segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

domingo, 28 de fevereiro de 2016

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Umberto Eco / “Não sabe, senhorita, que os ginecologistas também se apaixonam?”



“Não sabe, senhorita, que os ginecologistas também se apaixonam?”

Umberto Eco defendia que as críticas ao poder não são uma traição, e sim o sal que impede que a democracia se corrompa

Juan Arias
22 Fev 2016

Sempre que eu encontrava Umberto Eco, que acaba de nos deixar, não o via só como um grande pensador, semiótico, filósofo e romancista moderno, mas também como um grande provocador cultural e político.
Talvez por isso, em suas conferências e debates nunca faltavam jovens que o viam como um mestre sempre capaz de surpreendê-los e estimulá-los.
Eco se sabia amado por eles, mas nem por isso deixava de provocá-los. Como numa tarde em Madri, quando falava de semiótica e centenas de jovens universitários abarrotavam a sala. Ao terminar, lhes disse: “E agora podem fazer suas perguntas tolas, como sempre”.
Os jovens conheciam sua ironia e não se incomodavam com ela. Em seguida se levantou uma jovem que lhe fez uma pergunta também provocadora: “Como é possível que um semiótico, que precisa fuçar as vísceras de um texto para analisá-lo, consiga afinal apreciar sua beleza?”.
Rápido, Eco lhe respondeu, sorridente: “Não sabe, senhorita, que os ginecologistas também se apaixonam?”.
O pensador italiano, a quem o jornal La Repubblica, de Roma, definiu quando da sua morte como “o homem que sabia tudo”, sempre foi um mergulhador da contradição e fustigava as pessoas para as quais “a discordância era uma traição”.
Sua obra sempre foi a busca por contradições, nas quais encontrava a liberdade. Para ele, o aplauso ao poder ou a falta de sentido crítico conduziam ao que chamava de “fascismo eterno”.



Para Umberto Eco, o aplauso ao poder ou a falta de sentido crítico conduziam ao que chamava de “fascismo eterno”

Pensador e pesquisador incansável, cada obra sua era filha de uma busca minuciosa em arquivos e bibliotecas. Quando publicou O Pêndulo de Foucault, uma das maiores criações sobre o complô, uma livraria no centro de Roma colocou na vitrine 14 livros que seria preciso consultar antes de encarar sua leitura, tamanha a vastidão da sua erudição.
Depois de publicar sua História da Beleza, Eco escreveu, em 2009, História da Feiura. Ninguém antes havia se atrevido. Os monstros podem ser belos?, perguntava-se.
Numa entrevista televisiva, o filósofo voltou à sua proverbial ironia: “A feiura é mais interessante que a beleza”, afirmou. Isso porque, segundo ele, os cânones da beleza são muito limitados, ao passo que a feiura “é infinita”.
Educado quando criança em um colégio religioso, Eco, que morreria agnóstico, escreveu seu doutorado sobre Santo Tomás de Aquino, a respeito de quem disse, numa enésima provocação: “Ele me curou milagrosamente da minha fé”.
Libertário passional, Eco – seguindo os passos de Bertolt Brecht, que dizia: “Tristes os povos que precisam de heróis” – defendia que, mais do que combater os mitos, o importante era “não deixar que eles surjam”.



Libertário passional, Eco defendia que, mais do que combater os mitos, o importante era “não deixar que eles surjam”

Tratava-se de uma crítica às sociedades que criam e nutrem mitos e heróis, os quais acabam por escravizá-las. Ele sabia que os mitos não nascem por geração espontânea.
Nem Hitler, nem Stálin, nem o caudilho Franco, nem Mussolini, nem Mao, nem Hugo Chávez, nem o Che Guevara, nem Perón nem muitos outros ídolos autoritários nasceram e cresceram sem pais e mães. Foram alimentados e cimentados por seus seguidores.
Daí que o pensador italiano defendesse que a discordância política, a crítica ao poder da coloração que fosse, era, em vez de uma traição, o sal que impede que os valores da democracia e da liberdade se corrompam. Uma vacina contra qualquer variante do fascismo.
Por esses valores, Eco, que foi injustamente discriminado, sem receber o Nobel de Literatura, lutou sem nunca se dobrar aos mitos. Eram esses valores libertários que levavam os jovens a vê-lo como um mestre e um guia.
Nestes tempos em que velhos e novos mitos, autoritarismos e sectarismos ameaçam levantar a cabeça, sua morte empobrece e debilita a todos nós.
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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Quem ganhará o Oscar de melhor ator?

Leonardo DiCaprio
O regresso
Quem ganhará o Oscar de melhor ator?

DiCaprio, Redmayne, Fassbender, Cranston e Damon disputam o prêmio neste ano


O N. N.
Madri 23 FEV 2016 - 10:53 COT
prêmio de melhor ator nesta 88ª edição do Oscar será decidido entre Leonardo DiCaprio (O regresso), Eddie Redmayne (A garota dinamarquesa), Matt Damon (Perdido em Marte), Bryan Cranston (Trumbo – Lista negra) e Michael Fassbender (Steve Jobs). Redmayne já levou o prêmio no ano passado por seu papel em A teoria de tudo, Matt Damon conquistou a estatueta de melhor roteiro original por Gênio indomável e Cranston é o único que disputa o Oscar pela primeira, enquanto DiCaprio e Fassbender já foram indicados, mas saíram de mãos vazias.
O caso de DiCaprio, aliás, é bastante notável, já que recebeu quatro indicações em anos anteriores, e nesta quinta oportunidade desponta como o favorito ao prêmio de melhor ator – e não só pela insistência, mas também por protagonizar desta vez um filme rodado em condições extremas. Além disso, a crítica já reconheceu seu trabalho concedendo-lhe o Globo de Ouro, o BAFTA e o prêmio do Sindicato de Atores. No entanto, apesar desse favoritismo, o resultado da votação para o maior prêmio do cinema continua indefinido. Os integrantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas têm até esta terça-feira para emitir seus votos, mas o ganhador só será anunciado na cerimônia do dia 28, em Los Angeles.




quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Caroline Wozniacki / Bodipaint



Caroline Wozniacki
BODIPAINT
Sports Illustrated




terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Horóscopo / Peixes

Foto de Amandine van Ray

Horóscopo semanal de Susan Miller – De 20 a 27 de fevereiro


Peixes: você se sentirá mais romântico do que nunca






PEIXES
19 fev. – 20 mar. Seu parceiro vai lhe dar uma boa notícia essa semana. Pode ser que proponha um compromisso ou, inclusive, casamento. Vocês vão se sentir especialmente românticos e próximos. Se já for casado, viverão bons momentos e farão planos para largo prazo. Se estiver solteiro, esse compromisso e essa felicidade serão passados a um sócio ou colega de trabalho. Tome cuidado com os contratos que assine nesse período. O dia mais emocionante da semana vai ser 26 de fevereiro. Nesse dia, você vai receber uma grande notícia sobre um tema econômico ou um financiamento. Comemore durante o fim de semana.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Umberto Eco / Lucidez, suor, ideias e uísque

Umberto Eco

Umberto Eco 

Lucidez, suor, ideias e uísque

O discurso do escritor Umberto Eco era ao mesmo tempo apocalíptico, risonho e integrado




JUAN CRUZ
Madri 20 FEV 2016 - 08:26 COT



Umberto Eco era uma inteligência imparável, um homem imponente. Sua memória parecia sempre uma máquina nova, seu discurso era ao mesmo tempo apocalíptico, risonho e integrado; não deixava que a melancolia que persegue todo semiótico rompesse a velocidade do pensamento, e ria do mundo enquanto explicava sua podridão. Foi assim com seu último livro, Número Zero, uma sátira simultaneamente redonda e pontiaguda sobre o ofício do jornalismo nos tempos da Internet. Ele não escrevia para divertir, e sim para se divertir, e nunca deixou de inventar fórmulas para desmentir a solenidade dos poderosos, em seu país e em qualquer lugar, e dos lugares-comuns, que ele abominava.
Nesse livro, Número Zero, incorporou algumas das suas colunas, que chamava de bustine [alusão às cartelas de fósforos, usadas frequentemente para anotações rápidas], para construir um afresco insolente, porém real, dos perigos que o jornalismo enfrenta ao relatar a realidade. O jornalista pode ser corrupto sem sabê-lo ou sabendo, e pode ser extremamente farsante e ignorante, pode ser usado pelo poder e também usá-lo, e as novas tecnologias das quais dispõe não necessariamente irão melhorar sua relação com as velhas bases sobre as quais o ofício se sustenta. O resultado dessa mescla de imaginação e colunas incluiu Mussolini e Berlusconi numa espécie de afresco divertido e inquietante, que nós, os jornalistas, não lemos com vergonha alheia, e sim com a vergonha própria de estar perante uma análise e um aviso do abismo que nos inquieta.
Foi no lançamento desse livro, no ano passado, que vi Umberto Eco pela última vez, na sua casa de Milão; em anos anteriores já havíamos nos visto ali, certa vez experimentando, para o fotógrafo Jordi Socias, um [chapéu] Borsalino, e rindo e bebendo uísque e comendo espaguete em seu restaurante favorito, o Quattro Mori, ao lado da sua casa espaçosa, cheia de livros bem ordenados, sentados diante de uma mesa para seis na qual estávamos três; mas as mãos de Eco, o que ele revelava, sua presença, então aparentemente asmática, seus olhos atentos e vivazes, que penetravam no que você ia lhe dizendo, dominavam tudo; precisava, como os grandes homens imperiais, de meia mesa só para ele; às vezes anotava as respostas que você dava às suas perguntas, mexia as mãos para frente como se se apoderasse delas, e quando não anotava tirava seu lenço grande e branco para limpar o suor abundante que marcava sua testa espaçosa. Nesse momento, há alguns anos, falávamos da Europa, do seu futuro, dos Erasmus [programa europeu de intercâmbio educacional], da cultura sobressaltada de um continente que estava se isolando apesar de acreditar que se abriria, e ele havia inventado uma fórmula para continuar bebendo uísque: provavelmente o médico havia lhe aconselhado a tomar menos uísque, ou a só tomar uísque se quisesse consumir álcool. E essa receita foi suficiente para que continuasse bebendo uísque, num copo curto, sem gelo, como se acompanhasse o espaguete com algum remédio.
Isso faz alguns anos. Desta vez, no inverno [europeu] de 2015, Umberto Eco já bebia menos, ria menos, estava mergulhado no ensimesmamento dos que possivelmente pensam em uma obra nova, ou em alguma melancolia não resolvida. Desta vez também fomos ao Quattro Mori; e vieram conosco sua tradutora espanhola, sua aluna Helena Lozano, que trabalhou com ele e compartilhou do seu riso e seu ensinamento até o esgotamento, sua ajudante Manuela Melato e o marido dela, o pintor mexicano Fernando Leal. Não era raro que nos almoços, desde sempre, Umberto Eco se ausentasse de vez em quando, apesar de sentado à mesa, como se as luzes da semiótica e as outras luzes com as quais olhava a vida o levassem por caminhos interiores, por meandros que considerava complexos ou intrincados. Então se calava e nós continuávamos falando, sobre gatos, principalmente, pois Leal havia descoberto associações insólitas entre os bichanos e sua arte. Eco de vez em quando retornava à cátedra da mesa e apontava, corrigia, indicava elementos com os quais completava as metáforas do artista. E depois se calava outra vez, atento a tudo, mas distante de tudo nesses instantes.
Em julho do ano passado um piadista agourento sei lá de onde anunciou na Internet, como se perpetrasse uma vingança, que Umberto Eco havia morrido. Quem me alertou da notícia, que era afinal rematadamente falsa, foi Milena Busquets, que desde menina se criou perto da presença de Eco; sua mãe, Esther Tusquets, foi a editora espanhola, a grande amiga do semiótico italiano; de modo que compartilhamos os primeiros minutos dessa incerteza como se se tratasse da notícia impossível da morte de um familiar muito próximo; de fato, Umberto Eco é, desde Apocalípticos e Integrados, quando nossa geração estava na universidade, até este Número Zero, um filósofo da nossa própria idade ou natureza, um homem deste tempo que sempre foi lucidamente contemporâneo, raivosamente útil para afiar o olhar distraído que aconselha um dos seus mais conspícuos amigos espanhóis, Juan Cueto, ou para destruir os lugares-comuns da má inteligência. Era uma luz que levava nosso olhar aonde quisesse. Outro de seus seguidores mais fiéis, o espanhol Jorge Lozano, o atraiu muitas vezes para a vida e a realidade espanholas, de modo que Eco era tão europeu, tão mundial e tão espanhol que, quando você o via ou o procurava, ele sempre tinha algo a dizer sobre o que acontecia na Espanha, porque sempre teve algo a dizer sobre o que acontecia em qualquer lugar.
Era uma mente poderosa; quando publicou O Pêndulo de Foucault, que não teve a relevância popular insólita alcançada por seu mais genial divertimento, O Nome da Rosa, decidiu ir descansar ao lado de Cuomo, rodeado de silêncio e de ginastas ricos; mas ele seguia sua rotina, seu uísque, seu suor pausado, sua vida intelectual saníssima dedicada à destruição sistemática (e semiótica) dos lugares-comuns. Para isso, como o espanhol Fernando Savater, como o já citado Cueto, como Jorge Luis Borges, utilizava apólogos ou perguntas, e depois ria quando você ficava sem palavras, tentando buscar internamente o significado das palavras que ele colocava para que você caísse nos poços abertos por sua inteligência. Depois repousava, olhava para você como se estivesse indo embora, e continuava lá, com sua mão atrás do assento, atirado nas poltronas como se estivesse respirando os pensamentos de um ensimesmado risonho.
Naquele momento em que nos deram a notícia falsa da sua morte, acreditei que essa falsidade conjuraria qualquer susto semelhante no futuro. Mas agora morreu, morreu Umberto Eco e senti que o ouvia rir sozinho quando ficava ensimesmado no Quattro Mori. Um sábio que sabia todas as coisas, simulando que as ignorava para continuar estudando.


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sábado, 20 de fevereiro de 2016

Vargas Llosa / O grande teatro do mundo

Shakesperare
Poster by T.A.

O grande teatro do mundo

Tudo está em Shakespeare, sua época e a nossa, a grandeza da literatura e os milagres que a arte realiza na vida das pessoas



MARIO VARGAS LLOSA
20 FEV 2016 - 18:00 COT


O teatro é, como as touradas, uma arte extremista, na qual uma obra é muito boa ou muito ruim, mas não existe um meio termo. Madri, por apenas quatro dias, teve a oportunidade de ver uma montagem fora do comum, concebida por um diretor genial, o irlandês/inglês Declan Donnellan, de uma tragicomédia de Shakespeare: Conto do Inverno.
Há um bom tempo eu não via um espetáculo que me deixasse praticamente em estado de transe ao longo das suas quase três horas de duração. Nem mesmo outra montagem do mesmo diretor, Medida por Medida, de Shakespeare, que era também notável e foi interpretada por uma companhia de atores russos, me deu essa sensação de beleza e originalidade, de destreza e perfeição absoluta que, estou certo, todos os que assistiram a essa representação no Teatro María Guerrero nunca esquecerão. (Direi, de passagem, sobre a alegria que me deu comprovar, na noite em que assisti, o grande número de jovens e adolescentes que lotavam os camarotes, galerias e a plateia.)
Shakespeare
Fernando Vicente











Apesar de Donnellan tomar muitas liberdades com o texto original, aposto o que for que se o grande Bardo inglês visse o que fez o irlandês/inglês com seu Conto do Invernoteria ficado tão feliz como nós, os espectadores. Porque a recriação dessa obra idealizada por Donnellan não faz mais do que revelar as potencialidades ocultas em seus versos e em sua melodramática história, o que nela existe de universal e de atual. Logo após vê-la, reconstruída em um palco pela sabedoria do diretor, corri para lê-la novamente e foi toda uma revelação observar que, de fato, com sua fantasia arrebatadora e suas delirantes coincidências e jogos de palavras, com suas personagens extravagantes e até sua geografia fantástica (na qual a Boêmia tem um porto marítimo), o Conto do Inverno é nada mais nada menos do que um testemunho sobre nosso tempo, nossos conflitos, uma obra que denuncia o absurdo e as velhacarias nas quais se move nossa vida política, os transtornos sociais provocados pelas injustiças cometidas por um poderoso mais ou menos imbecil, e, apesar de tudo isso, como em alguns momentos a vida pode ser bela, para todos, os ricos e os pobres, as vítimas e os algozes, quando se ama, se dança, se canta, e um grupo de amigos e casais jovens se reúne para, por algumas horas, na embriaguez e no gozo da festa, fugir da rotina, da servidão e misérias cotidianas.
Todos os atores são tão bons, cumprem tão rigorosamente com sua função específica, encarnam com tanta eficácia seus personagens, que parece injusto ter que destacar a formidável interpretação de Guy Hughes como o paranoico Leontes, rei da Sicília, sobre quem repousa boa parte da obra. Ele o faz magnificamente, com uma versatilidade que lhe permite passar do cômico ao trágico, do sentimental ao épico, com a mesma desenvoltura com que chora, geme, se desespera e gargalha. Parece mentira que um ator possa se metamorfosear de tal maneira e tantas vezes no decorrer da obra. O ciúme exacerbado desse demente, o rei Leontes, movimenta uma história que, começando na candente terra siciliana, percorre meia Europa, provocando sofrimentos e catástrofes múltiplas e mostrando uma heterogênea humanidade de pastores, pícaros, empregados, nobres, senhores, comediantes e trovadores ambulantes, muitos deles com nomes e reminiscências de mitos gregos. O fascínio é tamanho que, em dado momento, temos a impressão de ver o mundo inteiro ao alcance de nossos olhos, um pequeno universo em que, como O Aleph de Borges, toda a humanidade vivente se coloca ao nosso alcance.
Shakespeare










Conto de invernodenuncia o absurdo e as velhacarias nas quais se move nossa vida política

E os mesmos elogios podem ser feitos sobre a iluminação, a música, o figurino. Alguns cubos de madeira servem para que Nick Ormerod, o cenógrafo, arme e desarme cenários que, apesar de toda a simplicidade de sua estrutura, nos fazem andar por suntuosos palácios, ermos, campinas onde pastoreiam os rebanhos, aldeias de camponeses, festas de rua.
Neste ano são comemorados os quinhentos anos das mortes de Shakespeare e de Cervantes. Espero que o autor de Dom Quixote, o livro emblemático de nossa cultura e nossa língua, esse homem simples, bom e trágico que seus contemporâneos ignoraram e maltrataram, receba homenagem semelhante à que Declan Donnellan prestou ao autor de HamletMacbethRomeu e Julieta e tantas outras obras-primas. Porque uma montagem como a realizada com Conto do Inverno nos mostra, de uma maneira vívida e imediata, apelando diretamente a nossa sensibilidade e fantasia, a incrível riqueza e variedade da imaginação com que aquele obscuro comediante (de quem não sabemos quase nada, além do fato de ter escrito inúmeras obras-primas absolutas, e que se retirou dos palcos e da literatura quando ganhou bastante dinheiro para viver como um burguês, de sua renda) criou um mundo tão rico e diverso como aquele em que vivemos, mas sempre belo, apesar da violência que o atravessa e as tragédias que sofre, sempre belíssimo, graças à música e à magia das palavras que o formam, essa taumaturgia que transforma a tristeza em alegria, o ódio em gozo, a brutalidade e o terrível em generosidade e grandeza. Tudo está em Shakespeare, sua época e a nossa, o que nelas existe de idêntico e de diferente, a grandeza da literatura e os milagres que a arte realiza na vida das pessoas, assim como a maneira em que a vida dos humanos destila ao mesmo tempo felicidade e desgraça, dor e alegria, paixão, traição, heroísmo e vileza. Toda a incomensurável riqueza do mundo fantasiado por Shakespeare vem à luz de maneira ofuscante e esplêndida nesse Conto do Inverno concebido por Declan Donnellan.









Espero que Cervantes receba uma homenagem semelhante à que Donnellan prestou ao autor de 'Hamlet'

Uma última nota. Esta obra, representada pela companhia Cheek by Jowl, dirigida por Donnellan, contou com a colaboração de vários teatros europeus, da França, Itália, Luxemburgo e Espanha, e foi apresentada em Madri na língua inglesa, com uma tradução em espanhol para quem não conseguia acompanhar o texto em sua língua original. E isso não foi um obstáculo para que o público se deleitasse fascinado com o que acontecia no palco e premiasse os atores com uma impressionante ovação. O que se pode concluir disso tudo? Que aquilo que sempre se acreditou ser um impedimento para que as companhias de teatro andassem pelo vasto mundo – os diferentes idiomas – já não o é, não só porque a vida moderna transformou o aprendizado de idiomas em uma exigência inevitável, mas, sobretudo, porque existe hoje em dia uma tecnologia que permite aos espetáculos serem acompanhados em tradução quase tão perfeitamente como em sua língua original. Espero que os exemplos de Declan Donnellan e sua companhia Cheek by Jowl sejam seguidos por muitos outros e (o que, é pena, não será fácil) da mesma qualidade.


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