O voo eterno de Ana Cristina César
Belíssima, intensa, sensual e elegante, Ana Cristina Cesar foi dona de um talento que, desde muito cedo, a enveredou para o universo das letras, e agora, trinta anos depois de sua morte, retorna às prateleiras das livrarias com uma edição caprichada reunindo seus trabalhos mais significativos, tanto na prosa quanto na poesia, em Poética, editada pela Companhia das Letras.
Os leitores mais jovens certamente não devem conhecê-la, mas com o lançamento desta antologia poderão se debruçar sobre os mais dicotômicos labirintos linguísticos e sensoriais da poética da autora nascida no Rio de Janeiro, em 2 de junho de 1952, e que morreu prematuramente em 29 de outubro de 1983, suicidando-se com trinta e um anos de idade, ao se atirar do sétimo andar na janela do apartamento de seus pais, na rua Tonelero, no bairro de Copacabana.
A vulnerabilidade, a beleza e o talento somados à sua trágica morte são ingredientes que atenuam cada vez mais o interesse pela obra da eternamente jovem poetisa, que foi um dos principais nomes da geração mimeógrafo e da poesia marginal na década de 70.
Começou a escrever poemas ainda muito cedo, quando menina, como podemos conferir na imagem abaixo, que pode ser encontrada no acervo do Instituto Moreira Salles, em São Paulo.
No fim dos anos 60, quando viajou para a Inglaterra, onde passou uma estadia em Londres, Ana C. aproximou-se ainda mais da literatura e adquiriu intimidade com a língua inglesa, trazendo em sua volta para o Rio obras de autoras como: Katherine Mansfield, Emily Dickinson e Sylvia Plath (outra grande jovem poetisa norte-americana que se suicidou aos trinta anos, em 1963).
Matriculou-se no curso de Letras, na PUC-RIO, e logo depois fez Mestrado em Comunicação, na UFRJ; retornando à Inglaterra onde estudou Tradução Literária, na Universidade de Essex, tornando-se também Mestre.
Começou a traduzir livros de autores estrangeiros como também a publicar suas próprias produções, neste caso, em revistas e jornais alternativos, na década de 70. Além de ter sido uma grande pesquisadora na área da literatura.
Mocidade Independente
Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima semmedir as consequências. Por que recusamos ser proféticas? Eque dialeto é esse para a pequena audiência de serão? Voei pracima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem umagraça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, porvocê, e furiosa: é agora, nesta contramão.
Noite de Natal
Estou bonita que é um desperdício.Não sinto nadaNão sinto nada, mamãeEsqueciMenti de diaAntigamente eu sabia escreverHoje beijo os pacientes na entrada e na saídacom desvelo técnico.Freud e eu brigamos muito.Irene no céu desmente: deixou detrepar aos 45 anosEntretanto sou moçaestreando um bico fino que anda feio,pisa mais que deve,me leva indesejável pra perto dasbotas pretaspudera.
Olho muito tempo o corpo de um poema
Olho muito tempo o corpo de um poemaaté perder de vista o que não seja corpoe sentir separado dentre os dentesum filete de sanguenas gengivas.
Dividida entre a prosa poética e a poesia, a produção literária de Ana C. apresenta uma mescla de ficção com autobiografia, influenciada tanto pela cultura pop, pela colagem quanto pela concisão e por uma estética de viés mais
cult.
Sob o apogeu da ditadura militar no Brasil, numa época de contravenção cultural fomentada, sobretudo, pelos jovens e diretamente influenciada pela geração beat e, posterior, a cultura hippie, nos Estados Unidos, Ana Cristina se destacou como uma grande figura feminina dentro da literatura brasileira do século 20, ao abordar temas como a liberdade sexual, a independência e a representatividade intelectual da mulher na sociedade.
“Ao fechar o livro que contava sua própria história, em 29 de outubro de 1983, Ana C. provocou uma comoção geral. Um acontecimento dessa ordem não afeta somente o que você escreve, mas a vida inteira; ainda mais quando com alguém de sua intimidade”, palavras do poeta Armando Freitas Filho, seu melhor amigo durante dez anos, e com quem se confidenciou ao telefone quarenta minutos antes de sua morte.
Ana C. havia lhe confessado estar se sentindo emparedada e que gostaria que o médico a receitasse algo que a fizesse chorar. A poetisa também comentou durante a conversa com Armando sobre o seu completo desânimo de viver. O amigo tentou reanimá-la e achou que o tratamento médico e a presença do enfermeiro ao seu lado lhe ajudariam a superar o atual estado de depressão em que se encontrava, sem pressentir que aquele seria o último dia em que ambos se falariam.
Com a reunião de seus escritos pela Companhia das Letras reacende-se o eterno brilho, a beleza e a jovialidade da bela carioca registrados em suas fotografias e que se refletem diretamente no sublime arsenal de sua autêntica poesia.
Poética é mais que um livro ou uma antologia comemorativa de uma notória artista de geração. É um resgate da essência de uma menina-mulher que jamais poderá ser esquecida de nossa literatura brasileira. E não poderiam ter dado título melhor para resumir o espírito sensível e precocemente criativo de Ana Cristina Cesar, que aos seis anos de idade, mesmo que ainda não completamente alfabetizada, ditava poemas para a sua mãe: poética.
PoéticaAna Cristina Cesar
Editora Companhia das Letras
504 págs.
Assista ao Booktrailer do livro com o poema Samba-cançãoabaixo: