sábado, 29 de fevereiro de 2020

Pacientes curados que voltam a dar positivo por coronavírus inquietam médicos


Pacientes curados que voltam a dar positivo por coronavírus inquietam médicos

Wuhan, epicentro da crise, impõe 14 dias de isolamento àqueles que recebem alta



MACARENA VIDAL LIY
Pekín - 28 FEB 2020 - 20:01COT


Um pai e sua filha na cidade de Xuzhou, na província chinesa de Jiangsu, se transformaram nos últimos casos conhecidos até agora de um grupo que não para de aumentar: o de pacientes contaminados pelo novo coronavírus que se recuperam para, poucos dias ou semanas depois, voltar a dar positivo nos testes. Um fenômeno que preocupa os médicos, pois pode fazer a Covid-19, a doença causada pelo vírus, mais difícil de erradicar.



Como publicou a imprensa estatal chinesa, o pai, o primeiro caso confirmado nessa cidade, havia recebido alta do hospital há duas semanas, mas em um novo teste voltou a dar positivo como portador do vírus. Sua filha pequena, que também havia sido declarada curada, teve o mesmo resultado. Os dois voltaram a ser internados.

Dois dias antes, o governo local da prefeitura de Osaka, no Japão, confirmou outro caso semelhante: o de uma guia turística de quarenta anos que havia ficado doente em janeiro e recebido alta no começo de fevereiro. Voltou a mostrar sintomas, como tosse seca e dor no peito, e em 26 de fevereiro deu positivo nos testes. A paciente não havia voltado a trabalhar, permaneceu em sua casa, não manteve contato próximo com ninguém e sempre ao sair havia usado máscara.


Em toda a China foram detectados outros casos de novos positivos entre pessoas declaradas curadas anteriormente. Um estudo elaborado entre pacientes que saíram do hospital na província de Cantão, no sudeste, mostrou que 14% dos casos davam positivo novamente, como informou no terça-feira a revista Caixin.

A preocupação por possíveis reinfecções levou as autoridades de Wuhan, a cidade em que a epidemia se originou, a ordenar que os doentes de Covid-19 que recebam alta do hospital tenham que passar por uma quarentena de catorze dias em um local especialmente habilitado antes de voltar à vida normal.



Os especialistas veem várias possíveis explicações no fato de um infectado que recebeu alta ter uma recaída. Uma possibilidade é que tenha ficado no corpo uma pequena quantidade de vírus, insuficiente para dar positivo nos testes, mas o bastante para se reproduzir e voltar a dar positivo se o organismo não tiver desenvolvido anticorpos em quantidades adequadas para combatê-la. Também é possível que essa falta de anticorpos permita uma segunda infecção de fontes externas.

“É algo que ocorreu em surtos de outras doenças”, lembra a professora de Epidemiologia Estatística Christl Donnelly, do Imperial College London e da Universidade Oxford. No caso da epidemia de ebola na África Ocidental entre 2013 e 2016 ―dá o exemplo―, ocorreram casos em que, quando se repetiam os testes antes de dar a alta definitiva, se registravam recaídas. “Também é possível que aconteça como no caso do herpes zoster, consequência de uma infecção anterior com o vírus da varicela, em que vírus fica latente em alguma parte do corpo”, durante anos.



A questão nesses casos de positivo após a cura, diz Donnelly, é que “não sabemos se esses afetados podem infectar outras pessoas posteriormente. Se acontecer, faria com que os casos aparentemente recuperados pudessem ser uma fonte potencial de infecção, o que seria algo preocupante. Precisamos esperar e ver o que acontece com essas pessoas, e acompanhar atentamente os dados clínicos que surgirem”.

A Comissão Nacional de Saúde da China declarou na sexta-feira que os primeiros exames a esses pacientes demonstraram que não são infecciosos. Outra possibilidade trabalhada é que, pelo menos em alguns casos, os testes para dar alta não tenham sido feitos corretamente. E que tenham sido feitos corretamente e tenham dado falsos negativos: o doutor Li Wenliang, que tentou dar o alerta no começo da crise e que morreu de Covid-19 em 6 de fevereiro, deu negativo várias vezes antes de sua infecção ser confirmada.

Em declarações ao Diário do Povo, o jornal do Partido Comunista da China, o vice-diretor do centro de doenças infecciosas do Hospital da China Ocidental afirmou que inicialmente os médicos tiravam amostras do nariz e da garganta para determinar se um paciente era portador do coronavírus. Outros testes mais recentes encontraram vestígios do patógeno nos pulmões.



No Japão, os critérios para dar alta a um doente de Covid-19 preveem que o paciente dê negativo em um teste efetuado 48 horas depois de que tenha deixado de apresentar sintomas graves, e que o resultado seja o mesmo em um segundo exame doze horas depois.

Na China, os pacientes devem dar negativo nos testes, não ter sintomas e seus pulmões não devem apresentar anormalidades em uma imagem de tomografia computadorizada.




Em uma entrevista coletiva nessa semana, o vice-diretor do Centro para o Controle e Prevenção de doenças em Cantão, Song Tie, afirmou que nenhum dos pacientes infectados pela segunda vez parece ter contaminado as pessoas ao seu redor. “Pelo que entendemos, após alguém ser infectado por esse tipo de vírus, produz anticorpos, e após a produção desses anticorpos, não será contagioso”.

Até agora, dos mais de 78.000 infectados pelo coronavírus na China desde o começo da crise há dois meses, já receberam alta 36.117 doentes, quase a metade.

EL PAÍS




quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Parasita /um canto de amor ao cinema


Parasita, um canto de amor ao cinema

Bong Joon-Hu dirige um filme que é comédia, tragédia grotesca, noir e história de terror. Não perca este filme, alheio a uma sutileza de prestígio, direto e quase lindamente literal

Marta Sanz
7 de noviembre de 2019


Não é minha intenção usurpar o posto de nenhum crítico de cinema do EL PAÍS. Deus me livre. No entanto, toda vez que encontro um tempo para o “lazer” –sempre escrevo e pronuncio entre aspas–, libertando-me de um cotidiano alienado, hiperconectado e medroso em relação ao trabalho, descubro excelentes filmes no escurinho dos cinemas. O que eu digo não nasce do deslumbramento de uma garota abduzida pelo desejo desmaterializador de aproximar o dedo da tela para desintegrá-lo em moléculas coloridas de luz ou, inversamente, para encarniçar imagens sempre fantasmagóricas.

Estremeci com Parasitafilme que ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes e que foi eleito melhor filme na Mostra de Cinema de São Paulo, dirigido pelo coreano Bong Joon-Hu. Primeiro, por causa do vício hitchcockiano de me sentir desafiada por filmes que começam parecendo uma coisa e acabam sendo outra e outra e outra. Como em Psicose: começamos fugindo ao lado de uma bela delinquente e acabamos em um porão aterrorizante. Vejo Parasita e descubro pelo menos três ou quatro filmes que convergem em um que me interessa por causa de sua maneira de se conectar com Hitchcock, Losey, Chabrol, com o picaresco e a servidão de canino retorcido de Tom Jones, de Henry Fielding. Como eu gosto dos retratos dessa gente do serviço que, em vez de dedicar suas vidas aos patrões –os bonzinhos de Downton Abbey–, os suplantam e se banham em bolhas de sabão que não lhes tiram o cheiro de roupa fervida nem a rusticidade de seus modos. Como eu gosto daquelas criadas que furtam e vão aos programas de fofocas para revelar as intimidades daqueles que as exploram. A ardente quebra de confidencialidade, comprada com uns trocados, me excita.


Bong Joon-Hu dirige um filme que é comédia, tragédia grotesca, noirhistória de terror e da desiludida fosforerita, denuncia as relações de poder –familiares, sexuais, educacionais, trabalhistas– que definem a convivência na Coreia do Sul. Com A Vegetariana, o excelente romance de Han Kang, escritora também sul-coreana, entendemos até que ponto a fusão Ocidente-Oriente, através da roda-viva da globalização, acaba sendo grosseira e selvagem: uma simulação sempre destrutiva e paródica de famílias felizes à moda norte-americana. Simulações de ricas que se liberam comprando. Crianças com traumas de Illinois. Professores de inglês. Churrascos. Abaixo, no subsolo, a realidade dos percevejos e piolhos nos quais repousam as riquezas, o perigo de que detone um explosivo rancor de classe.

A lógica do capitalismo enfrenta o espírito criativo e empreendedor dos patrões com a preguiça e as emanações etílicas de motoristas e empregadas domésticas. Os professores fazem parte do serviço e cada capricho se compra com dinheiro. Os de cima, estadosunidenizados mais do que ocidentalizados, não toleram os que de baixo “passem dos limites”. Para os de cima, os de baixo cheiram mal, por mais que precisem deles; os de baixo lutam entre si e sublimam sua merda –as águas fecais entre as quais literalmente vivem– com a fantasia cômica de seus privilégios em relação ao grande monstro norte-coreano. E até aí posso ler. Não perca este filme, alheio a uma sutileza de prestígio, direto, quase lindamente literal e ao mesmo tempo um canto de amor ao cinema. Eu, que tento servir sem ser serva, me sinto infectada por esses parasitas. A infecção se relaciona com o mundo em que vivemos e com minha propensão a pegar piolhos no cinema quando era pequena.

EL PAÍS


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

‘Parasita’ / O cheiro dos pobres



O cheiro dos pobres

‘Parasita’, vencedor do Oscar, se inscreve na tradição literária e cinematográfica do arrivista como expoente da luta de classes


Ana Useiros
14 Feb 2020

A notícia cinéfila da semana é que Parasitaum filme sul-coreano, ganhou o maior prêmio cinematográfico dos Estados Unidos. Comentou-se à saciedade que é a primeira vez que uma produção com diálogos em um idioma diferente do inglês derrotou os pesos-pesados da indústria mais poderosa do mundo. Ainda é cedo para saber se será um fato isolado ou um sintoma de uma nova tendência, bem como saber de que tendência estamos falando, embora certamente tenha algo a ver com a nova hegemonia propiciada pelas plataformas globais de produção e distribuição por streaming. No ano passado, outro filme “estrangeiro” (agora mudou oficialmente a denominação do filme “internacional”), Roma, centrado em uma empregada doméstica submissa e sofredora, subjugada pela família rica à qual serve, quase ganhou esse prêmio. É tentador apontar o paralelismo e forçar ligeiramente a metáfora, já que os personagens de Parasita têm acesso ao cobiçado universo da classe alta (Hollywood?) pela porta de serviço, embora o façam com uma atitude completamente oposta.


Essa atitude, esse descaramento, é sem dúvida uma das razões pelas quais, ao contrário do filme de Cuarón, ao falar de Parasita a crítica mencione não apenas a enorme desigualdade social e a divisão de classes, mas essa expressão quase proscrita: “luta de classes”. E, no entanto, Parasita pouco tem a ver com a reivindicação coletiva de um mundo diferente, e tem muito a ver, por outro lado, com outra venerável tradição social, com esse impulso individual(ista) por prosperar, por integrar-se a uma classe social superior e desfrutar de seus privilégios, o que sempre se chamou de arrivismo.

A coincidência de uma sociedade industrializada e de uma cultura obcecada não apenas pela classe social, mas pelos sinais externos de pertencimento a essa classe, levou que a figura do arrivista tivesse sua representação mais sólida na literatura anglo-saxã a partir da segunda metade do século XIX. A inquietação social produzida pela revolução industrial teve primeiro em Dickens um cronista do movimento inverso, de deixar de pertencer a uma classe, da súbita queda na pobreza por razões fora do controle de seus personagens (David CopperfieldA Pequena Dorrit, os protagonistas de A Casa Soturna). Quando Dickens retrata um arrivista, como Pip em Grandes Esperanças, o faz com tal ternura que mal ousamos dar esse nome a ele, e sua ascensão na escala social está tão fora de seu controle quanto a descida na mesma escada dos outros personagens. Totalmente oposto é o outro grande personagem arrivista do início da era vitoriana, o Barry Lyndon de W. M. Thackeray, este sim, cínico e calculista.



À medida que os exércitos de mão de obra assalariada invadem os cinturões urbanos, o medo de se contaminar pela irrupção dessa humanidade que a classe alta conceitua como impenetrável e animal adota várias formas literárias, desde o mito de Frankenstein (que Franco Moretti diz simbolizar o medo da burguesia em relação ao proletariado) até o romance policial, que nasceu como um gênero naquela época. E o fascínio, surgido do medo e da curiosidade, alimenta a figura do arrivista, um homem do povo com talentos excepcionais (é claro, todo talento de um proletário, camponês etc., será excepcional por definição), que aspira ocupar um lugar o que não lhe corresponde por nascimento (como Judas, O Obscuro, de Thomas Hardy).

Esse fascínio é muitas vezes codificado como erótico: o arrivista ingressa na classe alta por meio de um relacionamento sexual com uma mulher à qual seduz, não por sua adaptação aos novos códigos, mas por seus “erros”. O exemplo clássico é Uma Tragédia Americana, de Theodore Dreiser, que nos lembra que o romance norte-americano herda esse tema do arrivismo e o restitui na grande burguesia industrial, no lugar da aristocracia.


Nesse mundo incerto, no qual um órfão como Heathcliff pode acabar sendo dono do Morro dos Ventos Uivantes, as marcas culturais do pertencimento a uma classe são continuamente vigiadas. Os arrivistas estão em risco permanente de serem descobertos, ridicularizados ou expostos. São traídos pela pele morena, as maneiras ásperas, as agressões à gramática (o protagonista homônimo de Martin Eden), a pronúncia incorreta do alemão (Leonard Bast em Howards End), a roupa gasta ou inadequada.

Auxiliados pela tecnologia moderna e pela permeabilidade moderna dos costumes, os protagonistas de Parasita são praticamente infalíveis e não cometem nenhum dos erros de seus antecessores. Apenas seu odor corporal os trai, o “cheiro de pobre”, como é definido de forma sucinta no filme, sem nenhuma referência às conotações de doença, falta de higiene, amontoamento. Não é apenas um “erro” impossível de corrigir, mas é provavelmente o único erro que jamais será instrumento de sedução. Impedirá a perfeita integração dos perfeitos arrivistas, o que não desencadeará uma luta de classes, mas um massacre coletivo.



Enraizado na tradição literária e cinematográfica do arrivista ou do alpinista social, Parasita se afasta de filmes claramente aparentados com ele, como O Criado, de Joseph Losey, porque não se trata de um “alpinista”, mas de várias. O fato de todos os membros da família se juntarem um por um à trama é uma das chaves do humor do filme e do desconforto que suscita. Parece que poderiam se multiplicar até o infinito, que qualquer pessoa, parente ou não, poderia participar da farsa com a mesma destreza. E talvez seja esse o aspecto o mais subversivo e inovador do filme. No relato clássico, um arrivista individual tenta alcançar uma posição que admira. Para isso, ele deve imitá-la com seu talento e essa imitação é o melhor elogio e legitimação possível da ordem social. A sorte do arrivista se justifica por uma meritocracia que, por sua vez, ratifica os valores que sustentam a hierarquia. Bem dizia Orwell que não acreditaria em ninguém que dissesse admirar a classe operária até vê-lo adotar as maneiras do proletariado à mesa.

Se qualquer um pode imitar o objeto de desejo e se a diferença entre o original e a cópia é algo tão intangível quanto um cheiro que apenas os privilegiados percebem, a exclusividade e a aura são desvalorizadas. Isso poderia levar, como sonhava Walter Benjamin, a uma radical mudança social. Mas, por mais que a crítica a invoque, se a luta de classes não estiver presente, essa desvalorização pode ser apenas mais um sintoma da nova hegemonia audiovisual.

Ana Useros é crítica de cinema e tradutora.

Leituras
Grandes Esperanças, Charles Dickens
Judas, O Obscuro, Thomas Hardy
Uma Tragédia Americana, Theodore Dreiser
Martin Eden, Jack London
A Mansão, E. M. Forster
O Criado, Robin Maugham

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020