuela tornou-se tão generalizada nas prisões que, até mesmo a ONU, que costuma ser paquiderme em seus pronunciamentos sobre direitos humanos, chamou a atenção sobre o que ocorre nos presídios.
Leopoldo López, líder supremo da oposição, é alvo de maus-tratos psicológicos, dentro de um isolamento prolongado e torturas primitivas com excrementos humanos, como nunca foi visto na violenta história do país. A Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra, onde o Governo de Maduro tem numerosos amigos, pediu a libertação imediata de Leopoldo López, sem que o Governo tenha feito um gesto para obedecer. Que eu saiba, no México não existe esse tipo de presos políticos, nem os presidiários são submetidos a torturas sistemáticas pelas mais altas autoridades governamentais.
Diante da morte dos estudantes, o presidente Peña Nieto mostrou fraqueza e inabilidade política, culminando em uma criticada viagem à China em vez de se aproximar de seus compatriotas de Guerrero. Diante do assassinato dos estudantes, Maduro os culpa como autores de “guerras econômicas”, “agentes da ultradireita”, “filhinhos de papai”, sem mostrar o menor arrependimento pela terrível repressão ocorrida durante seu Governo. Enquanto o México assume com dor e dignidade a tragédia ocorrida e busca explicações dentro de seu próprio sistema e seus enormes fracassos, Maduro e seus cúmplices culpam os paramilitares colombianos, Uribe, o império, por tudo o que ocorre no país. Inclusive Obama, que segundo eles conspira até para que não chegue o papel higiênico aos banheiros venezuelanos.
O México conseguirá superar a tragédia. Quem dera pudéssemos dizer o mesmo da Venezuela
Casa Branca da esposa de Peña Nieto causou indignação por fundamentadas acusações de conflito de interesses e corrupção, embora a señora diga que a mansão foi paga com sua renda como conhecida atriz de telenovelas. Na Venezuela, os “enchufados” (indicados políticos) não tinham –segundo eles mesmos confessavam– “onde cair mortos” quando chegaram ao Governo. Agora são banqueiros, proprietários de mansões protegidas na Venezuela, palacetes na Europa, edifícios na Flórida, iates, aviões, cavalos de raça, reservas de caça e é melhor parar por aqui. A fortuna de Diosdado Cabellos é calculada em milhões de dólares. Os jornais publicaram uma notícia, imediatamente silenciada, segundo a qual o ministro do petróleo Ramírez é investigado por possuir 40 (sim, 40) contas bancárias na Suíça. As maiores receitas petrolíferas da história desapareceram nos bolsos dos roubolucionários no Governo.
O México tem uma classe média em ascensão, empresários cujo sucesso é de âmbito mundial e continua sendo —apesar da violência— um destino turístico privilegiado. A Venezuela é um país que já não tem o dinheiro para importar tudo o que deixou de produzir nesses 15 anos. Os boliburgueses baseiam seu sucesso na corrupção e não em empresas. O turismo desapareceu depois do assassinato de alguns forasteiros desavisados.
Diante do assassinato dos estudantes, Maduro os culpou como “agentes da ultradireita”
Mas o mais importante para o México é que instituições sólidas, independentes da presidência, sobrevivem e, provavelmente, se tornarão mais fortes quando a tragédia de Gerrero for superada. Por outro lado, os Governos de Chávez e de Maduro acabaram, uma por uma, com todas as instituições da Venezuela, restando apenas um Executivo ineficiente e encurralado por problemas que eles mesmos criaram. O México conseguirá superar a horrível tragédia de seus estudantes mortos. Quem dera pudéssemos dizer o mesmo da Venezuela.
Maruja Tarre é professora na Universidade Simón Bolívar. Twitter @marujatarre.