Entre a memória e o imaginário surge o pensamento. Nele, cabe a essência de nossas histórias. Esta essência, por alguns audaciosos são escritas, pintadas ou declamadas. Embora seja difícil desenhar a alma de uma pessoa, cabe aos poetas e aos escritores essa difícil tarefa. Para tanto, há quem possa revelar alguns mistérios escondidos na alma? Claro, vai necessitar de muitas lembranças que envolvam o coração. Foi assim, que nasceu uma estrela que se denominava pernambucana. A partir dos 13 anos de idade, Clarice Lispector registra seus pensamentos. Observadora dos detalhes existentes nas relações sociais, Clarice começa a desenhar no seu pensamento as palavras de seu vasto mundo interior.
Andarilha desde seu nascimento, trouxe na sua bagagem, todos as nuvens dos lugares que passou. Por isso, em suas obras, há vestígios de suas fragilidades no percurso da vida. Nascida na Ucrânia, veio com a família para o Brasil para se livrar do desespero da perseguição ao povo Judeu. Primeiro a família aportou na cidade de Maceió, Alagoas, mas, depois veio para a cidade do Recife, Pernambuco. Viveu no Recife dos cinco aos quinze anos, tempo suficiente para declarar seu sentimento à capital Pernambucana. Pela sensibilidade em dizer que era do Recife, construiu em seu universo particular o aporte necessário para elaboração de suas obras. É sabido que na infância nossos sonhos virão brincadeiras. Por isso, “A criança quando brinca não está vivendo nem o passado nem o futuro, e sim, o tempo da eternidade”, segundo a médica francesa da educação Françoise Dolto. Esse tempo de eternidade, tempo infinito, o tempo da infância no Recife, fez instantes eternos na memória de Clarice Lispector. Foi na praça Maciel Pinheiro, que Clarice brincava e se encantava com as belezas do Recife. Sua casa, cor de rosa, ficava em frente à Praça. Foi nela que Clarice brincou, sorriu e chorou. O cenário da praça, os cantos dos pássaros, os pombos, as árvores facilitaram o desabrochar de suas vivências. Porque a praça Maciel Pinheiro alinhavou seus pensamentos.
Igualmente importante foram os intercâmbios culturais ocorridos entre os mais diversos grupos sociais que por lá passaram, como os imigrantes de origem judaica, que, no século passado, se instalaram nas ruas adjacentes à praça e imprimiram práticas vividas até hoje. Entre eles estava Clarice Lispector, que morou na casa de número 347 durante a sua infância e que, no presente, encontra-se representada na escultura situada ao lado do chafariz da praça. O sobrado onde ela cresceu ainda existe e nas suas paredes podem ser vistas artes e mensagens de saudade a Clarice, e votos de que no futuro seja atribuído à edificação um novo uso que homenageie e rememore a trajetória da escritora, revertendo o triste estado de abandono atual.
A praça foi um belo local para uma infância saudável e alegre. Recife com suas pontes e encantos, cercada pelo rio Capibaribe, serviram de cenário para as ideias de Clarice Lispector. Realmente, como diz o escritor pernambucano Raimundo Carrero, o sol do Recife é diferente, é contagiante. Para entendermos Clarice como Pernambucana devemos conhecer os contos - Restos de Carnaval e banhos de mar. Disse ela em seu referido conto:
...Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu...
Recife tem disso, o carnaval é nosso. Só quem nasce com a sobrinha de frevo na mão sabe a imensa alegria de ser folião. Tudo de ruim escapa na época do carnaval.
... Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava...
Nitidamente observamos a importância do humano em Clarice. A escritora Olga Tokarczuk afirma que “O tempo, por sua vez, parece uma ferramenta simples para medir pequenas mudanças, uma régua escolar com escala simplificada de apenas três pontos: foi, é e será.” Clarice traz um mundo pelo passado, presente e futuro. Na verdade Clarice brinca entre o foi, é e será na hora que escreve. Há de se considerar o cotidiano como um dispositivo, como um limite epistemológico para seu processo de criação. De espírito infantil, ainda no belíssimo conto Resto do Carnaval ela continua:
... Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos, já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
Assim, Clarice revela sua essência de menina entre a dor e alegrias. Como todo ser humanos, como a vida. Perigosa e maravilhosa, a vida é assim, humana. Digamos que as obras de Clarice sejam parecidas com as pinturas de Marc Chagall, coloridas e com sentimento de sonho. O russo Chagall, assim como Clarice, vivencia choque de realidades e culturas, proporcionando um sentimento de sonho em suas obras. O sentimento de sonho pelo choque de realidades, fez de Clarice uma escritora que fotografou sua aldeia, pelo seu mundo interior. Clarice também pintava quadros. O que ela queria mesmo, era mostrar os diversos horizontes existentes no ser humano. Como dizia o escritor Júlio Cortázar:
Provavelmente de todos os nossos sentimentos o único que não é verdadeiramente nosso é a esperança. A esperança pertence à vida, é a própria vida se defendendo.
Então, o que faz de Clarice Lispector tão humana? Sua maneira de interpretar os sentimentos? Ou quem sabe como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade, “Tenho apenas duas mãos e sentimento do mundo...” Clarice também carrega esse sentimento, só que, o sentimento do cotidiano do mundo. Há de se considerar que Clarice Lispector é a autora mais citada na internet nesses tempos de pandemia da Covid-19. Tempo de isolamento social. As obras de Clarice evidenciam a maneira do ser humano existir e carregar angustias, sofrimentos e ao mesmo tempo esperança. Bem atual para época de descrenças em todos os sentidos. Tudo isso aponta para a performance de vida da referida escritora, por ter vivido em vários lugares do mundo. Por sua vez, Clarice demonstra mais mistérios do que explicações. Mas, o que seria a vida, então? O mistério não necessita de tradução, só precisa existir. De difícil tradução, Clarice, queria mesmo dizer ao mundo, que era nada além de humana.
De tal modo que a escritora afirma em Água Viva: 'gênero não me pega mais', porque ela rompe realmente com a estrutura dos gêneros literários", explica. "O que me interessa realmente na Clarice é o questionamento que ela faz da linguagem, de seus limites, de sua incapacidade de expressar a vivência humana. Há duas frases dela que são expressivas disso: 'Viver não é relatável' e 'A realidade não tem sinônimos'. A obra dela me parece extremamente importante, porque é inovadora exatamente neste questionamento que faz da linguagem.
Então, Clarice sempre manteve viva sua forma de ver o mundo. “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.” (Clarice Lispector, no livro “A hora da estrela”. Rio de Janeiro: Rocco, 1998).Acreditamos que sua vivência pelo Recife, fez Clarice descobrir o mundo.
“… os dias seguintes eram a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. (Clarice Lispector, no livro “A descoberta do mundo”. (Rio de Janeiro: Rocco, 1999). Assim, como o pernambucano Cícero Dias em sua pintura por volta de 1929, “Eu vi o mundo...Ele começava no Recife”, que agitou o mundo, provocando polémicas. Clarice também tinha esse sentimento, mantendo vivo o Recife dentro de seus pensamentos. Não conseguia fingir, nem fugir das lembranças do Recife.
Pernambuco marca tanto a gente que basta dizer que nada, mas nada mesmo nas viagens que fiz por este mundo contribuiu para o que escrevo. Mas Recife continua firme", escreveu Clarice em A descoberta do Mundo, em trecho destacado por Benjamin Moser na biografia Clarice, (Companhia das Letras). Em diversas ocasiões, tanto em entrevistas quanto na sua produção literária, ela falou da relevância que os dez anos passados em Pernambuco tiveram em sua formação. E a Praça Maciel Pinheiro, em especial o sobrado cor de rosa 387, indica o marco zero da geografia recifense de Clarice Lispector. A infância e o início da adolescência desta então jovem filha caçula de imigrantes ucranianos ocorreu principalmente pelo bairro da Boa Vista, na Rua da Aurora e pelo Cais. O Recife de Clarice é o centro da efervescência intelectual e cultural do modernismo pernambucano. Perto dali se encontrava a Cafeteria Glória, palco do assassinato de João Pessoa em 1930. No mesmo ano deste trágico acontecimento que mudaria os rumos da política nacional com a ascensão de Getúlio Vargas - e na mesma vizinhança -, era inaugurada por Jacob Berenstein a primeira Livraria Imperatriz. Também nos arredores ficava o Colégio Hebreu-Iídiche Brasileiro, onde Clarice estudou até entrar no Ginásio Pernambucano, localizado não muito longe, em 1932.
O Recife sempre efervescente chacoalhava e fazia rebuliço na vida dos intelectuais da época. Também, Recife apresentou para Clarice um “aconchegante coletivo” com diz o sociólogo Zigmund Bauman em seu livro sobre comunidade. No Recife existe a primeira Sinagoga da Américas, o que faz a família Lispector a ideia de pertencimento de lugar. Mas, foi no conto Banhos de Mar que Clarice mergulhou na infância e transmitiu a dor e alegria de seu cotidiano no Recife. Surpreendente e impressionante as nítidas lembranças de Clarice ao descrever a vida na infância, coberta de sentimentos e descobertas. O que a eterna escritora queria mostrar era o seu desabrochar na descoberta do mundo. O nome de batismo de Clarice – Chaya – significa “vida” na língua hebraica (foto: Arquivo-Museu da Literatura Brasileira, Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro). O cenário do mar de Recife e Olinda foram inevitáveis para as observações detalhadas da criança em Clarice. Para G. Tillion, “Basta viver para convencer de que os acontecimentos vividos são a chave dos acontecimentos observados.”
Não só o mar permaneceu vivo em Clarice, mas a urbanidade do Recife, melhor dizendo o “rurbanidade” como dizia o sociólogo Gilberto Freyre. O rural e o urbano foram essenciais para que Clarice escrevesse o romance, A Cidade Sitiada.
A cidade da memória da infância, das lembranças do tempo vivido no Recife, dos arrecifes e das camadas de pedras que guardam a história de um Novo Mundo, a esperança de construção da nova sociedade de muros menos intransponíveis das cadeias invisíveis. Algumas atribuídas ao credo e “questões de raça”. A cidade de pedra, guardadora de almas, como o que fica para trás não pode ser revista. Quem partiu e corre o risco de virar estátua de sal.
Ou seja, a constante mutação de seus personagens e as angustias em suas narrativas fazem de Clarice simplesmente humana. A inconfundível nobreza da escritora está em sua fragilidade e ao mesmo tempo sua vontade de dizer ao mundo sua infinitude. Dizia ela em A paixão segundo G. H. “Eu sou mansa, mas a minha função de viver é feroz.” Havia uma força em Clarice, mesmo que estranha, mas que faz parte de ser no mundo. Mesmo porque, não é fácil viver. De maneira frágil e feroz, Clarice se destaca pela sua fome de viver. ‘Não cumpro nada: apenas vivo. (Clarice Lispector, no livro “Água viva”. Rio de Janeiro: Rocco, 2009)”. Clarice fez aulas de piano, por isso, havia requinte e audácia na ânsia de mostrar seu pensamento através da escrita como uma lucidez perigosa.
A lucidez perigosa Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço. Além do que: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano – já me aconteceu antes. Pois sei que – em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade – essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, Amém.
A subversiva e revolucionária Clarice, revelou ao mundo mais incertezas do que explicações. Talvez, fosse esse o pretexto, porque ela gostava mesmo é de uma verdade inventada. De inquietudes rebuscadas Clarice Lispector não conseguia esconder seus sentimentos, certo que por vezes utilizou códigos, mas, fez questão de mostrar que somos feitos de histórias, sentimentos e cotidianos. “Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventasse-a.” (Clarice Lispector, no livro “A hora da estrela”. Rio de Janeiro: Rocco, 1998).
E, de tanto inventar-se, a eterna Clarice Lispector, é, nada além de humana.
Referências:
Bauman, Z. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. Lispector, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
Lispector. Clarice. Felicidade Clandestina, Ed. Rocco, 1971 – Restos do Carnaval.
Lispector, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Lispector, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Kopenawa, Davi. ALBERT, Bruce. A queda do Céu: Palavras de um Xamã yanomami. 1º ed. São Paulo: Companhia das letras, 2015.
Dissertação de Mestrado de Geórgia Priscila Alves, [O Retrato do recife de Clarica LIispector](O Retrato do recife de Clarica LIispector), Recife 201.
Na sua literatura e lembranças, Clarice Lispector sempre manteve vivo o Recife onde passou a infância.
Por que Clarice Lispector, uma escritora de difícil leitura, é uma das autoras brasileiras mais citadas na internet.