segunda-feira, 22 de março de 2021

sexta-feira, 19 de março de 2021

Leila Slimani / “Não se deve ignorar que a miséria provoca violência e loucura”



Leïla Slimani

Leila Slimani: “Não se deve ignorar que a miséria provoca violência e loucura”

Um dos principais nomes da literatura em francês, marroquina é convidada da Flip deste ano


Álex Vicente
12 MAR 2018 - 17:21 COT

Seu avô não via contradição nenhuma entre observar o jejum do Ramadã e depois se fantasiar de Papai Noel para os netos. À mesa familiar se sentavam uma avó alsaciana que falava alemão e um tio judeu a quem a Resistência francesa protegeu durante a Segunda Guerra Mundial. Um avô argelino que havia sido coronel do Exército colonial convivia, ombro a ombro, com outra avó de religião católica, mas que havia peregrinado a Meca. Às vezes brigavam, mas quase sempre conseguiam conviver em paz, inclusive entre risos. Leila Slimani (Rabat, 1981) sonha com uma sociedade que se pareça com essa família. 

Jornalista e autora de vários artigos onde se opõe com virulência ao fundamentalismo islâmico, também assinou dois romances. O último, Canção de Ninar, que será lançado no Brasil pelo selo Tusquets nesta semana, é inspirado no caso real de uma babá que matou as crianças de quem cuidava, ganhou de forma surpreendente o prêmio Goncourt de 2016, fazendo com que Slimani se tornasse da noite para o dia um dos nomes mais promissores das letras francesas. Não à toa, Slimani é uma das convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontecerá entre os dias 25 e 29 de julho. A entrevista a seguir aconteceu em Paris, onde a autora, de educação muçulmana, porém francófona – admite falar mal o idioma árabe –, chegou aos 17 anos para prosseguir seus estudos. Amável, porém reservada, cansada da atenção constante que desperta desde que recebeu o importante prêmio literário francês, afirma que preferiria terminar seu novo ensaio, sobre a vida sexual dos magrebinos, a passar os dias concedendo entrevistas. Diz ter um lema que norteia sua vida: “Minha pena é minha arma”.

Pergunta. O que mudou com o prêmio Goncourt?

Resposta. Agora estou mais ocupada e se presta mais atenção ao que faço. Mas, basicamente, não mudou nada. Nem minha vida nem minha pessoa. É uma honra e uma alegria, mas tento não me tomar por alguém mais importante do que sou. O fundamental é continuar trabalhando. Tenho só 35 anos [agora 36] e toda uma vida pela frente, que penso dedicar à escrita.

P. O prêmio não a fez se sentir legitimada?

R. Não. A literatura é um ofício dominado pela dúvida. Ganhar um prêmio, por mais importante que seja, não imuniza a pessoa contra escrever um romance muito ruim. Por outro lado, é crucial conservar esse sentimento de ilegitimidade, porque é um motor na escrita e na vida. É o que faz você seguir em frente. Perder esse sentimento de impostura seria cair numa armadilha. Para os escritores, essa angústia não é nociva.

P. Depois de receber esse reconhecimento, você declarou que via nele uma tripla dimensão simbólica, por ser mulher, jovem e magrebina.

R. Na verdade, não quero ser símbolo de nada. Os símbolos são imóveis, como as estátuas. E eu não gosto das estátuas. Prefiro ser um modelo ou um exemplo. Graças a esse prêmio talvez haja quem diga a si mesma que ser uma mulher jovem de origem estrangeira não é um obstáculo num mundo como o da literatura, tradicionalmente dominado por homens brancos e mais velhos.

P. Você teve modelos?

R. Quando se escreve, nem sempre é bom tê-los. Adoro Tchekhov, Zweig e Beauvoir, mas quando você se põe a escrever não pode observá-los de longe, com admiração, como se fosse uma criança pequena. Eu diria que meus verdadeiros modelos foram meus pais. Ensinaram-me o que era o humanismo, o respeito pela dignidade humana. Incutiram-me que cada ser é merecedor de respeito, seja ele branco ou negro, velho ou jovem, homem ou mulher. Também me transmitiram o pudor com relação às opiniões políticas e religiosas, a humildade de não aspirar a obrigar os outros a pensarem igual a você.

P. Apesar das diferenças de estilo, forma e estrutura, seu livro parece beber da literatura do século XIX, quando autores como Balzac, Hugo e Zola adotaram Paris como observatório das diferenças sociais.

Leila Slimani: “Não se deve ignorar que a miséria provoca violência e loucura”

R. São referências fundamentais para mim. Graças a eles, quando eu vivia em Rabat soube o que era Paris antes de colocar os pés nela. Para mim é impossível contar o que é Paris sem recorrer a esses autores. Mas, ao mesmo tempo, acredito que não foram uma referência direta. Não os reli para escrever Canção de Ninar, optei por uma escrita mais depurada e menos descritiva. Mas compartilho da ideia que Zola e Balzac apregoaram: todo romancista deve observar os seus contemporâneos e deixar um rastro do que foi a sua época.

P. Quando você observa os seus contemporâneos, o que vê?

R. Vejo uma grande contradição entre as palavras e os fatos. Vejo uma sociedade dividida entre as boas intenções, favorável à diversidade e à igualdade, e uma série de estratos muito antigos, mas plenamente vigentes: a hierarquia social, a luta de classes, a condição das mulheres e sua maneira de confrontar a maternidade… No livro, tentei misturar umas coisas com as outras, sobrepor tempos e problemas diferentes, e depois ver o que acontece.

P. Considera que a desigualdade e a miséria são iguais a dois séculos atrás?

R. Certamente. Quando a gente lê livros sobre Paris ou Londres do século XIX, tem a impressão de que a pobreza e a indignidade eram muito maiores. Mais visíveis, e também mais terríveis. Hoje a mortalidade infantil já não é a mesma, e as crianças são proibidas de trabalhar, mas isso não significa que não continuem acontecendo coisas muito preocupantes.

P. Por exemplo?

R. Acabo de voltar de San Francisco, a cidade que, proporcionalmente, tem o maior número de indigentes do mundo. Que um país tão rico, com tantos recursos e tanto espaço permita isso… E o mais terrível é que eles estão aí, mas se tornaram quase invisíveis. Dormem em plena rua, mortos de fome e drogados, enquanto seus concidadãos passam ao largo, sorvendo um café de seis dólares comprado no Starbucks. Existe uma incrível indiferença com uma parte da população que vive quase como na Idade Média. Só alguns quilômetros os separam do Vale do Silício, um dos lugares mais ricos do mundo, de onde nos dizem sem parar que, graças à tecnologia, todos os problemas serão erradicados. A verdade é que para mim isso parece atroz.

P. No livro, você sugere que essa miséria social, embora nunca justifique um crime, pode ajudar a entendê-lo.

R. De fato, o termo “justificar” é complicado. Mas o trabalho de um artista ou um escritor consiste, como você observa, em tratar de compreender. Não existem razões simples ou binárias para explicar o que acontece no meu livro, mas não se deve ignorar que a miséria provoca violência e loucura, e que pode levar a cometer atos terríveis. Quando alguém fere um animal, este se volta contra seu agressor e é capaz de devorá-lo. Inclusive quando está domesticado.

P. Esse discurso causa rejeição, a começar pela classe política. Depois dos atentados de novembro de 2015 em Paris, o então primeiro-ministro Manuel Valls disse que “tentar compreender é uma forma de começar a desculpar”.

R. Acho muito grave, mas isso não acontece só na França. Qual líder europeu fala hoje sobre as consequências da pobreza? Qual político diz, na Espanha, na Itália ou na Grécia, que essa miséria é suscetível de nos enlouquecer ou de nos levar ao suicídio? O que sabem os nossos políticos dessa miséria?

P. E você, o que sabe dessa miséria?

R. Não a conheço na carne. Mas, como todo escritor, não preciso tê-la vivido pessoalmente para contá-la. Trabalhei muito tempo como jornalista e estive nos lugares. Observei e perguntei. E, sobretudo, aprendi a escutar.

P. Você já disse que cresceu “numa bolha”. A que se refere?

Não tenho problemas em reconhecer que sou covarde e que calo certas coisas por medo de viver uma surpresa desagradável

R. Venho de um ambiente burguês e sem problemas de dinheiro. Passei minha infância e adolescência em um país pobre e quase ditatorial, o Marrocos de Hassan II, mas não estava cega ao que me cercava. Minha mãe era médica e me falou desde pequena dessa miséria. Desde muito pequena eu tinha consciência de que havia gente em situação diferente, que precisava implorar para ter direito a algo. O que quero dizer é que não éramos burgueses idiotas e descerebrados, que também existem.

P. Você recebeu uma educação liberal, mas com contradições. Por exemplo, disseram-lhe que você era dona do seu corpo, mas era proibida de passear a sós com um homem…

R. Essa situação esquizofrênica é própria de todos os países muçulmanos. Existe um abismo entre a esfera pública e a privada. Em público, a pessoa deve se portar de maneira piedosa, segundo a regra moral, guiada por Deus e a religião. Mas, em casa, você pode fazer o que bem entender. Praticar sexo homossexual, usar drogas, contratar prostitutas. Desde que os outros não saibam, não há nenhum problema.

P. Não existe essa dupla moral também no Ocidente?

R. Claro que sim. A diferença é que em Marrocos a pessoa vai para a cadeia por exercer a prostituição ou ser homossexual. O preço que se paga não é comparável. Se meus pais me proibiam certas coisas, não era por motivos morais, e sim legais.

P. Foi difícil se libertar quando chegou a Paris, aos 17 anos?

R. Não, foi um processo muito rápido. Acho que eu estava pronta para me libertar [risos]... A maior diferença foi sentir a liberdade na esfera pública. Sentir-me como um cidadão com uma série de direitos que você pode fazer valer quando precisar.

P. Canção de Ninar também fala da maternidade no século XXI, da dificuldade de ser uma boa mãe e uma boa profissional. É um desafio impossível?

R. Minha geração é a primeira que cresceu acreditando que poderia fazer tudo ao mesmo tempo. Quando você é pequena, acredita nisso. Quando cresce, vê que é bem mais difícil. Se for possível fazer tudo, é com muitos sacrifícios envolvidos. A energia que dedicamos a uma atividade não podemos investi-la na outra. O que eu me pergunto é se a igualdade real passa por viver a mesma vida que um homem, ou se a revolução feminista deveria implicar uma mudança global que imponha uma organização diferente do trabalho e da família. A família continua sendo regida por esquemas de outra época, por hierarquias sociais e modelos pós-coloniais que deveríamos superar.

P. Seu primeiro ofício foi o de jornalista. Você disse certa vez que o deixou por ser “um trabalho muito escravo, no qual não se envelhece bem”.

R. Trabalhar numa redação até os 70 anos não era para mim. É um trabalho que pode enlouquecer a pessoa, porque a gente vê coisas muito fortes diariamente. Eu sou muito sensível. Teria me quebrado ao meio. Em todo caso, ajudou-me muito para escrever meus romances. Venho da escola da reportagem, o que ajuda você a se apagar da paisagem para se limitar a observar. A desenvolver um olhar agudo sobre as pessoas e os lugares. A entender que um gesto, uma roupa ou uma maneira de se sentar podem transmitir muita informação.

P. Você escreveu que nestes tempos conturbados o papel da literatura consiste em fornecer “complexidade e ambiguidade” a um mundo que as rejeita.

A literatura é mais necessária que nunca em um mundo que quer transformar tudo em uma superfície lisa

R. A literatura é um espaço de liberdade imenso, onde se pode dizer tudo, descolando-se das regras morais. Nesse sentido, acho-a mais necessária que nunca. Ela é capaz de opor resistência a um mundo que quer transformar tudo em uma superfície lisa, articular todo conflito num registro em preto e branco. A literatura serve para ressuscitar o humano, que sempre passa pelos tons de cinza.

P. Após publicar seu primeiro romance, você recebeu insultos nas redes sociais por parte de alguns círculos do islamismo. Acusavam-na de ser uma magrebina vendida ao Ocidente.

R. Sim, mas o que mais irritava os fundamentalistas era que eu escrevesse ficção. Consideram que o romance é uma invenção vil, porque se fundamenta numa mentira. Parece surrealista, mas faz certo sentido. Quando ouço um fundamentalista [cristão] opinar sobre a religião, sempre me fala da Virgem e do paraíso como se tivessem existido de verdade. Não percebem que são histórias. E, quando você se atreve a lhe dizer que a Virgem certamente não era virgem, eles enlouquecem. Não têm nenhuma percepção do que é a ficção, o que me parece terrível.

P. Você apoia o modelo ocidental?

R. Não, o que defendo é o desenvolvimento, seja ocidental ou não. Por acaso o Ocidente é mais evoluído, mas esse crescimento não pertence a ninguém em especial. Os ditadores árabes entenderam que, educando as pessoas, corriam o risco de serem derrubados. O fracasso dos países árabes se explica por essa ausência de educação.

P. Você defende esse “islamismo iluminista” pregado por intelectuais como Abdennour Bidar e Malek Chebel?

R. Não, eu defendo o iluminismo puro. Para mim a religião não interessa. Não é problema meu. A religião tem que ser algo íntimo. Se uma mulher quer se trancar na sua casa e colocar uma barraca de camping na cabeça, que faça isso. O que não quero é que me importunem no espaço público. Quando ouço falar de islamismo iluminista não entendo muito bem a que se referem. A religião é mais sombria que luminosa, em especial quanto aos direitos das mulheres. E acontece em todas as religiões, não só no islamismo. É como essa gente que se extasia com o papa Francisco: permitam-me recordar-lhes que ele continua sendo contra o preservativo e o casamento dos homossexuais. Com esse islamismo iluminista acontece o mesmo: não obrigar a sua mulher a colocar o niqab não faz de você um ilustrado.

P. Quando você enfrenta o islamismo em seus artigos e os intitula com frases como “Fundamentalistas, odeio vocês”, você sente medo?

R. Claro que tenho medo. Não sou uma mulher muito corajosa. Eu me preocupo, porque tenho pais e filhos. E porque vivo num mundo onde, às vezes, as ameaças são levadas a cabo. Não tenho problemas em reconhecer que sou covarde e que calo certas coisas por medo de viver uma surpresa desagradável.

P. Qual é o grande desafio deste século com relação às questões de identidade?

R. Bom, eu não acredito na identidade. Não devemos deixar que esse conceito nos defina. Para mim, a identidade é o que alguém transmite à geração que vem depois. Minha identidade é o que deixarei para o meu filho e, muito em breve, para a minha filha. O que ficará de mim são as ideias que lhes transmitirei.

EL PAÍS




domingo, 14 de março de 2021

Leila Slimani / Trecho do livro 'Canção de Ninar'



Leila Slimani

Trecho do livro 'Canção de Ninar'


O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico as­segurou que ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas molinhas. Na ambulância que a transportava ao hospital ela estava agitada, tomada por convulsões. Com os olhos esbu­galhados, parecia procurar o ar. Sua garganta estava cheia de sangue. Os pulmões estavam perfurados e a cabeça tinha bati­do com violência contra a cômoda azul.

Fotografaram a cena do crime. A polícia colheu digitais e mediu a área do banheiro e do quarto das crianças. No chão, o tapete de princesa estava empapado de sangue. O trocador estava meio virado. Os brinquedos foram levados em sacos transparentes e lacrados. Até a cômoda azul será usada no processo.


Leïla Slimani



A mãe estava em choque. Foi o que disseram os bombei­ros, o que repetiram os policiais, o que escreveram os jorna­listas. Ao entrar no quarto onde jaziam os filhos, ela soltou um grito, um grito das profundezas, um uivo de loba. As pa­redes tremeram. A noite se abateu sobre esse dia de maio. Ela vomitou e a polícia a descobriu assim, com a roupa suja, agachada no quarto, soluçando como uma desvairada. Ela uivou até arrebentar os pulmões. O enfermeiro fez um sinal discreto com a cabeça e eles a ergueram, apesar de sua resis­tência, de seus chutes. Eles a levantaram devagar e a jovem residente do samu lhe deu um calmante. Era seu primeiro mês de estágio.

Também foi preciso salvar a outra. Com o mesmo profis­sionalismo, com objetividade. Ela não soube morrer. Ela só soube provocar a morte. Ela seccionou os dois pulsos e cravou a faca na garganta. Perdeu a consciência ao pé do berço. Eles a colocaram em pé, tomaram seu pulso e sua pressão. Eles a puseram na maca e a jovem estagiária comprimiu seu pesco­ço com a mão.

Os vizinhos se reuniram na frente do prédio. Principal­mente as mulheres. É quase hora de ir buscar as crianças na escola. Elas olham a ambulância com os olhos inchados de lá­grimas. Choram e querem saber. Ficam na ponta dos pés. Ten­tam descobrir o que acontece atrás do cordão de isolamento, no interior da ambulância que arranca com todas as sirenes li­gadas. Cochicham informações umas para as outras. O rumor já corre. Algo de ruim aconteceu com as crianças.

É um belo prédio da rue d’Hauteville, no décimo arrondis­sement. Um prédio onde os vizinhos se cumprimentam, sem se conhecer, com bons-dias calorosos. O apartamento dos Massé fica no quinto andar. É o menor apartamento do edi­fício. Paul e Myriam ergueram uma divisória no meio da sala quando o segundo filho nasceu. Eles dormem em um cômodo apertado, entre a cozinha e a janela que dá para a rua. Myriam gosta de móveis chineses e tapetes marroquinos. Na parede, ela pendurou gravuras japonesas.

Hoje ela voltou mais cedo. Encurtou uma reunião e deixou para o dia seguinte a análise de um dossiê. Num assento re­trátil no metrô da linha 7, ela pensava em fazer uma surpresa para os pequenos. Chegando, passou na padaria. Comprou uma baguete, uma sobremesa para as crianças e um bolinho de laranja para a babá. O favorito dela.

Pensava em levá-los ao carrossel. Eles iriam juntos fazer as compras para o jantar. Mila pediria um brinquedo, Adam chuparia uma casquinha de pão sentado no carrinho.

Adam está morto. Mila não vai resistir.


quinta-feira, 11 de março de 2021

Leïla Slimani / “Quanto mais você progride na hierarquia social, mais branca você parece aos olhos dos brancos”

 

Leïla Slimani


Leïla Slimani: “Quanto mais você progride na hierarquia social, mais branca você parece aos olhos dos brancos”


Após o sucesso de ‘Canção de Ninar’, a escritora franco-marroquina publica ‘O País dos Outros’, uma saga inspirada na história de seus avós nos tempos coloniais com a que indaga sobre a “a maldição da mestiçagem”

ALEX VICENTE

01 MAR 2021


Após ganhar o Prêmio Goncourt com Canção de Ninar, análise sociológica do clássico da babá assassina e fenômeno internacional traduzido a 44 línguas, Leïla Slimani (Rabat, 1981) abre com Le Pays des Autres (O País dos Outros, sem tradução ao português) uma nova trilogia sobre a história de sua família. A protagonista é Mathilde, um personagem inspirado em sua avó, uma jovem alsaciana no Marrocos colonial de 1946. Slimani, que mora na França desde os 17 anos, escreve sobre o drama silencioso que conhece de primeira mão: a condição de ser outro.

Pergunta. Até hoje você havia sido reticente a entrar no terreno íntimo e familiar. Por qual motivo?

Resposta. Dou muita importância à imaginação, de modo que me apoiar no autobiográfico me parecia um fracasso. À medida que escrevia mais e lia os diários íntimos e a correspondência de outros autores, percebi que é inevitável reutilizar aspectos pessoais. No fundo, Canção de Ninar também era um livro muito íntimo: eu o escrevi quando tive meu filho, que era cuidado por uma babá, em um momento em que me sentia dividida entre aspirações diferentes.

P. Por vezes, seu registro lembra o realismo mágico, como quando usa o símbolo da limaranja, enxerto de limão e laranja. Os autores latino-americanos a influenciaram?

R. No livro está meu amor por Faulkner e Carson McCullers, por Salman Rushdie e V.S. Naipaul, e também por García Márquez e Vargas Llosa, por Carlos Fuentes e Jorge Amado. Todos esses escritores fazem parte de meu imaginário por suas descrições da natureza, da sexualidade, do espiritual e do inexplicável. Os latino-americanos têm uma maneira de ver o mundo parecida à dos marroquinos. Essa mistura de influências ilustra a ideia da polinização na literatura. Sendo um livro sobre a mestiçagem, seria interessante que a própria escrita também fosse mestiça.

P. Você escreveu um livro sobre uma mulher branca discriminada no Magreb colonial. Era tão difícil ser branca no Marrocos da época como magrebina na França de hoje?


R. O estrangeiro nem sempre é quem se imagina. Ser estrangeiro é uma questão metafísica, a que as mulheres estamos bastante acostumadas: ser mulher já cria por si uma sensação de estranheza e de impostura em muitos momentos. A figura de Mathilde é ambivalente: por um lado representa o dominador, sendo branca, e por outro é marginalizada por ter se casado com um indígena. Nesse momento se considerava que essa mistura de sangue anunciava o fim do mundo. Se todo mundo se misturasse, a pureza deixaria de existir.

P. Precisamente, começa citando Édouard Glissant: “Maldição dessa palavra: mestiçagem. Vamos escrevê-la em caracteres enormes na página”. O que a mestiçagem tem de maldito?

sexta-feira, 5 de março de 2021

Denúncia de maus tratos do romancista Amos Oz à sua filha abala Israel

 

Amos Oz

Denúncia de maus tratos do romancista Amos Oz à sua filha abala Israel

A também escritora Galia Oz conta em uma autobiografia que sofreu contínuos abusos físicos e psíquicos por parte do seu pai, que morreu em 2018



Juan Carlos Sanz
Jerusalém, 23 Fevereiro 2021



“Durante minha infância, meu pai me bateu, me insultou e me humilhou.” A autobiografia da escritora de literatura infantil Galia Oz gerou um forte incômodo em Israel, onde a memória do romancista Amos Oz, morto há pouco mais de dois anos em decorrência de um câncer, é preservada como uma glória nacional com projeção universal e ícone da esquerda pacifista. As acusações, contidas nas páginas do livro Algo disfarçado de amor, não são menores. “Não era uma perda passageira de controle, nem uma bofetada aqui ou acolá, e sim uma rotina sádica”, escreve ela. A comoção causada pela denúncia no Estado judaico se manifestou, porém, com o distanciamento geralmente dedicado aos segredos de família.


Galia Oz, de 56 anos, segunda filha do autor de De amor e trevas, rompeu há sete anos com seu pai e o resto da família. A tensão gerada por sua presença no funeral do escritor, em dezembro de 2018, ainda é recordada na imprensa hebraica. “Seus abusos eram criativos: me arrastava de dentro de casa e me atirava pela escadaria da entrada”, descreve ela no seu livro de memórias. “Poderíamos dizer que me tratava como lixo, mas sem nunca perder a calma. Meu crime era ser eu mesma, por isso o castigo nunca tinha fim, até que ele tinha certeza de que eu estava destruída por dentro.”

Galia Oz


O escritor e jornalista Yehuda Atlas, amigo de Galia Oz, declarou à rádio pública israelense que “tinha ouvido falar dessas histórias [de maus tratos], mas para nós, progressistas de Israel, era difícil de aceitar. Amos Oz era nosso príncipe”. Daniel Oz, músico e poeta, filho mais novo do autor de Judas, deixou no Facebook uma enigmática reflexão: “Meu pai não era um anjo, só um ser humano. O melhor ser humano que conheci. Estou certo ―sei― que há um pingo de verdade nas lembranças de Galia. Não a apaguemos. Não nos apaguemos”.

A posição oficial da família ficou registrada em uma mensagem no Twitter da mais velha dos três filhos do romancista, Fania Oz-Salzberger, historiadora e professora. “Conhecíamos um pai diferente [do descrito por sua irmã mais nova]. Um pai amável e atento, que amava a sua família. As acusações de Galia, cuja dor parece ser real, não correspondem à lembrança, totalmente diferente, que guardamos dele ao longo de todas as nossas vidas.”

Amos Oz, nascido em Jerusalém em 1939, narrou Israel com uma voz original, que tocou a alma de seus compatriotas. O eco de sua obra, traduzida para 45 idiomas, propagou-se por todo o mundo com o reconhecimento de prêmios como o Príncipe de Astúrias (2007) e o Goethe (2008). Mas, embora seu nome figurasse anualmente nos bolões de aposta de Estocolmo, nunca recebeu o maior reconhecimento de todos, o Nobel de Literatura. “Acho que já tive minha cota de prêmios literários”, disse numa entrevista ao EL PAÍS em 2015, “e se não receber o Nobel não vou morrer insatisfeito”.

Sua vida foi um romance. Trocou seu sobrenome paterno, Klausner, pelo de Oz, e abandonou sua família de imigrantes judeus da Europa Oriental para ingressar em um kibutz aos 15 anos. O relato de sua experiência nas fazendas coletivas, que marcaram os primeiros anos do Estado judaico, foi o eixo central de uma obra de juventude que evoluiu para a descrição de personagens arquetípicos, com os quais a sociedade israelense se identifica e que atraíram a atenção de leitores de todo o planeta.

A relação familiar vivida por Amos Oz durante sua infância foi complexa. Esforçou-se para ser “o mais diferente possível” do seu pai, um bibliotecário nacionalista judeu, em busca do sonho do socialismo comunitário no campo. Mergulhada em uma depressão, sua mãe se suicidou quando ele tinha 12 anos. “Acho que há um gene fanático em quase todos nós. O ser humano tenta mudar os outros. Dizemos às crianças: ‘Você tem que ser como eu’”, declarou numa entrevista ao EL PAÍS poucos meses antes de morrer, quando apresentou sua última obra, Caros fanáticos, que definiu como “um legado”.

Pouco mais se sabe da vida privada do escritor mais reconhecido do Israel. Sua amabilidade era proverbial entre os correspondentes da imprensa estrangeira, a quem seduzia gerando manchetes sobre uma solução com dois Estados para o conflito palestino-israelense, ao mesmo tempo em que esmiuçava com habilidade ao longo das conversas a riqueza da obra que sua editora estivesse divulgando.

“Não tive remédio senão tentar superar a violência, o secretismo, o costume de guardar isso tudo para mim e o medo do que dirão”, confessa a filha do escritor em sua autobiografia. “Mas não consegui. Por isso tive que escrever.” Esperou a morte do pai. Alega que ele havia difundido inverdades entre os intelectuais israelenses para desacreditá-la, caso se atrevesse a revelar os maus tratos que diz ter sofrido. Analistas e críticos de sua obra citados pela imprensa local disseram enxergar no romance Conhecer uma mulher, de Oz, um paralelismo entre a filha obstinada e epilética do protagonista ―um ex-espião que acaba de enviuvar― e sua própria filha Galia.

terça-feira, 2 de março de 2021

Mark Twain / Reflexões contra a religião

Mark Twain


“Reflexões contra a religião”, 

de Mark Twain

Fernanda Sampaio Carneiro
19 Fevereiro 2021


Hoje irei convidá- los à reflexão, tal como sugere o livro “”, de Mark Twain. Uma obra curta, só tem 55 páginas, mas muito forte e valente. Twain teve coragem de escrever contra o cristianismo numa época complicada. O que ele viu, é o que vejo. Uma tentativa de que caiam as dos olhos?

O americano Mark Twain (1835- 1910), escreveu as célebres obras, “As aventuras de Tom Sawyer” e “As Aventuras de Huckleberry Finn”, entre outras.



Este livro demorou 53 anos para ser publicado, só depois da morte de Twain (pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens), em 1910. A sua filha, Clara, opôs- se por medo da ira de cristãos próximos, principalmente da reacionária Mary Bake Eddy. Alguns fragmentos foram publicados na biografia do autor em 1912, mas foram adulterados e adocicados para não chocar os leitores da época.

Conhecendo a história da Igreja (qualquer uma cristã) e sabe ler a intencionalidade das suas obras e textos, não pode pertencer a este grupo. É necessário estar num nível de alienação muito grande, fora da realidade e da razão, para cultuar esta religião. Virei em outra ocasião para falar sobre a APOSTASIA, anotem este nome.

Irei transcrever alguns trechos (minha tradução) da edição espanhola. Twain escreveu isto em 1906, perto de falecer:

Nossa Bíblia nos revela o caráter de nosso Deus com exatidão minuciosa e cruel. Trata- se claramente, do retrato de um homem- se é que um homem tão carregado e sobrecarregado de impulsos, cuja maldade vai mais além de todo o ser humano (…) No Antigo Testamento, seus atos revelam, uma e outra vez, sua natureza injusta, avarenta, impiedosa e vingativa. Sempre castiga: castiga delitos insignificantes com uma severidade mil vezes superior; castiga às crianças inocentes por culpa dos seus pais, castiga às populações inocentes por culpa dos seus governos; chega a rebaixar- se e desencadear vinganças sangrentas sobre bezerros, ovelhas, cabras e bois castigando- os por pequenas transgressões de seus proprietários (p. 13).

Sobre a Bíblia, o livro mais “comprado” do mundo, lido já é outra história. Quem lê as escrituras com atenção e senso crítico vai perceber muitas coisas “estranhas”.

Agora um caso particular, ninguém me contou, eu vi o documento com meus próprios olhos: a minha família ancestral foi vítima da maldade e arbitrariedade da Igreja Católica em Portugal. Um dos meus avós, Gabriel, foi encontrado morto num palheiro em Paços do Ferreira, justo no primeiro dia do ano de 1832. Já idoso, havia passado mal e ficado um dia de cama antes de falecer. A filha, Justina, não avisou a Igreja que ele tinha ficado doente, provavelmente porque tenha melhorado, tanto, que saiu para o campo. Ele faleceu sem os sacramentos, sem a extrema- unção, e por isto, Justina teve que pagar 500 réis de multa. Se não puderam receber pelos “sacramentos”, recebiam depois do mesmo jeito em forma de multa. Vocês sabem: os sacramentos não são obrigatoriamente pagos, mas “meus filhinhos, um coração bom e cheio de fé tem que doar à Igreja, pois ajuda os necessitados, e também, a Igreja tem necessidades materiais, Deus irá te recompensar”. Com este discurso, a Igreja católica tornou-se dona de um dos maiores patrimônios da Terra, estima- se que em três trilhões de dólares. No registro do meu avô Gabriel (antepassado direto, 7ª geração), está escrito “pobre”. Eram pessoas simples do campo. Além de não ter dinheiro, de ter perdido o pai em pleno Ano- Novo, ainda foi punida ao invés de consolada. Deus mora entre as paredes de uma Igreja Católica?! Eu tenho certeza que não! Nem no passado e nem no presente.

Os sacramentos não deveriam ser pagos, não? Mas o casamento é um sacramento e custa caríssimo: na cidade de São Paulo, a depender da Igreja e do horário, pode custar entre 600 a 10 mil reais, um super negócio excepcionalmente lucrativo. Quem consegue ganhar tanto por uma hora de trabalho?!

Quem tem parentes portugueses pode procurar registros eclesiásticos no site http://www.tombo.pt. Há também material sobre a vergonhosa Inquisição da Igreja Católica. Eles convertiam, prendiam, expulsavam e matavam quem ia contra a Igreja. Inclusive, muitos portugueses e espanhóis judeus, os sefarditas, fugiram para o Brasil nesta época (1500). Há uma tentativa de reparação histórica dos governos português e também espanhol, onde dão a nacionalidade para quem conseguir provar através da sua árvore genealógica o vínculo com a comunidade judaica. Em tempo: o trâmite na Espanha já foi finalizado, segue só o português.

Twain continua sua explanação sobre Adão e Eva ridicularizando a lei de não comer a maçã, que ele compara ao que se faz numa creche com bebês. Ridículo mesmo e em qualquer tempo. A figura de Adão é apresentada como uma criança de dois anos. Algo absurdo assim: “homens são puros e inocentes e as mulheres são más, frágeis, irresponsáveis e desobedientes, por isto têm que ficar submetidas aos homens”, foi criada da costela do Adão, comeu a maçã… essa é a mensagem subliminar do cristianismo, que sustentou o machismo por milênios.

Veja como tudo é incoerente e inverossímil, mas ainda assim conseguiram convencer os cristãos de algo tão absurdo e ilógico:

Deus idealizou engenhosamente o homem de maneira que não possa evitar obedecer às leis da paixão, de seu apetite e de suas qualidades desagradáveis e indesejáveis. Deus o idealizou também de modo que todas suas idas e vindas estejam semeadas de armadilhas insuperáveis que o obrigue a cometer o que se chama pecados, e depois Deus o castiga por fazer precisamente as coisas que, desde a origem dos tempos, Ele sabia que cometeria.

Agora, Twain critica o quão “misericordioso” é Deus:

“Decretou- se que todos os descendentes de Adão, até o último dia, pagariam as transgressões que cometeu sobre essa lei de creche com que foi fulminado o bebê de fraldas. Durante milhares de anos, sua descendência, indivíduo por indivíduo, foi presa de caça, assediada por mil calamidades em castigo por essa besteira juvenil, que grandiloquentemente, chama- se o Pecado de Adão. E ao longo deste vasto lapso não faltaram rabinos, papas, bispos, padres, párocos nem escravos laicos para aplaudir a infâmia, sustentar sua justiça e retitude intocáveis e cultuar seus autor em termos tão grosseiros e extravagantemente aduladores que ninguém, senão um Deus, seria capaz de escutá- los sem esconder a cara e morrer de desgosto e estupor.

Twain escreveu em 1906 (p.48):

A estes bandidos celestiais, olham o coelho humano em sua ingenuidade, boa fé e falta de lógica, esperando o Céu dito eterno que será sua recompensa por ter suportado pacientemente as privações e sofrimentos que lhes infligiram aqui embaixo sem merecer durante dois ou três anos em alguns casos; cinco ou dez em outros, trinta ou quarenta ou cinquenta em outros; sessenta, setenta, oitenta em outros. Como sempre, quando a Deidade é juíza, as recompensas são enormemente desproporcionais com respeito aos sofrimentos- e de todos os modos, o assunto é sistemático-. Não se obtém mais Céu por haver sofrido oitenta anos que por morrer de sarampo aos três.

Este livro é um dos melhores que já li, recomendo!

Eu não sei quanto tempo este blog vai durar, nem o que vai acontecer com ele no futuro, mas eu não poderia deixar de escrever este texto. Espero que ele sirva para que as pessoas pesquisem e descubram a intencionalidade da Igreja Católica e da Evangélica também (que é igualmente nefasta, assim como todas as religiões da face da Terra), que é manipular as pessoas através do medo, da culpa, do pecado e da punição. Tudo isto é contrário ao amor e à natureza humana, que em essência, é boa. Seja uma boa pessoa: não seja um bom cristão, não lhes renda satisfações, não lhes pague dízimo, eles não são intermediários de Deus, eles são nada, não têm nenhum poder místico ou mágico. A melhor religião? O amor. Ser uma boa pessoa é conectar- se com o bem, não olhar o outro como inimigo, ver o amor nas suas mais variadas formas e nas coisas simples, na natureza. Aí mora Deus. Não é porque você fica de joelhos diante de uma imagem, reza vinte terços, faz promessas e implora perdão, que algo irá acontecer de bom ou ruim por causa disto. Se acontecer, será pura coincidência, iria passar você fazendo isto tudo ou não. Dizer que ama ou pedir desculpas a alguém que você magoou, faz mais milagres que orar a alguma entidade com forma humana, igual de “pecadora” que você. Pecado é um conceito religioso e é uma tremenda bobagem. O pecado só existe se você acreditar. O que existe são humanos que erram e acertam, e isto é natural, não é pecado.

A Igreja não tem nada a ver com religiosidade, é um negócio que deu muito certo e foi se replicando. Foi criada por alguns “espertos” para dominar as massas através de mentiras, crueldade e opressão, para enriquecer e para que seus membros tenham muito poder e que possam viver melhor que reis. E vivem. Mas só se você continuar permitindo.

FALANDO EM LITERATURA