quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Paul Auster / “Não sei se tenho forças para escrever outro romance”

Paul Auster 

Paul Auster: “Não sei se tenho forças para escrever outro romance”

Depois de sete anos, o escritor publica “4321”, que usa elementos autobiográficos de sua infância

Eduardo Lago
2 Set 2017
Autor de cerca de trinta volumes entre poesia, ensaios, roteiros de cinema e livros de memórias, Paul Auster é mais conhecido por sua ficção. Seu décimo-sétimo romance, publicado em inglês no final de janeiro passado, aparece agora em espanhol depois de sete anos de silêncio na ficção – no Brasil o livro ainda não tem data de lançamento, mas já está traduzido para português de Portugalpela editora ASA. Com um título enigmático, 4321 (Seix Barral, traduzido por Benito Gómez Ibáñez) é uma proposta narrativa radicalmente diferente das anteriores. A conversa acontece em uma aconchegante sala de estar de sua casa no Brooklyn, onde vive com sua esposa, a escritora Siri Hustvedt.
“Quando terminei Sunset Park estava mentalmente exausto e decidi deixar passar um tempo antes de escrever outro romance novamente. Eu me dedique a dois livros autobiográficos: Diário de Inverno e Relatório do Interior. Foi uma forma, especialmente com o segundo, de voltar ao território apagado da infância. Era incrível ver como as memórias vinham à tona, não estava consciente de quanto tinha esquecido. Quando terminei esses livros comecei a acariciar a ideia de escrever um romance sobre as primeiras fases da vida de um indivíduo, desde o nascimento até a entrada no mundo dos adultos”.
4321 é um romance insólito dentro do cânone austeriano. Com 960 páginas é, de longe, seu livro mais extenso. O estilo também mudou. A prosa minimalista dá lugar a uma sintaxe arborescente, com frases longas e sinuosas. A base entre filosófica e noir dá lugar a uma narrativa costumbristacom uma ressalva importante. Em vez de uma peripécia argumentativa única recebemos quatro variantes possíveis da história do protagonista. “É a novela mais realista que já escrevi”, admite o autor. “Tudo é direto e imediato, sem truques ou ilusões. A única audácia é a estrutura. Ocorreu-me de repente, um dia quando estava lendo o jornal no meu escritório: em lugar da viagem de uma pessoa desde o nascimento até a idade adulta, contaria quatro caminhos distintos com variações sobre um fundo comum”.
A infância do protagonista de 4321 (ou de seus quatro avatares) tem muito em comum com a de Paul Auster. Archie Ferguson nasceu em Newark, Nova Jersey, em 1947, como seu autor, apenas um mês depois que ele, em uma família de descendentes de imigrantes judeus da Europa Central. “A América dos anos cinquenta foi uma época feliz para mim. Minha grande paixão sempre foi o esporte, mas em paralelo desenvolvi um interesse desmedido pela leitura, algo até certo ponto inexplicável, porque na minha casa ninguém lia”.
– Quais foram os primeiros passos de Paul Auster na literatura? Que leituras foram decisivas na formação de sua sensibilidade?
– Comecei a escrever com nove anos, poemas sem nenhum valor, obviamente, mas que indicam algo importante: a poesia sempre foi uma presença fundamental na minha vida. Escrevi meus primeiros contos quando tinha 10 anos de idade. Aos 12 entreguei um muito longo ao professor e ele pediu que eu lesse em voz alta na frente de toda a classe.
Com 13 anos, leu tudo de Camus e grande parte da obra de Gide, além dos grandes romancistas russos. Duas leituras realizadas aos 15 anos causaram grande impacto nele, Cândido, de Voltaire, e especialmente Crime e Castigo, de Dostoiévski. “Aquele livro me deixou transtornado. Nunca tinha lido nada parecido; quando terminei decidi que se alguém tinha sido capaz de criar algo assim, eu também queria tentar”.
Quando pergunto pelos escritores norte-americanos ativos durante seus anos de formação, Paul Auster volta a fazer uma reivindicação contundente da poesia: “Não me interessavam, só os poetas me atraíam. Durante minha adolescência, a poesia norte-americana passava por uma verdadeira era dourada. Poderia citar muitos nomes: Robert Creeley, Charles Olson, Robert Duncan, George Oppen, Louis Zukovski, W. S. Merwin, Elizabeth Bishop, Robert Lowell, Theodore Roethke, Sylvia Plath. E estou apenas arranhando a superfície, a lista é infinita.”

A escrita exige uma entrega sem fissuras, abrir-se a toda dor e alegria. Fazer isso direito requer coragem moral

Paul Auster não procurava na poesia um veículo para se expressar como criador. Embora tenha publicado livros de poemas, sempre foi consciente de suas limitações. Seu único interesse era se tornar romancista. Por muito tempo esteve convencido de que nunca conseguiria: “Minha ambição era ser capaz de escrever um romance, mas não tinha a preparação e a experiência”, diz ensimesmado. Os anos que passou na Universidade de Columbia foram decisivos. Aos 22 anos já tinha numerosos cadernos completos, que somavam umas mil páginas, contendo o embrião de vários romances: “O material estava lá, mas eu ainda não estava preparado para dar forma, faltava o equipamento mental necessário. Ainda não tinha ideias claras sobre como escrever ficção. Quando terminei a faculdade estava muito frustrado. Cheguei a pensar que nunca seria romancista. Até os 30 anos escrevi poesia e ensaios, mas nem uma única linha de ficção”.
Após a formatura, Auster viajou para a Europa, trabalhou em um petroleiro e passou um tempo na França com a escritora Lydia Davis, que conheceu na faculdade. Eles se casaram em 1974 e se estabeleceram em uma casa de campo no condado de Duchess, Estado de Nova York. Depois de uma difícil convivência, em 1978 eles se separaram. Paul Auster sentiu que tinha atingido o fundo.
“Foi o pior momento da minha vida. Tinha 30 anos, nenhum dinheiro e meu casamento estava afundando. A cada dia aumentava minha convicção de que nunca conseguiria ser escritor. Uma noite no final de dezembro de 1978, meu amigo David Reed, o pintor, me levou para ver uma coreografia e durante o espetáculo senti que se abria uma porta dentro de mim. Ao voltar para casa comecei um longo texto em prosa, Espaços em Branco. Terminei em janeiro, enquanto caía uma nevasca impressionante. Foi uma das noites mais importantes da minha vida. Fui dormir com a sensação de que finalmente podia dizer que era escritor. Na manhã seguinte, domingo, o telefone tocou muito cedo. Meu pai tinha morrido de um ataque cardíaco naquela mesma madrugada. Duas semanas depois, comecei um livro sobre ele. Quando estava terminando conheci a Siri, a pessoa mais importante da minha vida, em uma leitura de poesia”.
Invenção da Solidão (1982) teve uma excelente recepção crítica, mas o mais importante é que devolveu ao escritor a confiança que precisava para voltar aos manuscritos guardados durante anos em sua gaveta. “Era uma massa textual disforme, mas ali estavam os argumentos dos meus primeiros cinco romances. Graças à disciplina e experiência que adquiri escrevendo a Invenção da Solidão, consegui transformá-los na Trilogia de Nova YorkPalácio da Lua e No País das Últimas Coisas”.
Aqueles livros contêm a identidade do primeiro universo narrativo de Paul Auster, uma forma de entender a literatura que fundia as marcas de Kafka, Beckett e Camus com a ficção detetivesca ao estilo de Dashiell Hammett, histórias e argumentos que seguiam desenvolvimentos semioníricos, episódios paradoxais, cheios de insólitas coincidências em um mundo de preocupações existenciais e jogos metafísicos ao mesmo tempo que metaliterários, narrados com límpida elegância.

Às vezes eu me pergunto por que passei a vida trancado quando do lado de fora o mundo está cheio de possibilidades

“A partir de Palácio da Lua tudo é novo”, diz Auster respondendo à sugestão de que realize um resumo rápido de seus romances mais significativos. O genoma de sua escrita é complicado por fábulas como Leviatã(1992) ou fantasias como Mr. Vértigo(1994). Depois deles, o escritor explorou o mundo do cinema fazendo filmes como Cortina de Fumaça (com Wayne Wang) e Sem Fôlego, ambos em 1995. O cinema de Paul Auster é uma espécie de extensão mágica de seu universo narrativo. “Sair do mundo sufocante da escrita e explorar uma nova forma de contar histórias, trabalhando com pessoas, foi uma experiência emocional maravilhosa”, diz. Depois de filmar O Mistério de Lulu (1998), Auster voltou ao mundo da literatura em código de fantasia com Timbuktu. São muitos romances, mas o autor cita os títulos de todos, comentando-os sucintamente. Quando pergunto quais são para ele as maiores conquistas de sua segunda época, responde sem hesitar: “O Livro das Ilusões e Sunset Park”.
A conversa volta naturalmente para 4321. No livro há muitos elementos que vêm diretamente de sua vida: um dos quatro Archie Ferguson morre quando cai sobre ele o galho de uma árvore atingida por um raio. Seu epitáfio é uma página em branco. Os três Ferguson restantes querem ser escritores. Um deles estuda na Universidade de Columbia e entre seus colegas de classe aparecem vários personagens de histórias anteriores de Paul Auster. O romance reconstrói cuidadosamente os protestos estudantis de 1967, que o autor viveu muito de perto.
“Roubo coisas da realidade, como deve fazer todo escritor, episódios da minha vida, como meu primeiro martíni, minha amizade com Pierre Matisse, o galerista, ou a história da dona do prostíbulo no Texas que reciclava preservativos, lavando-os e colocando para secar enfiados em cabos de vassouras. São fatos reais, mas isso não importa. O que importa é o que a ficção faz com eles.”
4321 está cheio de conotações simbólicas. “Queria que fosse publicado quando fizesse 70 anos. Comecei aos 66 anos, a idade que tinha meu pai quando morreu. Viver mais que ele me fez sentir que estava cruzando um limite”. No Diário de Inverno, lemos: “Uma porta foi fechada e outra foi aberta. Você entrou no inverno de sua vida”. Quando é lembrado de suas próprias palavras, o escritor concorda: “Por muito tempo vivi com o fantasma da morte súbita, mas agora já superei.” A poesia, mais uma vez, vem em seu auxílio na hora de explicar o mistério da vida quando, sem saber como, quem a viveu de repente vislumbra o final. Auster citou muitas vezes um verso de George Oppen sobre a velhice que diz: “Que estranho que uma coisa assim aconteça a uma criança”.
Refletindo sobre a solidão inerente ao ofício de escrever, Auster comenta: “Às vezes me pergunto por que passei a vida trancado em um quarto escrevendo quando do lado de fora o mundo está cheio de possibilidades. A escrita exige uma entrega sem fissuras, abrir-se a todas as formas possíveis de dor, de alegria, a todas as emoções que é possível sentir. Fazer isso bem requer coragem moral. Nenhuma outra profissão exige que a pessoa entregue o ser, a alma, o coração e a cabeça sem saber se haverá uma recompensa no final”. Isso significa que nunca mais vai haverá outro romance de Paul Auster? “Não quero afirmar categoricamente, mas não sei se tenho a força necessária para escrever”.


O ACASO E A MORTE


EDUARDO LAGO
De acordo com o momento, Paul Auster invoca quatro histórias diferentes que explicam por que acabou sendo escritor. Em todas o acaso e (exceto em uma) a morte cumprem um papel determinante. Na primeira, o futuro escritor tem oito anos e está perto do estádio dos Giants. Depois de assistir a um jogo de beisebol, está voltando para casa com seus pais quando aparece o lendário Willie Mays na frente dele. Incapaz de controlar a emoção, o pequeno pede um autógrafo. Mays concorda, mas quando chega o momento de assinar, ninguém tem um lápis. Naquele dia tomou a decisão de nunca mais sair na rua sem um lápis, embora não chegou a precisar dele: 52 anos depois, já um autor reconhecido, ganhou de Willie Mays uma bola de beisebol autografada.
Na segunda história, Auster tem 14 anos e está em um acampamento de verão quando uma tempestade o surpreende com alguns companheiros em uma floresta. Pensando que o melhor é procurar abrigo em uma clareira que é acessível apenas passando sob uma cerca de arame farpado, os rapazes decidem passar um de cada vez. Quando o menino que ia na frente dele estava fazendo isso, caiu um raio em cima dele e o eletrocutou. “Naquele dia aprendi que a morte anda à espreita entre nós e pode atacar a qualquer momento. Essa ideia está na base de tudo que escrevo”, diz o escritor no início da longa conversa sobre 4321.
Em outro momento, evocando a figura de seu pai, Auster menciona “sua grande tragédia familiar”. Não a viveu diretamente, mas era inevitável que o escritor acabasse sendo o depositário daquela história. Quando Sam Auster tinha sete anos, sua mãe, avó do escritor, assassinou o marido na cozinha da casa da família. “Meu pai tinha sete anos, era o mais jovem dos irmãos, e teve que viver toda sua vida com aquilo”.
Na quarta história, na qual também aparece seu pai, a morte e o acaso se combinam de maneira diabólica. Na noite que, depois de um bloqueio de 10 anos, Paul Auster finalmente conseguiu escrever um texto em prosa que o deixa satisfeito, seu pai morria de um ataque cardíaco enquanto fazia amor.




domingo, 25 de novembro de 2018

Vargas Llosa / Juízes e presidentes

Fernando Vicente


Juízes e presidentes

Os magistrados peruanos que se atreveram a atacar a corrupção na pessoa dos últimos quatro chefes de Estado estão tentando transformar a realidade do Peru em uma democracia de verdade e sem ladrões

Mario Vargas Llosa
25 nov 2018

O ex-presidente peruano Alan García, cercado pela Justiça devido a supostos casos de má administração e recebimento de propinas durante seu segundo Governo, relacionados à construção do metrô de Lima, optou por pedir asilo na Embaixada do Uruguai alegando ser alvo “de perseguição política”. O pretexto é simplesmente grotesco, porque no Peru de hoje não há um único preso político e ninguém é perseguido por suas ideias ou filiação partidária; e provavelmente nunca houve tanta liberdade de expressão e de imprensa como a que existe hoje no país.
Naturalmente, o outro lado da moeda é que os quatro últimos chefes de Estado são alvo de investigações por suspeita de roubos. Eles se encontram investigados pelo Poder Judiciário, com ordens de prisão e embargo de seus bens, ou foragidos. Por sua vez, o ex-ditador Alberto Fujimori, condenado a 25 anos de prisão por seus crimes, está refugiado sob tratamento intensivo na Clínica Centenário de Lima, de onde, caso saia, voltará para a cadeia da qual o tirou um indulto indevido do ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski. Este último, também com ordem de prisão, é alvo de uma investigação judicial por lavagem de dinheiro, assim como o ex-presidente Ollanta Humala, que, com sua mulher, Nadine, ficou dez meses em prisão preventiva. O outro ex-presidente, Alejandro Toledo, fugiu para os Estados Unidos quando se descobriu que tinha recebido cerca de 20 milhões de dólares (76 milhões de reais) de propinas da Odebrecht, e agora é alvo de um processo de extradição movido pelo Governo peruano.
Essa coleção de presidentes suspeitos de corrupção — eu me acuso de tê-los promovido e haver votado neles, acreditando que fossem honestos — justificaria o mais sombrio pessimismo sobre a vida pública do meu país. No entanto, depois de ter passado oito dias no Peru, volto animado e otimista, com a sensação de que, pela primeira vez em nossa história republicana, há uma campanha eficaz e valente de juízes e procuradores para punir de verdade os presidentes e funcionários desonestos, que aproveitaram seus cargos para cometer crimes e enriquecer. É verdade que nos quatro casos até agora só há presunção de culpa, mas os indícios, principalmente em relação a Toledo e García, são tão evidentes que é muito difícil acreditar em sua inocência.
Como em boa parte da América Latina, o Poder Judiciário no Peru não tinha fama de ser aquela instituição incorruptível e sábia encarregada de zelar pelo cumprimento das leis e punir os crimes; e tampouco de atrair, com seus salários medíocres, os juristas mais capazes. Pelo contrário, a má fama que o rodeava fazia supor que um grande número de magistrados não tinha a formação e a conduta devidas para administrar justiça e merecer a confiança dos cidadãos. No entanto, de algum tempo para cá, uma revolução silenciosa está em andamento no seio do Poder Judiciário, com o surgimento de um punhado de juízes e procuradores honestos e capazes, que, correndo os piores riscos, e apoiados pela opinião pública, conseguiram corrigir aquela imagem, enfrentando os poderosos — tanto políticos como sociais e econômicos — em uma campanha que levantou o ânimo e encheu de esperanças uma grande maioria de peruanos.



A corrupção é hoje o maior inimigo da democracia na América Latina

A corrupção é hoje o maior inimigo da democracia na América Latina, corroendo-a a partir de dentro, desmoralizando a cidadania e semeando a desconfiança em relação a instituições que parecem nada mais do que a chave mágica que transforma as maldades, os crimes e os privilégios em ações legítimas. O que ocorreu no Brasil nos últimos anos foi um anúncio do que poderia ocorrer em todo o continente. A corrupção havia se espalhado por todos os cantos da sociedade brasileira, comprometendo igualmente empresários, funcionários, políticos e gente comum, estabelecendo uma espécie de sociedade paralela, submetida aos piores compromissos e imoralidades, na qual as leis eram sistematicamente violadas em qualquer lugar, com a cumplicidade de todos os poderes. Contra esse estado de coisas se levantou o povo, liderado por um grupo de juízes que, amparados pela lei, começaram a investigar e a punir, enviando para a prisão aqueles que, por seu poder econômico e político, acreditavam ser invulneráveis. O caso da Odebrecht, uma empresa todo-poderosa que corrompeu pelo menos uma dezena de Governos latino-americanos para conseguir contratos multimilionários de obras públicas — sem suas famosas “delações premiadas”, os quatro ex-chefes de Estado peruanos estariam livres de problemas com a Justiça —, transformou-se praticamente no símbolo de toda aquela podridão. É isso que explica o fenômeno Jair Bolsonaro. Não é que 55 milhões de brasileiros tenham se tornado fascistas da noite para o dia, e sim que uma imensa maioria de brasileiros, farta da corrupção que tinha se transformado no ar respirado no Brasil, decidiu votar no que acreditava ser a negação mais extrema e radical daquilo que se chamava de “democracia” e era, pura e simplesmente, uma delitocracia generalizada. O que acontecerá agora com o novo Governo desse caudilho abracadabra? Minha esperança é que pelo menos dois de seus ministros, o juiz Sérgio Moro e o economista liberal Paulo Guedes, moderem-no e o levem a atuar dentro da lei e sem reabrir as portas para a corrupção.
Seria uma vergonha se o Uruguai concedesse asilo a Alan García, que não está sendo investigado por suas ideias e atuações políticas, e sim por crimes tão comuns como receber propinas de uma empresa estrangeira que competia por contratos multimilionários de obras públicas durante seu Governo. Seria como fornecer um álibi de respeitabilidade e vitimização a quem — se for verdade aquilo de que é acusado — contribuiu de forma flagrante para desvirtuar e degradar a democracia que, com justiça, esse país sul-americano se gaba de ter mantido durante boa parte de sua história. O direito de asilo é, sem dúvida, a mais respeitável das instituições em um continente tão pouco democrático como foi a América Latina, uma saída de emergência contra as ditaduras e suas ações terroristas para calar as críticas, silenciar as vozes dissonantes e liquidar os dissidentes. No Peru, conhecemos bem esse tipo de regimes autoritários e brutais que semearam sangue, dor e injustiças durante grande parte de nossa história. Mas, precisamente porque estamos conscientes disso, não é justo nem aceitável que em um período como o atual, no qual, em contraste com aquela tradição, vive-se um regime de liberdades e de respeito à legalidade, o Uruguaiconceda a condição de perseguido político a um dirigente que a Justiça investiga como suposto ladrão.



Seria uma vergonha se o Uruguai concedesse asilo ao ex-presidente peruano Alan García

Os juízes e procuradores peruanos que se atreveram a atacar a corrupção na pessoa dos últimos quatro chefes de Estado contam com um apoio da opinião pública que o Poder Judiciário jamais teve em nossa história. Eles estão tentando transformar a realidade peruana em algo semelhante àquilo que o Uruguai representou durante muito tempo na América Latina: uma democracia de verdade e sem ladrões.





sábado, 10 de novembro de 2018

Vargas Llosa / A marcha da fome



A marcha da fome

As migrações maciças só se reduzirão quando a cultura democrática se estender pela África e demais países do Terceiro Mundo


MARIO VARGAS LLOSA
10 NOV 2018 - 19:10 COT

Quando em 13 de outubro de 2018 saíram da cidade hondurenha de San Pedro Sula, eram umas poucas centenas. Três semanas depois, enquanto escrevo este artigo, são já quase oito mil. Somou-se a eles uma grande quantidade de salvadorenhos, guatemaltecos, nicaraguenses e sem dúvida também alguns mexicanos. Avançaram uns mil e tantos quilômetros, andando dia e noite, dormindo no caminho, comendo o que gente caridosa e tão miserável como eles mesmos lhes oferece ao passarem. Acabam de entrar em Oaxaca, e ainda lhes falta metade do percurso.

São homens e mulheres e crianças pobres, muito pobres, e fogem da pobreza, da falta de trabalho, da violência que antes era só dos maus patrões e da polícia, e agora é, sobretudo, a das maras, essas quadrilhas de foragidos que os obrigam a trabalhar para elas, carregando ou vendendo drogas, e, caso se neguem, matando-os a punhaladas e lhes infligindo atrozes torturas.
Aonde vão? Aos Estados Unidos, claro. Por quê? Porque é um país onde há trabalho, onde poderão economizar e mandar remessas a seus familiares que os salvem da fome e do desamparo centro-americano, porque lá há bons colégios e uma segurança e uma legalidade que em seus países não existe. Sabem que o presidente Trump disse que eles são uma verdadeira praga de meliantes, de estupradores, que trazem doenças, sujeira e violência, e que ele não permitirá essa invasão e mobilizará pelo menos 15.000 policiais, e que, se lhes atirarem pedras, estes dispararão para matar. Mas, não se importam: preferem morrer tentando entrar no paraíso à morte lenta e sem esperanças que os espera onde nasceram, ou seja, no inferno.
O que pretendem é uma loucura, claro. Uma loucura idêntica à dos milhares e milhares de africanos que, após caminharem por dias, meses ou anos, morrendo como moscas no caminho, chegam à beira do Mediterrâneo e se lançam ao mar em balsas, botes e barcaças, apinhados como insetos, sabendo que muitos deles morrerão afogados – já são mais de 2.000 neste ano – e sem poder realizar o sonho que os guia: instalar-se nos países europeus, onde há trabalho, segurança et cetera et cetera.
O avanço dos milhões de miseráveis deste mundo sobre os países prósperos do Ocidente gerou uma paranoia sem precedentes na história, a tal ponto que tanto nos Estados Unidos como na Europa Ocidental ressuscitam fobias que se acreditavam extintas, como o racismo, a xenofobia, o nacionalismo, os populismos de direita e de esquerda e uma violência política crescente. Um processo que, se continuar assim, poderia destruir talvez a mais preciosa criação da cultura ocidental, a democracia, e restaurar aquela barbárie da que acreditávamos nos haver livrado, a que afundou a América Central e a boa parte da África neste horror de que tentam escapar tão dramaticamente seus naturais.
A paranoia contra o imigrante não entende razões e muito menos estatísticas. É inútil que os técnicos expliquem que, sem imigrantes, os países desenvolvidos não poderiam manter seus altos níveis de vida e que em geral – as exceções são escassas – quem emigra costuma respeitar as leis dos países anfitriões e trabalhar muito, precisamente porque neles se trabalha não só para sobreviver, mas também para prosperar, e que este estímulo beneficia enormemente as sociedades que recebem imigrantes. Não é esse o caso dos Estados Unidos? Não foi ao abrir suas fronteiras de par em par quando prosperou e cresceu e se tornou o gigante que é agora? Não foi a Argentina o país mais próspero da América Latina e um dos mais avançados do mundo graças à imigração?
É inútil. Ter medo do imigrante é ter medo “do outro”, do que é diferente por sua língua, ou pela cor da sua pele, ou pelos deuses que venera, e essa alienação se inocula graças à demagogia frenética em que certos grupos e movimentos políticos incorrem de maneira irresponsável, atiçando um fogo no qual poderíamos arder justos e pecadores ao mesmo tempo. Já aconteceu muitas vezes na história, de maneira que deveríamos estar avisados.
O problema da imigração ilegal não tem solução imediata, e tudo o que se diga em contrário é falso, começando pelos muros que Trump queria levantar. Os imigrantes continuarão entrando pelo ar ou pelo subsolo enquanto os Estados Unidos forem esse país rico e com oportunidades, o ímã que os atrai. E o mesmo se pode dizer da Europa. A única solução possível é que os países dos quais os migrantes fogem fossem prósperos, algo que está hoje em dia ao alcance de qualquer nação, mas que os países africanos, centro-americanos e de boa parte do Terceiro Mundo rejeitaram por cegueira, corrupção e fanatismo político. Na América Latina está claríssimo para quem quiser ver. Por que os chilenos não fogem do Chile? Porque lá há trabalho, o país progride muito rápido, e isso gera esperanças para os mais pobres. Por que fogem desesperados da Venezuela? Porque sabem que, nas mãos dos bandidos que hoje a governam, essa desventurada sociedade, que poderia ser a mais próspera do continente, continuará declinando sem remédio. Os países, diferentemente dos seres humanos nos quais a morte põe fim ao sofrimento, podem continuar barbarizando-se indeterminadamente.
Os milhões de pobres que querem chegar para trabalhar nos países do Ocidente prestam uma grande homenagem à cultura democrática, a que os tirou da barbárie em que também viviam há não muito tempo, e da qual foram saindo graças à propriedade privada, ao livre mercado, à legalidade, à cultura, e ao que é o motor de tudo aquilo: a liberdade. A fórmula não caducou, em absoluto, como queriam nos fazer acreditar certos ideólogos catastrofistas. Os países que a aplicam progridem. Os que a rejeitam retrocedem. Hoje em dia, graças à globalização, é ainda muito mais fácil e rápido que no passado. Um bom número de países asiáticos entendeu assim e, por isso, a transformação de sociedades como a sul-coreana, a taiwanesa e a singapuriana é tão espetacular. Na Europa, a Suíça e a Suécia, talvez os países que alcançaram os mais altos níveis de vida no mundo, eram pobres – muito pobres – e no século dezenove enviavam, para ganhar a vida no estrangeiro, migrantes tão desvalidos como os que em nossos dias escapam de Honduras, El Salvador ou Venezuela.
As migrações maciças só se reduzirão quando a cultura democrática se estender pela África e demais países do Terceiro Mundo, e os investimentos e o trabalho elevarem os níveis de vida de modo que nessas sociedades haja a sensação entre os pobres de que é possível sair da pobreza trabalhando. Isso agora está ao alcance de qualquer país, por mais necessitado que seja. Hong Kong o era há um século, e deixou de sê-lo em poucos anos ao se voltar para o mundo e criar um sistema aberto e livre, garantido por uma legalidade muito rigorosa. Tanto que a China Popular respeitou esse sistema, embora reduzindo radicalmente sua liberdade política.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Quem é e onde está a misteriosa mulher que herdou a mansão e a fortuna de Freddie Mercury?

Freddie Mercury com sua amiga (e posterior herdeira) Mary Austin no Royal Albert Hall de Londres, em novembro de 1985

Quem é e onde está a misteriosa mulher que herdou a mansão e a fortuna de Freddie Mercury?

Mary Austin teve uma relação de seis anos com o vocalista do Queen, mas eles foram amigos íntimos até o final. 28 anos depois, ela guarda boa parte de seus milhões — e também de seus segredos



Guillermo Alonso
4 nov 201

Mary Austin (1951) mora numa das maiores casas de um dos bairros mais caros de Londres, rodeada por muros intransponíveis que atraem todo ano admiradores do mundo inteiro. Mas pouco se sabe sobre ela. Provavelmente, a estreia de Bohemian Rhapsody, o filme sobre a vida de Freddie Mercury e a ascensão ao estrelato da banda Queen, dê algumas pistas. Pois se Austin mora ali, é porque Mercury lhe deixou quase toda a fortuna quando morreu, em 1991.

“Os meses posteriores à morte de Freddie foram os mais solitários e difíceis da minha vida. Tive muitos problemas para aceitar que [ele] tinha ido e tudo o que havia me deixado”
Mary Austin

De Freddie Mercury sabemos muito mais. Mesmo 27 anos após sua morte, seu poder de atração e seu fascínio não diminuíram. Para alguns analistas, até aumentaram. De todos os discos que o Queen vendeu nos Estados Unidos (mais de 32 milhões), metade foi após a morte do vocalista. Para muitos, com seu falecimento nasceu a fascinação pela estrela morta, esse fenômeno que faz com que as vendas de um artista atinjam a estratosfera quando o ídolo se vai. Foi assim com Michael Jackson, George Michael e Whitney Houston. Se Mary Austin, a mulher que Freddie Mercury considerou sua “esposa”, é hoje imensamente rica, isso acontece, em parte, graças a esse poder de fascinação que não cessa — e que se traduz em milhões de dólares de direitos autorais todos os anos. Mas, afinal, como começou essa história?

Segundo o documentário Freddie Mercury: The Untold Story, Freddie e o guitarrista Brian May frequentavam nos anos setenta a butique londrina Biba, centro oficial do movimento Swinging London da década anterior. Eles iam até lá para observar as balconistas, famosas na cidade por sua beleza (Anna Wintour, hoje diretora da Vogue USA e mulher mais poderosa do mundo da moda, trabalhou na butique quando jovem). Uma delas era Mary, que Freddie costumava encontrar na loja antes de começarem a sair.
Freddie e Mary moraram juntos, como um casal, durante seis anos. Mas nunca se casaram. Ele contou a ela que era gay em 1976, embora Mary tenha declarado que havia percebido um comportamento estranho nele durante dois anos. “Sabia que não estava sendo sincero consigo mesmo”, disse ela depois.
Quando o cantor abandonou o apartamento que dividiam em West Kesington (Londres) já transformado em cantor mundialmente famoso e milionário, ele comprou para Austin uma casa ali perto e lhe deu emprego como sua assistente pessoal. Freddie se mudou para uma casa na Stafford Terrace, onde morou antes de mudar para aquele que seria seu último lar, Garden Lodge. Ficava perto do apartamento de Mary. Segundo alguns, de lá ele podia inclusive ver a casa de Mary.


Freddie Mercury e Mary Austin, numa festa organizada na casa dele em 1977.
Freddie Mercury e Mary Austin, numa festa organizada na casa dele em 1977. GETTY IMAGES


Mercury começou então a ter relações mais frequentes com homens. Algumas de um jeito mais ambíguo (como a que manteve com o DJ Kenny Everett), outras totalmente sentimentais (Jim Hutton esteve com ele desde 1985 até sua morte). Mas o cantor se referia sempre a Mary como “minha esposa”. “Para mim, foi um casamento. Acreditamos um no outro. Todos os meus amantes me perguntaram por que não poderiam substituir Mary. Porque simplesmente é impossível”, declarou o astro.
Mary também refez sua vida amorosa. Teve dois filhos com um empresário chamado Piers Cameron. Freddie foi padrinho do primogênito, Richard. O segundo, Jamie, nasceu após a morte do cantor. Mas as vidas de Mary e seus dois filhos (ela acabou se separando de Piers) mudaram radicalmente em 24 de novembro de 1991, dia em que Mercury morreu. Com seu testamento, que se tornaria público em maio de 1992, soube-se que o artista deixara a Mary sua mansão de Garden Lodge, avaliada em 22,5 milhões de euros na época (94,5 milhões de reais pelo câmbio atual), e a metade de sua fortuna (e futuros dividendos por direitos autorais), inicialmente estimada em mais de nove milhões de euros (37,8 milhões de reais). Mas é preciso considerar que os membros vivos do Queen continuam fazendo turnês bem-sucedidas, e há um musical de enorme êxito sobre a banda, We Will Rock You. Só em 2014, por exemplo, estima-se que o grupo tenha faturado mais de 54 milhões de euros (130 milhões de reais) em direitos autorais. Grande parte dessa renda anual vai para Mary.


Mary Austin, numa de suas poucas aparições públicas, numa festa em Londres, em 2002.
Mary Austin, numa de suas poucas aparições públicas, numa festa em Londres, em 2002.GETTY IMAGES


Para seu companheiro, Jim Hutton, Freddie deixou 560.000 euros (1,3 milhão de reais). A mesma quantia para seu assistente pessoal, Peter Freestone, e para seu cozinheiro, Joe Fanelli. Para sua irmã, deixou os 25% restantes de seu patrimônio. E aos pais, hoje falecidos, outros 25%.
Mary Austin continua morando em Garden Lodge, a casa de Londres onde Freddie Mercury viveu seus últimos anos e faleceu, perto da estação Earl’s Court do metrô. Trata-se de um lugar de peregrinação para milhares de admiradores. Nos anos noventa, os muros que rodeavam a casa se transformaram no maior santuário do rock, sempre cheio de cartas, mensagens e dedicatórias (Mary Austin retirou-as no ano passado, em meio a grande polêmica, devido à pressão dos moradores desse bairro elegante).
É uma mansão em estilo georgiano com 28 aposentos e um grande jardim. Foi a própria Mary que a escolheu para Freddie. Mas o que seria um sonho para qualquer mortal acabou sendo para ela, segundo declarou numa entrevista em 2000, a pior etapa. “Os meses posteriores à morte de Freddie foram os mais solitários e difíceis de minha vida. Tive muitos problemas para aceitar que ele tinha ido embora e tudo o que tinha me deixado.” Tornar-se rica de repente e lidar com uma mansão e todos os empregados não foram seus únicos problemas: como era de se esperar, outros familiares e amigos de Freddie não entenderam por que ela havia ficado com tanto.
A mãe do cantor, Jer Bulsara, que morreu em 2016, concedeu em 2012 (aos 90 anos) uma terna entrevista para o Daily Telegraph indicando que, ao menos de sua parte, não havia nenhum tipo de rancor pela decisão do filho. “Mary era adorável e costumava vir comer na nossa casa”, contou Bulsara à jornalista Angela Levin. “Eu adoraria que se casassem e tivessem uma vida normal, com filhos. Mas, mesmo quando terminaram, eu sabia que [ela] continuava amando meu filho. Foram amigos até o final. Não a vi mais desde que ele morreu.” A pergunta seguinte da jornalista foi óbvia: “A senhora achou correto ele ter deixado para Mary a maior parte da sua herança milionária?” A mãe de Freddie respondeu: “Por que não? Ela era como sua família, e ainda é.”

“Para mim, foi um casamento. Acreditamos um no outro. Todos os meus amantes me perguntaram por que não poderiam substituir Mary. Porque simplesmente é impossível”
Freddie Mercury

Mary tem hoje 68 anos e um dos segredos mais bem guardados do rock: o lugar onde jogou as cinzas do vocalista do Queen. As teorias são várias: as cinzas teriam sido espalhadas no jardim japonês da mansão em Londres, jogadas num lago suíço aonde Freddie ia às vezes em busca de paz, regressado a Zanzibar (onde Freddie nasceu, já que seu pai trabalhava para a britânica Secretaria das Colônias), e por aí vai.
Sobre isso, Mary guarda um silêncio tão férreo quanto os muros que rodeiam a mansão herdada da grande estrela do rock.


PESSOA
25 anos da morte de Freddie Mercury /  Assim viveu seus últimos dias

DE OTROS MUNDOS