A carreira do roteirista e diretor norte-americano Quentin Tarantino é inegavelmente bem-sucedida, com alguns clássicos contemporâneos na conta — como Cães de aluguel (1992), Pulp fiction (1994) e os dois volumes de Kill Bill, sendo o primeiro de 2003. São nove filmes ao todo — e o mais recente, Era uma vez em Hollywood (2019), acaba de ser adaptado para um romance homônimo. A obra foi traduzida pelo gaúcho André Czarnobai, que conversou com o Rascunho por e-mail.
Na história, ambientada no final de 1969, o ator Rick Dalton e o dublê (assassino, veterano de guerra) Cliff Booth dividem cena com a Família Manson, responsável — no mundo real, não na recriação de Tarantino — pela morte da atriz Sharon Tate, e um sem-fim de referências aos programas, filmes e até produtos da época. Trata-se, grosso modo, de dois amigos às voltas com os perrengues de um mundo em desencanto. “As maiores dificuldades [de tradução] ficaram por conta dessa mistura maluca de personagens (e situações) ficcionais e reais”, explica Czarnobai.
Apesar dessa “mistureba”, bem condizente com a “pegada” de Tarantino enquanto diretor de cinema (afeito aos acenos para clássicos da sétima arte, exageros de todo tipo, diálogos marcantes), o tradutor gaúcho explica: “O texto original era extremamente limpo e fluido, direto ao ponto, sem grandes malabarismos estilísticos”. No português, também, a prosa não parece truncada em nenhum momento.
O livro se desenvolve por meio de recursos literários “simples”, como saltos temporais, lembranças e uma narrativa bem dilatada — percorridas 200 páginas, passa-se somente um dia no tempo da história. Há uma forte impressão, em geral, de que se trata de um escritor começando a lidar com os recursos disponíveis na arte da escrita — o que se evidencia bastante nos momentos que se pretendem mais dramáticos, por exemplo, protagonizados por uma pequena atriz que interpreta Mirabella Lancer.
“Achei um bom livro, com bons personagens e ótima história. Estilo inexiste, voz meio neutra”, comenta Czarnobai. “Achei tudo bem certinho, morninho, sem grandes momentos de genialidade (mas também nada passível de crítica). Bem correto, eu diria. Mas sem brilho”, completa um dos criadores do pioneiro fanzine CardosOnline, o COL, que existiu por 278 edições.
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A prosa do Tarantino, em português, veio bem “limpa”. Teve alguma dificuldade específica na tradução?Que bom saber disso. Sinal de que fiz bem meu trabalho de tradutor. O texto original era extremamente limpo e fluido, direto ao ponto, sem grandes malabarismos estilísticos. Praticamente não teve uso de gírias ou expressões idiomáticas muito obscuras (apesar de ser um livro que se passa nos anos 1970, finzinho dos 60), e eu não lembro sequer de ter de consultar o dicionário com muita frequência. As maiores dificuldades ficaram por conta dessa mistura maluca de personagens (e situações) ficcionais e reais. Tive que fazer bastante pesquisa específica sobre filmes e seriados de TV da época (com uma dificuldade adicional, pois vários deles — sobretudo os com temática de faroeste — não foram exibidos no Brasil). Volta e meia o Tarantino mete um nome de um diretor, produtor, dublê ou até contrarregra real no meio de vários personagens que ele inventou, ou (pior) coloca um personagem fictício num acontecimento real. Isso deu um certo trabalho. Fora isso, algumas referências específicas a produtos (tipo um substituto para o café que um personagem idoso bebe) ou radialistas de Los Angeles. Mas foi só.
• Acha que o Tarantino estreou com uma mão boa para a literatura? O que mais te agradou na obra?Os personagens são ótimos e as situações sensacionais, mas não achei particularmente exuberante o texto em si. Em texto, não achei que ele tem uma voz muito destacada ou marcante.
• Alguma coisa te incomodou nesse livro de estreia, esteticamente falando?Nada em específico. Achei um bom livro, com bons personagens e ótima história. Estilo inexiste, voz meio neutra. Tem um trecho específico em que Cliff Booth entra numa loja de discos pra comprar uma fita (que inclusive não é muito conhecida por aqui, “8-track”) e, como a vendedora é loira como o dublê, ele faz uma analogia muito fora do tom sobre planetas e sóis e órbitas (algo assim). Aquilo me incomodou bastante. De resto, achei tudo bem certinho, morninho, sem grandes momentos de genialidade (mas também nada passível de crítica). Bem correto, eu diria. Mas sem brilho.
• Acompanha o trabalho cinematográfico do Tarantino? Acha que ele pode se tornar um escritor tão cultuado quanto é como roteirista e diretor?}Gostei mais de seus filmes na primeira vez que os vi, embora alguns eu siga revendo e gostando muito (principalmente Bastardos inglórios e Pulp fiction). O último que vi foi Django livre (do qual também gosto), mas não vi nada depois disso. Se ele pode se tornar um escritor tão cultuado quanto roteirista e diretor? Não sei. Pelo que entendi, esse livro não é original, mas sim apenas uma novelização do seu filme (que é uma prática altamente difundida no mercado editorial americano, bastante rara por aqui). Talvez depois que ele lançar um livro com uma história (e um estilo) totalmente originais seja mais justo fazer essa projeção. Nesse primeiro momento acho muito difícil dizer qualquer coisa.
• E aquela incontornável: o livro faz jus ao filme — ou vice-versa?
Não faço a menor ideia, pois não assisti ao filme. Só entendi que o livro contava exatamente a mesma história do filme (e não se propunha a relatar o que aconteceu ou antes ou depois com os personagens) quando estava em dúvida sobre um trecho específico, procurei no Google e caí num link do YouTube para uma cena específica, que então assisti. Fiquei com vontade de assistir ao filme algum dia (algumas sequências parecem ótimas quando as imaginei filmadas), mas sem muita pressa.