sábado, 29 de junho de 2019

Cervantes / ‘Dom Quixote’ e seus números





‘Dom Quixote’ e seus números

O cálculo mental que Sancho faz perto do fim da segunda parte do livro é só um exemplo de como Cervantes completava seus personagens com os mínimos detalhes


MONTERO GLEZ
17 FEV 2019 - 18:58 COT

Sabe-se que Albert Einstein lia Dom Quixote. Era o romance que levava em suas viagens e sempre o tinha em sua mesa de cabeceira. Sentia atração pelo personagem cervantino; um fidalgo de La Mancha para quem a cavalaria era “uma ciência que encerra em si todas ou a maior parte das ciências do mundo”.

Para Einstein, por sua vez, a literatura não seria apenas uma maneira de se relacionar com o acaso, mas também uma forma de se identificar com a matemática pura, que ele definiu, em sua forma, como a poesia das ideias lógicas.
De um ponto de vista sempre criativo, Einstein manteve sua falta de respeito por estruturas rígidas. Fez isso da maneira quixotesca, criando a irreverente Academia Olímpia com um grupo de amigos. Uma irmandade com rituais típicos dos romances de cavalaria, da qual o cientista foi nomeado presidente.
Da forma como correram as coisas, pode-se dizer que a aventura científica de Einstein foi quixotesca, já que teve de enfrentar os moinhos do mundo acadêmico de sua época. “Agora eu também sou um membro oficial da guilda das prostitutas”, escreveu em uma carta, depois de conseguir seu cargo de professor na Universidade de Zurique.
Quixotismos à parte, é possível que, levado por sua condição científica, Albert Einstein tenha se indagado alguma vez sobre a velocidade das pás dos moinhos que aparecem no romance de Cervantes. É possível, inclusive, que tenha feito cálculos sobre o valor da força normal entre Rocinante e o solo de La Mancha, que, ao ser tão horizontal, coincidiria com o peso do cavalo somado aos ossos de seu cavaleiro, no momento exato de investir contra os gigantes. Certamente Einstein analisava os episódios do romance a partir das abstrações propostas pelas leis da física. É possível também que gostasse da maneira rústica que Sancho Pança tinha de fazer operações aritméticas.






Ilustração de Gustave Dourei para 'O Quijote'.
Ilustração de Gustave Dourei para 'O Quijote'.


O cálculo mental que Sancho faz quase no fim da segunda parte do livro nos mostra que Cervantes era um autor que completava seus personagens com os mínimos detalhes. Neste caso, Quixote propõe a seu escudeiro que defina um preço para cada açoite com que deve punir a si mesmo. Sancho responde “um quartilho”, ou seja, a quarta parte de um real para cada açoite. Fazendo contas, Sancho diz que não ganhará menos de três mil e trezentos quartilhos. Em seguida, expõe seu cálculo mental, separando milhares de centenas, os três mil dos trezentos, para depois começar a fazer metades e meias metades, o que resulta em um jogo numérico:
(3.300 : 4) = (3.000 + 300) : 4 = (3.000 : 4) + (300 : 4) = 750 + 75 = 825
“São ao todo oitocentos e vinte e cinco reais”, replica Sancho, esperando chegar à sua casa com o dinheiro, “rico e contente, embora bem açoitado”.
O romance de Cervantes não está repleto somente de questões aritméticas como a citada, mas também algébricas, geométricas e inclusive lógicas. Serve como exemplo o famoso paradoxo do enforcado, quando chega até Sancho, governador da ínsula Barataria, um forasteiro com uma história que, no fim, contraria toda a lógica por apresentar duas opções iguais em relação à sua possibilidade.
Segundo o forasteiro, um rio dividia duas partes de um mesmo terreno, e sobre esse rio havia uma ponte e uma forca. A lei dizia que se alguém queria atravessar a ponte tinha de dizer primeiro, sob juramento, aonde ia e o que ia fazer. Se dizia a verdade, era autorizado a passar. Se mentia, morria enforcado.
Então, aconteceu que um homem foi cruzar a ponte jurando que ia morrer naquela forca. Se sua passagem fosse liberada, teria mentido em seu juramento e, por mentir, deveria ser enforcado. Mas, se fosse enforcado, teria dito a verdade e, por isso mesmo, por dizer a verdade, deveria ter ficado livre.
Sancho acabou deixando o homem com vida. Fizesse o que fizesse, se o enforcasse ou se o deixasse livre, em qualquer dos dois casos, Sancho violaria a lei.
Por isso, teve uma saída lógica na qual demonstrou sua habilidade na hora de resolver o paradoxo. A mesma lógica que combinou com astúcia no caso do açoitamento. Em vez de atingir seu corpo, açoitou o tronco de uma árvore.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

O retrato de Stálin que Picasso queria esquecer





Ilustração mostra Stálin com “pinta de malandro”, escreveu jornal na época
Daniel Luque

O retrato de Stálin que Picasso queria esquecer



Artista espanhol retratou líder soviético dez dias após sua morte e causou controvérsia entre os membros do Partido Comunista francês.
Quando recebeu um convite da revista literária “Les Lettres Françaises” para pintar um retrato de Stálin, o pintor espanhol Pablo Picasso ficou em um beco sem saída: a publicação, que era referência na época, era comandada pelo poeta Louis Aragono, também membro e colega do Partido Comunista da França.
Em março de 1953, apenas dez dias após a morte do líder soviético, o rosto de Stálin com os traços de Picasso estampava a página da revista francesa. E a figura, com bigode e olhos esbugalhados, atraiu atenção – negativa.
O jornalista Feliciano Fidalgo descreveu em 1983, no “El País”, que “pelo retrato de Stálin assinado por Picasso pode se imaginar um arruaceiro com pinta de malandro”.
Retrato dividiu críticos e adoradores do pintor (Foto: Wikipedia Commons)Retrato dividiu críticos e adoradores do pintor (Foto: Wikipedia Commons)
Três dias depois, o Partido Comunista da França (PCF) expressou descontentamento com o trabalho. “O secretariado do PCF desaprova categoricamente a publicação do retrato do grande Stálin”, declararam.
Com a palavra, o biógrafo de Picasso
Para entender melhor o desenrolar dos fatos, a Gazeta Russa foi à cidade natal de Picasso, Málaga, onde mora o biógrafo do artista Rafael Inglada.
“O retrato de Stálin que Picasso fez após a morte do ditador soviético foi, penso eu, uma resposta às exigências do que deveria ser arte para uma potência como a Rússia. Foi o biógrafo e amigo de Picasso, Pierre Daix, que enviou um telegrama ao artista, em nome de Louis Aragon, para que participasse com um desenho da edição especial que seria dedicada ao falecido líder soviético na ‘Les Lettres Françaises’”, diz Inglada.
Picasso fez o desenho a carvão no dia 8, em Vallauris, e quatro dias depois a revista foi lançada.
O artista queria fazer um retrato de Stálin jovem (a partir de uma fotografia de 1903, que Françoise Gilot, então parceira de Picasso, havia achado em um jornal velho).
Dizia-se, porém, que ele e Françoise Gilot riram tanto ao terminar o desenho que Picasso ficou com soluço, pois o retrato guardava uma semelhança impressionante com o pai de Françoise. Ainda assim, a ilustração foi enviada.
Nem as flores que Picasso enviara a Moscou foram capazes de atenuar a polêmica entre as fileiras do Partido Comunista Francês e detratores e admiradores do artista.
O jornal “L’Humanité”, publicado em 18 de março daquele ano, divulgou em sua primeira página uma declaração categórica de desaprovação ao retrato.
“Sem questionar a integridade do grande artista, cujo compromisso com a causa da classe operária é conhecido por todos, o secretário do Partido Comunista Francês lamenta que o camarada Aragon, membro do Comitê Central e diretor da ‘Les Lettres Françaises’, que, por sua vez, conduz uma luta corajosa para o desenvolvimento da arte realista, tenha permitido a sua publicação”, escreveu o jornal.
Inglada: “Para Picasso, colaboração era uma coisa; outra era submissão” (Foto: Lola Durán/Valladolid)Inglada: “Para Picasso, colaboração era uma coisa; outra era submissão” (Foto: Lola Durán/Valladolid)
Na época, os detratores e os defensores de Picasso se dividiram visivelmente em dois grupos. “Para Picasso, a situação parecia ridícula; mostrava que colaboração era uma coisa, e outra era submissão e exigência”, diz.
Segundo Inglada, o poder central do PCF considerou a arte uma “caricatura insultante e vulgar do grande guia dos povos”, e condenou Aragon e a redação da revista por terem publicado o retrato. Também foi exigido que toda a tiragem fosse destruída por “blasfêmia”, assim como a divulgação de uma nota de arrependimento público pelos responsáveis da publicação.
A queixa oficial foi recebida como uma ordem pelos comunistas gauleses. Aragon se viu obrigado a recuar e desculpar-se publicamente. Na edição seguinte, a publicação divulgou cartas com críticas de várias células do partido.
Comunista inveterado
O longo exílio de Picasso – por oposição ao regime de Franco –, combinado com as experiências brutais durante a ocupação nazista de Paris, levaram o artista a enxergar o comunismo como “um ideal de paz, a chave para um mundo livre do fascismo”.
Isso gerou, porém, protestos de grupos de direita em algumas de suas exposições, e os Estados Unidos negaram sua entrada no país.
O pintor realizava conferências públicas pelo mundo e doações para causas sociais, incluindo um milhão de francos para os mineradores de carvão franceses que estavam em greve. “Mais tarde, protestou contra a guerra na península coreana, à qual dedicou sua obra “Massacre na Coreia” (1951), crítica aos EUA e que tampouco agradou o PCF, que preferia, como no caso do retrato de Stálin, um trabalho mais simples.”
“Massacre na Coreia”, de 1951 (Foto: Wikipedia Commons)“Massacre na Coreia”, de 1951 (Foto: Wikipedia Commons)
Em 1962, Picasso recebeu o Prêmio Lênin da Paz entre os povos, mas mantinha uma relação complexa com o partido. Embora não aprovasse a repressão da revolta húngara, por exemplo, permaneceu fiel aos ideais marxistas até sua morte, em 1973.




quarta-feira, 26 de junho de 2019

Igor Oléinikov / Ilustrador russo vence ‘Nobel de literatura infantil’



“Aelita” (“O Declínio de Marte”), de Aleksêi Tolstói
“Aelita” (“O Declínio de Marte”), de Aleksêi Tolstói
Nascido em 1953 na cidade de Liúbertsi, nos arredores de Moscou, Igor nunca obteve um diploma em arte, o que costuma surpreender quem vê seus trabalhos.
Formou-se em engenharia ambiental pela Universidade Estatal de Moscou Lomonossov, mas preferiu dedicar-se à arte – como sua mãe, que desenha tapetes.
“Todas as crianças pintam, mas há um momento em que a maioria delas perde o interesse. Minha mãe me apoiou, e ela não deixou esse interesse passar”, disse Igor em 2013. “Era uma artista e me fez interessar por arte. Ela dava sugestões para mim quando eu estava pintando algo e foi assim que se desenvolveu meu interesse.”
“Don Quixote”, de Evguêni Chvarts
“Don Quixote”, de Evguêni Chvarts
Sua carreira começou no estúdio de animação Soyuzmultfilm, em Moscou, onde trabalhava como animador em curtas como “O Mistério do Terceiro Planeta”, “Era uma vez um cão” e “As Viagens de uma Formiga”.
“Eu pinto desde criança e, desde que eu estava na 7ª série, sonhava em trabalhar no Soyuzmultfilm”, lembra. “Então meu pai me disse: ‘junte todos os seus desenhos e vá para o Soyuzmultfilm’; e foi assim que consegui um emprego lá.”
“Le boeuf e l'âne de la creche”, de Jules Supervielle
Calendário 2017
Nos anos 1990, começou a trabalhar em outro estúdio de animação chamado Christmas Film, onde contribuiu para longas como “A Flauta Mágica” e “Podna e Podni”.
Paralelamente ao trabalho de animação, Oléinikov passou a se dedicar à ilustração de livros e revistas para crianças.
Nas últimas três décadas, já ilustrou mais de 80 obras infantis e adultas, incluindo “O nariz”, de Nikolai Gógol.
Calendário 2017
“Koniok-gorbunok”, de Piotr Ierchov
O segredo de sua arte
“Eu sempre quis convencer as crianças (...) de que o que está nas ilustrações e a história acontece na vida real, para que elas acreditem em contos de fadas”, diz ele. “Comecei a pintar de forma mais realista para me aproximar do leitor.”
“Duas namoradas e uma poção de amor”, de Sofia Prokófieva
“Book of Nonsense”, de Edward Lear

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Além do ‘Quadrado Negro’ / 5 pinturas desconhecidas de Kazimir Malevich


Além do ‘Quadrado Negro’: 

5 pinturas desconhecidas 

de Kazimir Malevich


12 DE NOVEMBRO DE 2017
ALEKSANDRA GÚZEVA
Todos provavelmente já ouviram falar sobre o suprematismo, um gênero artístico vanguardista e complexo. Mas poucos sabem que seu criador, Kazimir Malevich, não pintava apenas figuras geométricas. Confira outras obras do famoso pintor.

Embora Malevich seja frequentemente associado a sua obra-prima suprematista, ‘O Quadrado negro sobre fundo branco’, seu trabalho ao longo dos anos revela um artista versátil e eclético. Nascido em Kiev, na Ucrânia, em 1879, o artista vivia distante do mundo da arte quando criança. Seu pai queria que ele seguisse seus passos e entrasse no ramo de processamento de açúcar de beterraba. Sua mãe, porém, possuía inclinações artísticas – escrevia poesias e adorava fazer bordados – e, mais tarde, foi uma das poucas pessoas que apoiaram a ambição de Malevitch em se tornar pintor.
Ainda pequeno, Malevich viu uma pintura de uma menina descascando batatas e ficou impressionado com a precisão da imagem – e foi justamente esse realismo que iniciou a jornada artística de um dos artistas mais abstratos do século 20.
  1. Primavera (1904)

Este é um dos primeiros trabalhos de Malevich, época em que suas obras tinham espírito impressionista. Quase todos os artistas de vanguarda passaram por essa fase. Além disso, um professor particular de Malevich era grande fã de Paul Cézanne. 
  1. Crianças (1908)

Do impressionismo puro, Malevich migrou para a vanguarda, participando de exposições de vários grupos artísticos, incluindo o Valete de Diamantes. Aos poucos foi se voltando para o cubismo e um estilo de pintura alógico (alogismo), e, também gradualmente, suas obras se tornaram mais geométricas e primitivas.
  1. Autorretrato (1910)
Malevich fez cerca de sete autorretratos muito diferentes; observando-os, é fácil identificar o estilo de arte que Malevich estava seguindo no momento. Seu primeiro retrato, ainda bem cedo, é um esboço de afresco e contém elementos ortodoxos. Há também vários retratos desenhados sob a influência de pinturas de fauvismo francês, com suas cores e texturas inesperadas, incluindo a imagem acima, que é, provavelmente, a mais famosa. Nela já se pode observar a tendência de Malevich em direção à geometria. Ele fez ainda um autorretrato suprematista baseado no ‘Quadrado Negro’ (que é supostamente uma cabeça) e outros dois retratos realistas.
  1. Camponesas em uma Igreja (1912) 
Esta é uma pintura do chamado “primeiro ciclo de camponeses”. Os principais temas abordados são camponeses, retratados em campos, igrejas e close-ups. Nessa fase, as figuras parecem estar crescendo em massa, tornando-se mais volumosas e estáticas.
  1. Florista (1930)

Mais perto do final de sua vida, Malevich voltou à pintura realista. Difícil de acreditar, mas o criador do ‘Quadrado Negro’ terminou a carreira pintando paisagens simples, comuns e bastante concretas. Em seus últimos trabalhos, novamente apelou ao impressionismo, tentando, porém, repensá-lo e dar-lhe uma nova interpretação. Mas, ainda que as senhoras do fundo sejam desenhadas de maneira impressionista, a pose e as roupas da florista refletem uma influência suprematista.


RUSSIA BEYOND



domingo, 23 de junho de 2019

Os 100 anos do ‘Quadrado Negro’




Obras de Malevitch foram proibidas pelo governo soviético a partir de 1930 Foto: Iúri Smólni/RIA Nóvosti
Obras de Malevitch foram proibidas pelo governo soviético a partir de 1930 Foto: Iúri Smólni/RIA Nóvosti

Os 100 anos do ‘Quadrado Negro’

Embora só apresentado em dezembro de 1915, a polêmica obra “Quadro Negro”, de Kazimir Malevitch, havia sido finalizada em junho daquele ano. Um século após sua criação, quadro permanece como ícone da vanguarda e ainda influencia artistas de todo o mundo.

Em dezembro de 1915, em Petrogrado, atual São Petersburgo, foi inaugurada a “Última exposição futurista de quadros 0,10”. Nela, foram apresentados pela primeira vez todos os trabalhos de Kazimir Malevitch concebidos no espírito do movimento criado por ele – o suprematismo.
O quadro que mais despertou a admiração dos companheiros de Malevitch e a desaprovação do público foi o “Quadrado Negro”, não por acaso pendurado no chamado ‘canto vermelho’, onde costumava-se colocar os ícones religiosos da tradição ortodoxa.
No início, o culto ao “Quadrado” e ao suprematismo foi disseminou apenas no estreito círculo de companheiros e discípulos de Malevitch; na Europa, os seus fãs poderiam ser contados nos dedos da mão.
Ao levar em conta o interesse-relâmpago pela arte abstrata que surgiu em alguns países – Rússia, França, Holanda, Alemanha – e desapareceu quase que simultaneamente, não fica difícil explicar por que a figura de Malevitch permaneceu, por muito tempo, fora do campo de atenção da comunidade artística internacional.
Para o seu ostracismo contribuiu também o fato de que, guardadas em museus soviéticos, as obras de Malevitch foram proibidas pelo governo a partir de 1930.  O florescimento da vanguarda foi arrancado da memória do país e protegido de qualquer tipo de exportação além da chamada Cortina de Ferro.
Fama pós-guerra
Apesar dos contratempos, Malevitch conseguiu ganhar reconhecimento mundial, embora postumamente. Esse processo teve início após a Segunda Guerra Mundial, na época do boom da pintura abstrata na Europa e nos EUA.
Alguns dos trabalhos suprematistas de Malevitch tinham sido conservados, ainda antes da guerra, no Museu de Arte Contemporânea de Nova Iorque; outros estavam nas mãos de colecionadores particulares na Europa.
No entanto, a verdadeira onda de interesse pelo legado artístico do pintor russo surgiu depois de 1957, quando o Museu de Stedelijk, em Amsterdã, conseguiu finalmente receber a tão esperada e pouco conhecida coleção que se encontrava na Alemanha.
Esse conjunto de obras de Malevitch foi transportado em 1927 para uma exposição individual em Berlim, que terminou antes da data programada. Até que fossem levados de volta para a URSS, os quadros ficariam aos cuidados do arquiteto alemão Hugo Häring. O pintor russo, no entanto, não pode regressar para buscá-los.
Mais tarde, conseguiram esconder dos olhos dos nazistas esse arquivo artístico, que acabou por sobreviver à guerra e, no final do conflito, foi parar no museu holandês. Uma ampla mostra dos trabalhos e a sua publicação em livro geraram uma reação indescritível.
Isso aconteceu ainda que a maior parte dos trabalhos de Kazimir Malevitch tivesse ficado guardada na URSS, fora do alcance do público ocidental até a perestroika. Não é à toa que, por mais que seja paradoxal, a obra é menos apreciada na Rússia do que no Ocidente.
Para sempre quadrado  
O “Quadrado Negro”, caracterizado pelo autor como “um recém-nascido vivo e majestoso”, impressionou nem tanto pela aparência, quanto pelos sentidos: “Eu me transformei no nulo das formas e fui além do nulo na criação.”  Em outras palavras, a obra é uma espécie de objeto mágico, que permite se livrar da velha arte.
Se, por um lado, pode-se dizer que os minimalistas americanos das décadas de 1950 e 60, como Carl Andre e Donald Judd, absorveram muito do estilo suprematista, por outro, nos trabalhos conceituais do francês Yves Klein ou do americano Mark Rothko, não há praticamente nada que lembre a geometria abstrata de Malevitch.O inovador pintor alemão Joseph Beuys anunciou em um de seus manifestos que “Tudo é arte” e, nesse aspecto, indiscutivelmente, repetiu Malevitch. Mas a atitude dos suprematistas de recusar os “excessos figurativos” pode ser considerada um prólogo ao surgimento do conceitualismo.
Embora distantes, são claros parentes do “Quadrado preto” as obras do Neo-Geo, movimento artístico norte-americano do final do século 20. E há também áreas como o design e a arquitetura, em que a influência do “ícone da vanguarda” perdura há décadas, embora não seja absoluta.
Pode-se citar, por exemplo, a estrela da arquitetura Zaha Hadid, que mais de uma vez declarou a sua paixão pela arte de Malevitch. Tanto é que, em uma exposição individual de Hadid no museu Hermitage, em São Petersburgo, uma versão do “Quadrado” figurava como epígrafe.


sábado, 22 de junho de 2019

‘Quadrado Negro’ esconde outras duas imagens, revelam pesquisadoras


Obra de Malevitch é símbolo precursor do vanguardismo russo

‘Quadrado Negro’ esconde outras duas imagens, revelam pesquisadoras


Além das pinturas ocultadas sobre tela, autoras do estudo conseguiram decifrar inscrição existente na obra de Malevitch.
Investigações recentes revelaram duas imagens coloridas ocultadas sob a tela “Quadrado Negro”, do pintor russo Kazimir Malevitch, informou a Galeria Tretiakov, em Moscou, onde a obra é mantida.
“Sabia-se que sob a imagem do ‘Quadrado Negro’ existia outra subjacente. Mas descobrimos que há duas dessas imagens, e não apenas uma”, disse Ekaterina Vorônina, colaboradora do departamento de perícia científica da galeria, durante um evento internacional sobre os 100 anos da tela.
“Provamos também que a imagem original é uma composição cubofuturista, e a que está diretamente sob o ‘Quadrado Negro’, e cuja cor é visível no craquelê, é uma composição protossuprematista”, acrescentou, referindo-se ao suprematismo russo da década de 1910.
Os contornos de outra pintura de Malevitch tornam-se perceptíveis quando a obra é exposta a raios-X. Através de um microscópio também é possível enxergar outra camada de tinta pelo craquelê – isto é, as ‘rachaduras’ na superfície do “Quadrado Negro”.
Vorônina, que trabalhou em parceria com Irina Rustámova e Irina Vakar, também colaboradoras da Tretiakov, conseguiu ainda decifrar a maior parte da inscrição existente na obra e garante que foi feita pelo próprio pintor.
Segundo as autoras do estudo, a frase inteira soa como “Batalha de Negros na Caverna Escura”. A pintura de Malevitch poderia, assim, ser considerada como um diálogo à distância com o autor de “Batalha de Negros em uma Caverna Escura Tarde da Noite” (1882), o escritor e humorista francês Alphonse Allais.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Sascha Lus / Photo Shoot


Sasha Luss 

Exhibition Magazine #4 

by Luigi, Daniele & Iango 

MQ Photo Shoot

2014







IN THE RAW



quinta-feira, 20 de junho de 2019

Modelo russa Sasha Luss será protagonista do novo filme de Luc Besson



Sasha Luss


Modelo russa Sasha Luss será protagonista do novo filme de Luc Besson


Assista ao trailer de “Anna”.

No recém-lançado trailer de “Anna”, novo longa do diretor francês Luc Besson, é possível ver a atriz e modelo russa Sasha Luss interpretando diferentes personagens na pele de Anna Poliatova – de espiã especialista em artes marciais a simples vendedora no mercado ou um habilidosa jogadora de xadrez. 

Helen Mirren, Luke Evans e Cillian Murphy também estão no elenco de “Anna”.
O filme, orçado em 30 milhões de dólares, será lançado nos cinemas americanos em 21 de junho, mas ainda não tem previsão de estreia no Brasil.


terça-feira, 18 de junho de 2019

Anton Tchekhov / A esposa

Anton Tchekhov

A ESPOSA

Trad. Tatiana Belinky

Eu já lhe pedi que não arrumasse a minha mesa - dizia Nicolai Ievgráfitch. - Depois das suas arrumações nunca mais se pode encon­trar nada. Onde está o telegrama? Onde foi que o jogou? Queira procu­rá-lo. É de Kazan, marcado com a data de ontem.
A arrumadeira, pálida, muito magra, de rosto indiferente, encon­trou na cesta debaixo da mesa alguns telegramas e entregou-os em silêncio ao doutor, mas eram todos telegramas urbanos, de pacientes. Depois, procuraram na sala de visitas e no dormitório de Olga Dmitriev­na.
Já passava da meia-noite. Nicolai Ievgráfitch sabia que sua mulher não voltaria para casa tão cedo, no mínimo lá pelas cinco horas. Ele não confiava nela, e quando ela demorava a voltar, não dormia, sofria, e ao mesmo tempo detestava a mulher, e a sua cama, e o espelho, e as "bombonières", e essas campainhas e jacintos que alguém lhe mandava todos os dias, e que espalhavam pela casa inteira um perfume adocicado de loja de florista. Em tais noites ele se tornava mesquinho, enjoado, implicante, e agora lhe parecia que precisava muito do tele­grama recebido ontem do irmão, se bem que este telegrama não contivesse nada além de cumprimentos de festas.
No quarto da mulher, na mesa, sob a caixa de papel de cartas, ele encontrou um telegrama qualquer e lançou-lhe um olhar de passa­gem. Estava endereçado ao nome da sogra, para ser entregue a Olga Dmitrievna, era de Monte Carlo, e assinado: "Michel"... Do texto, o doutor não entendeu uma só palavra, porque estava em língua estran­geira, inglês, ao que parecia.
Quem é esse Michel! Por que de Monte-Carlo? Por que em nome da sogra?
No decorrer de sete anos de vida matrimonial, ele se acostumara a desconfiar, a procurar provas, e mais de uma ver lhe passou pela cabeça que, graças a esta prática doméstica, ele hoje já poderia ser um ótimo investigador. Voltando ao escritório e pondo-se a raciocinar, ele se lembrou imediatamente que seis meses atrás, estivera com a mulher em Petersburgo e almoçara no "Cubas" com um companheiro de escola, engenheiro de vias de comunicação, e que este engenheiro apresentara, a ele e à sua mulher, um jovem de uns vinte e dois, vinte e três anos, chamado Micail lvánitch; o sobrenome era curto, um tanto estranho: Ris. Dois meses depois, o doutor viu no álbum da sua mulher uma fotografia deste jovem, com uma dedicatória em francês: "Em recordação do presente e na esperança do futuro." Mais tarde, ele o encontrara um par de vezes em casa da sua sogra... E foi justamente naquela época em que sua mulher começou a se ausentar com freqüência e a voltar para casa às quatro e cinco horas da madrugada, e a viver lhe pedindo um passaporte para o estrangeiro que ele recusava; e na sua casa, o dia inteiro, havia tamanha guerra, que dava vergonha diante da criada.
Seis meses atrás, os colegas médicos decidiram que ele estava com um principio de tuberculose e aconselharam-no a largar tudo e ir para a Criméia. Ao saber disso, Olga Dmitrievna fingiu que ficara muito assustada; começou a ficar carinhosa com o marido, e sempre insistia que na Criméia era frio e aborrecido, e que seria melhor ir para Nice, e que ela o acompanharia e lá se ocuparia dele, trataria, cuidaria...
E agora ele compreendia porque a sua mulher tinha tanta vontade de ir para Nice: o seu "Michel" mora em Monte-Carlo.
Ele apanhou o dicionário inglês-russo e, traduzindo as palavras e adivinhando-lhes o sentido, pouco a pouco construiu uma frase assim: “Bebo saúde minha bem-amada mil vezes beijo pezinho pequeni­no. Impaciente espero chegada”. Ele imaginou que papel ridículo e lamentável teria feito, se tivesse concordado em viajar para Nice com a mulher, por pouco não chorou com o sentimento de humilhação, e, presa de forte agitação, pôs-se a andar por todos os quartos. Dentro dele revoltou-se o seu orgulho, os seus melindres plebeus. Crispando os punhos, o rosto contraído de asco, ele se perguntava como é que ele, filho de um cura de aldeia, educado no seminário, homem reto e rude, cirurgião de profissão — como é que ele pôde entregar-se à escravidão, submeter-se tão ignominiosamente a esta criatura fraca, insignificante, venal e baixa?
— Pezinho pequenino — balbuciava ele, amarrotando o telegra­ma. — Pezinho pequenino!
Daquele tempo, quando ele se apaixonara e fizera o pedido, e depois vivera sete anos, ficou apenas a lembrança da longa cabeleira perfumada, da massa de rendas macias e do pezinho pequenino, realmente muito pequeno e bonito; e ainda agora, parecia que dos ample­xos passados permanecia nas mãos e no rosto a sensação da seda e das rendas — e nada mais. Nada mais, se não se contarem as crises histéricas, os guinchos, os reproches, as ameaças e as mentiras, menti­ras cínicas e traiçoeiras... Ele se lembrava como, em casa do seu pai na aldeia, acontecia por vezes um pássaro entrar voando, sem querer, pela janela, e começar a debater-se freneticamente contra as vidraças e a derrubar os objetos; assim também essa mulher, de um meio totalmente estranho, invadiu a sua vida e estabeleceu nela verdadeira des­truição. Os melhores anos da vida passaram como num inferno, as esperanças de felicidade desbaratadas e escarnecidas, a saúde perdida, nos quartos e salas um ambiente vulgar de "cocotte", e dos dez mil que ganha por ano, ele nunca consegue enviar a sua mãe, viúva do cura, nem ao menos dez rublos, e já deve uns quinze mil em letras de câmbio. Parecia que, se em sua casa vivesse um bando de salteado­res, mesmo assim sua vida não estaria tão desesperada, tão irremedia­velmente destruída, como com essa mulher.
Ele começou a tossir e a ofegar. Seria preciso deitar-se na cama e aquecer-se, mas ele não podia e só andava pelos quartos ou se senta­va à mesa, e riscava, nervoso, o papel com o lápis, e escrevia maquinal­mente:
"Prova da pena... pezinho pequenino..."
Pelas cinco horas ele enfraqueceu e já se culpava de tudo a si mesmo, e lhe parecia agora que, se Olga Dmitrievna tivesse casado com outro, que pudesse ter sobre ela uma boa influência, então — quem sabe? no fim de tudo, talvez ela se tornasse uma mulher boa e honesta; mas ele é mau psicólogo e não conhece a alma feminina, e ainda por cima é desinteressante, rude...
“Eu já tenho pouco tempo de vida — pensava ele — sou um cadáver e não devo atrapalhar os vivos. No fundo, agora seria estranho e tolo reivindicar não sei que direitos próprios. Terei uma explicação com ela; que se vá para o homem amado... Dar-lhe-ei o divórcio, toma­rei a culpa sobre mim...”
Olga Dmitrievna chegou afinal, e como estava de “rotondeau” branco, chapéu e galochas entrou no gabinete e deixou-se cair na pol­trona.
— Moleque gordo e repugnante — disse ela, respirando penosa­mente, e soluçou. — Isto é até desonesto, é horroroso. — Ela bateu o pé. — Eu não posso, não posso, não posso!
Olga Dmitrievna chegou afinal, e como estava de “rotondeau” branco, chapéu e galochas entrou no gabinete e deixou-se cair na pol­trona.
— Moleque gordo e repugnante — disse ela, respirando penosa­mente, e soluçou. — Isto é até desonesto, é horroroso. — Ela bateu o pé. — Eu não posso, não posso, não posso!
Ela chorava a sério mesmo, como uma menina, e não só o lenço, mas até suas luvas estavam molhadas de lágrimas.
— Que se há de fazer! — suspirou o doutor. — Se perdeu, está perdido, e que vá com Deus. Acalma-te, eu preciso conversar contigo.
—  Não sou milionária, para não me importar assim com dinheiro. Ele diz que vai devolver, mas eu não acredito, ele é pobre...
O marido pedia-lhe que se acalmasse e o escutasse, mas ela só falava do estudante e dos seus quinze rublos perdidos.
— Ora, eu te darei vinte e cinco amanhã, mas cala-te, por favor — disse ele com irritação.
— Eu tenho de trocar de roupa! — chorava ela. — Não conversar seriamente, de casaco de peles! Que coisa estranha!
Ele tirou seu casaco e galochas, e, neste momento, sentiu cheiro de vinho branco, aquele mesmo que ela gostava de tomar quando comia ostras (apesar de toda a sua vaporosidade, ela comia muito e bebia bastante). Ela foi para o seu quarto e pouco depois voltou, com outra roupa, o rosto empoado, os olhos inflamados de chorar, sentou-se e sumiu toda no seu leve penteador rendado, e na  massa de ondas róseas o marido só distinguia a cabeleira solta e o pequenino chinelo.
— De que é que tu queres falar? — perguntou ela, balançando-se na poltrona.
— Eu, sem querer, vi isto aqui... — disse o doutor e estendeu-lhe o telegrama.
Ela leu e deu de ombros.
E que tem isso? — disse ela, balançando-se com mais força.
É um simples telegrama de Ano Novo e nada mais. Aqui não há segredos.
— Tu contas com o fato de eu não saber inglês. Sim, mas tenho um dicionário. E um telegrama do Ris, ele brinda de à saúde de sua amada e beija-a mil vezes. Mas deixemos, deixemos continuou o doutor, apressado. — Eu não quero em absoluto recriminar-te ou fazer uma cena. Já tivemos suficientes cenas e recriminações, é tempo de acabar... Aqui está o que eu quero te dizei: tu és livre e podes viver como quiseres.
Fez-se um silêncio. Ela começou a chorar baixinho.
Eu te liberto da necessidade de fingir e de mentir — continuou Nicolai Ievgráfitch. — Se amas aquele moço, podes amá-lo; se queres ir ter com ele no estrangeiro, vai. Tu és jovem, forte, e eu já sou ruína, sobra-me pouco tempo de vida. Numa palavra... tu me compreendes.
Ele estava emocionado e não podia prosseguir. Olqa Dmitrievna, chorando e com voz de quem tem pena de si mesma confessou que amava Ris, que saíra a passear       ele fora da cidade, que estivera no seu apartamento, e que, de fato, agora ela tinha muita vontade de ir para o estrangeiro.           
  — Esta vendo, eu não te oculto nada — disse ela com um suspiro.
— Abro-te toda a alma. E  novamente te suplico, sê generoso, dá-me o passaporte!
Repito: és livre.
Ela mudou de lugar, para mais perto dele, a fim de poder ver-lhe a expressão do rosto. Não acreditava nele, e agora tentava adivinhar os seus pensamentos ocultos. Ela nunca confiava em ninguém, e por mais nobre que fossem as intenções, sempre suspeitava nelas motivos mesquinhos ou baixos e fins egoístas. E quando ela lhe fitava o rosto com ar perscrutador, pareceu-lhe que nos seus olhos, como nos olhos de uma gata, brilhara uma faísca verde.
Mas quando é que eu receberei o passaporte? — perguntou ela em voz baixa.
Ele teve vontade, de repente, de responder “nunca”, mas se conteve e disse:
Quando quiseres.
Eu vou só por um mês.
Tu vais ter com Ris para sempre. Eu te darei o divórcio, tomarei a mim a culpa, e Ris poderá casar-se contigo.
Mas eu não quero o divórcio! — disse Olga Dmitrievna vivamente, fazendo uma cara admirada. — Não te peço divórcio! Dá-me o passaporte, e é só.
Mas porque tu não queres o divórcio? — perguntou o doutor, começando a ficar irritado.  És uma mulher estranha. Como és estranha! Se estás seriamente enamorada, e ele também te ama, na vossa situação ambos não podereis inventar nada melhor que o matrimônio. Ou será que tu ainda preferes escolher entre o matrimônio e o adultério?
Eu já compreendi o senhor — disse ela, afastando-se dele, e o seu rosto assumiu uma expressão maldosa e vingativa. — Eu o compreendo perfeitamente. O senhor está cansado de mim, e o senhor quer simplesmente livrar-se de mim, impingir-me este divórcio. Agradeço, mas não sou tão tola como o senhor imagina. Não aceitarei o divórcio e não o deixarei, não deixarei, não deixarei! Em primeiro lugar, não desejo perder a minha posição social — continuou ela, depressa, como que receando que ele a impedisse de falar, — em segundo lugar, já estou com vinte e sete anos, e Ris tem vinte e três; daqui a um ano ele se cansará de mim e me abandonará. E em terceiro lugar, se deseja saber, eu não garanto que esta minha paixão possa durar muito tempo... Está aí! E eu não deixarei o senhor.
Neste caso vou expulsá-la da minha casa! — gritou Nicolai Ievgráfitch, batendo os pés. — Toco-te para a rua, mulher baixa e ignóbil.
Veremos! — disse ela e saiu.
Lá fora já clareava o dia, mas o doutor continuava sentado à mesa riscando o papel com lápis e escrevendo maquinalmente:
“Prezado senhor... Pezinho pequenino...”
Ou então punha-se a andar e parava na sala de visitas diante de uma fotografia, tirada havia sete anos, pouco após o casamento, e fitava-a longamente. Era um grupo familiar: o sogro, a sogra, sua mulher Olga Dmitrievna quando tinha vinte anos, e ele mesmo, na qualidade de marido jovem e feliz. O sogro, escanhoado e rechonchudo conselheiro secreto, astuto e ávido por dinheiro; a sogra, senhora opu­lenta de feições miúdas e rapaces como de uma doninha, que amava a filha loucamente e a ajudava em tudo; se a filha estivesse estrangulan­do um ente humano, ela não lhe diria uma palavra, mas apenas a esconderia atrás da sua saia. Olga Dmitrievna também tem traços fisio­nômicos miúdos e rapaces, mas mais expressivos e atrevidos do que os da mãe; esta já não é uma doninha, mas uma fera bem mais graúda! Já próprio Nicolai Ievgráfitch parece nesta fotografia um homem tão simples, bom rapaz, sujeito sem maldade; um sorriso bonachão de se­minarista espalhou-se pela cara toda, e ele crê ingenuamente que este bando de rapinantes, no meio do qual ele caiu por um capricho do destino, lhe dará a poesia e a felicidade e tudo aquilo com que ele sonhava quando, ainda estudante, cantava a canção: "Não amar e perder a vida tão jovem..."
E de novo, perplexo, ele se perguntava como foi que ele, filho de um cura de aldeia, educado no seminário, homem simples, rude e reto, pôde entregar-se tão desamparadamente às mãos desta criatura insignificante, falsa, vulgar, mesquinha, e, pela própria natureza, para ele totalmente estranha.
Quando, às onze horas, ele vestia o paletó para ir ao hospital, a criada entrou no escritório.
— Que deseja? — perguntou ele.
— A patroa levantou-se e pede os vinte e cinco rublos que o senhor lhe prometeu.

1895.