Paul Auster FOTO DE EDU BAYER |
Paul Auster: “Não sei se tenho forças para escrever outro romance”
Depois de sete anos, o escritor publica “4321”, que usa elementos autobiográficos de sua infância
Eduardo Lago
2 Set 2017
Autor de cerca de trinta volumes entre poesia, ensaios, roteiros de cinema e livros de memórias, Paul Auster é mais conhecido por sua ficção. Seu décimo-sétimo romance, publicado em inglês no final de janeiro passado, aparece agora em espanhol depois de sete anos de silêncio na ficção – no Brasil o livro ainda não tem data de lançamento, mas já está traduzido para português de Portugalpela editora ASA. Com um título enigmático, 4321 (Seix Barral, traduzido por Benito Gómez Ibáñez) é uma proposta narrativa radicalmente diferente das anteriores. A conversa acontece em uma aconchegante sala de estar de sua casa no Brooklyn, onde vive com sua esposa, a escritora Siri Hustvedt.
“Quando terminei Sunset Park estava mentalmente exausto e decidi deixar passar um tempo antes de escrever outro romance novamente. Eu me dedique a dois livros autobiográficos: Diário de Inverno e Relatório do Interior. Foi uma forma, especialmente com o segundo, de voltar ao território apagado da infância. Era incrível ver como as memórias vinham à tona, não estava consciente de quanto tinha esquecido. Quando terminei esses livros comecei a acariciar a ideia de escrever um romance sobre as primeiras fases da vida de um indivíduo, desde o nascimento até a entrada no mundo dos adultos”.
4321 é um romance insólito dentro do cânone austeriano. Com 960 páginas é, de longe, seu livro mais extenso. O estilo também mudou. A prosa minimalista dá lugar a uma sintaxe arborescente, com frases longas e sinuosas. A base entre filosófica e noir dá lugar a uma narrativa costumbristacom uma ressalva importante. Em vez de uma peripécia argumentativa única recebemos quatro variantes possíveis da história do protagonista. “É a novela mais realista que já escrevi”, admite o autor. “Tudo é direto e imediato, sem truques ou ilusões. A única audácia é a estrutura. Ocorreu-me de repente, um dia quando estava lendo o jornal no meu escritório: em lugar da viagem de uma pessoa desde o nascimento até a idade adulta, contaria quatro caminhos distintos com variações sobre um fundo comum”.
A infância do protagonista de 4321 (ou de seus quatro avatares) tem muito em comum com a de Paul Auster. Archie Ferguson nasceu em Newark, Nova Jersey, em 1947, como seu autor, apenas um mês depois que ele, em uma família de descendentes de imigrantes judeus da Europa Central. “A América dos anos cinquenta foi uma época feliz para mim. Minha grande paixão sempre foi o esporte, mas em paralelo desenvolvi um interesse desmedido pela leitura, algo até certo ponto inexplicável, porque na minha casa ninguém lia”.
– Quais foram os primeiros passos de Paul Auster na literatura? Que leituras foram decisivas na formação de sua sensibilidade?
– Comecei a escrever com nove anos, poemas sem nenhum valor, obviamente, mas que indicam algo importante: a poesia sempre foi uma presença fundamental na minha vida. Escrevi meus primeiros contos quando tinha 10 anos de idade. Aos 12 entreguei um muito longo ao professor e ele pediu que eu lesse em voz alta na frente de toda a classe.
Com 13 anos, leu tudo de Camus e grande parte da obra de Gide, além dos grandes romancistas russos. Duas leituras realizadas aos 15 anos causaram grande impacto nele, Cândido, de Voltaire, e especialmente Crime e Castigo, de Dostoiévski. “Aquele livro me deixou transtornado. Nunca tinha lido nada parecido; quando terminei decidi que se alguém tinha sido capaz de criar algo assim, eu também queria tentar”.
Quando pergunto pelos escritores norte-americanos ativos durante seus anos de formação, Paul Auster volta a fazer uma reivindicação contundente da poesia: “Não me interessavam, só os poetas me atraíam. Durante minha adolescência, a poesia norte-americana passava por uma verdadeira era dourada. Poderia citar muitos nomes: Robert Creeley, Charles Olson, Robert Duncan, George Oppen, Louis Zukovski, W. S. Merwin, Elizabeth Bishop, Robert Lowell, Theodore Roethke, Sylvia Plath. E estou apenas arranhando a superfície, a lista é infinita.”
A escrita exige uma entrega sem fissuras, abrir-se a toda dor e alegria. Fazer isso direito requer coragem moral
Paul Auster não procurava na poesia um veículo para se expressar como criador. Embora tenha publicado livros de poemas, sempre foi consciente de suas limitações. Seu único interesse era se tornar romancista. Por muito tempo esteve convencido de que nunca conseguiria: “Minha ambição era ser capaz de escrever um romance, mas não tinha a preparação e a experiência”, diz ensimesmado. Os anos que passou na Universidade de Columbia foram decisivos. Aos 22 anos já tinha numerosos cadernos completos, que somavam umas mil páginas, contendo o embrião de vários romances: “O material estava lá, mas eu ainda não estava preparado para dar forma, faltava o equipamento mental necessário. Ainda não tinha ideias claras sobre como escrever ficção. Quando terminei a faculdade estava muito frustrado. Cheguei a pensar que nunca seria romancista. Até os 30 anos escrevi poesia e ensaios, mas nem uma única linha de ficção”.
Após a formatura, Auster viajou para a Europa, trabalhou em um petroleiro e passou um tempo na França com a escritora Lydia Davis, que conheceu na faculdade. Eles se casaram em 1974 e se estabeleceram em uma casa de campo no condado de Duchess, Estado de Nova York. Depois de uma difícil convivência, em 1978 eles se separaram. Paul Auster sentiu que tinha atingido o fundo.
“Foi o pior momento da minha vida. Tinha 30 anos, nenhum dinheiro e meu casamento estava afundando. A cada dia aumentava minha convicção de que nunca conseguiria ser escritor. Uma noite no final de dezembro de 1978, meu amigo David Reed, o pintor, me levou para ver uma coreografia e durante o espetáculo senti que se abria uma porta dentro de mim. Ao voltar para casa comecei um longo texto em prosa, Espaços em Branco. Terminei em janeiro, enquanto caía uma nevasca impressionante. Foi uma das noites mais importantes da minha vida. Fui dormir com a sensação de que finalmente podia dizer que era escritor. Na manhã seguinte, domingo, o telefone tocou muito cedo. Meu pai tinha morrido de um ataque cardíaco naquela mesma madrugada. Duas semanas depois, comecei um livro sobre ele. Quando estava terminando conheci a Siri, a pessoa mais importante da minha vida, em uma leitura de poesia”.
A Invenção da Solidão (1982) teve uma excelente recepção crítica, mas o mais importante é que devolveu ao escritor a confiança que precisava para voltar aos manuscritos guardados durante anos em sua gaveta. “Era uma massa textual disforme, mas ali estavam os argumentos dos meus primeiros cinco romances. Graças à disciplina e experiência que adquiri escrevendo a Invenção da Solidão, consegui transformá-los na Trilogia de Nova York, Palácio da Lua e No País das Últimas Coisas”.
Aqueles livros contêm a identidade do primeiro universo narrativo de Paul Auster, uma forma de entender a literatura que fundia as marcas de Kafka, Beckett e Camus com a ficção detetivesca ao estilo de Dashiell Hammett, histórias e argumentos que seguiam desenvolvimentos semioníricos, episódios paradoxais, cheios de insólitas coincidências em um mundo de preocupações existenciais e jogos metafísicos ao mesmo tempo que metaliterários, narrados com límpida elegância.
Às vezes eu me pergunto por que passei a vida trancado quando do lado de fora o mundo está cheio de possibilidades
“A partir de Palácio da Lua tudo é novo”, diz Auster respondendo à sugestão de que realize um resumo rápido de seus romances mais significativos. O genoma de sua escrita é complicado por fábulas como Leviatã(1992) ou fantasias como Mr. Vértigo(1994). Depois deles, o escritor explorou o mundo do cinema fazendo filmes como Cortina de Fumaça (com Wayne Wang) e Sem Fôlego, ambos em 1995. O cinema de Paul Auster é uma espécie de extensão mágica de seu universo narrativo. “Sair do mundo sufocante da escrita e explorar uma nova forma de contar histórias, trabalhando com pessoas, foi uma experiência emocional maravilhosa”, diz. Depois de filmar O Mistério de Lulu (1998), Auster voltou ao mundo da literatura em código de fantasia com Timbuktu. São muitos romances, mas o autor cita os títulos de todos, comentando-os sucintamente. Quando pergunto quais são para ele as maiores conquistas de sua segunda época, responde sem hesitar: “O Livro das Ilusões e Sunset Park”.
A conversa volta naturalmente para 4321. No livro há muitos elementos que vêm diretamente de sua vida: um dos quatro Archie Ferguson morre quando cai sobre ele o galho de uma árvore atingida por um raio. Seu epitáfio é uma página em branco. Os três Ferguson restantes querem ser escritores. Um deles estuda na Universidade de Columbia e entre seus colegas de classe aparecem vários personagens de histórias anteriores de Paul Auster. O romance reconstrói cuidadosamente os protestos estudantis de 1967, que o autor viveu muito de perto.
“Roubo coisas da realidade, como deve fazer todo escritor, episódios da minha vida, como meu primeiro martíni, minha amizade com Pierre Matisse, o galerista, ou a história da dona do prostíbulo no Texas que reciclava preservativos, lavando-os e colocando para secar enfiados em cabos de vassouras. São fatos reais, mas isso não importa. O que importa é o que a ficção faz com eles.”
4321 está cheio de conotações simbólicas. “Queria que fosse publicado quando fizesse 70 anos. Comecei aos 66 anos, a idade que tinha meu pai quando morreu. Viver mais que ele me fez sentir que estava cruzando um limite”. No Diário de Inverno, lemos: “Uma porta foi fechada e outra foi aberta. Você entrou no inverno de sua vida”. Quando é lembrado de suas próprias palavras, o escritor concorda: “Por muito tempo vivi com o fantasma da morte súbita, mas agora já superei.” A poesia, mais uma vez, vem em seu auxílio na hora de explicar o mistério da vida quando, sem saber como, quem a viveu de repente vislumbra o final. Auster citou muitas vezes um verso de George Oppen sobre a velhice que diz: “Que estranho que uma coisa assim aconteça a uma criança”.
Refletindo sobre a solidão inerente ao ofício de escrever, Auster comenta: “Às vezes me pergunto por que passei a vida trancado em um quarto escrevendo quando do lado de fora o mundo está cheio de possibilidades. A escrita exige uma entrega sem fissuras, abrir-se a todas as formas possíveis de dor, de alegria, a todas as emoções que é possível sentir. Fazer isso bem requer coragem moral. Nenhuma outra profissão exige que a pessoa entregue o ser, a alma, o coração e a cabeça sem saber se haverá uma recompensa no final”. Isso significa que nunca mais vai haverá outro romance de Paul Auster? “Não quero afirmar categoricamente, mas não sei se tenho a força necessária para escrever”.
O ACASO E A MORTE
EDUARDO LAGO
De acordo com o momento, Paul Auster invoca quatro histórias diferentes que explicam por que acabou sendo escritor. Em todas o acaso e (exceto em uma) a morte cumprem um papel determinante. Na primeira, o futuro escritor tem oito anos e está perto do estádio dos Giants. Depois de assistir a um jogo de beisebol, está voltando para casa com seus pais quando aparece o lendário Willie Mays na frente dele. Incapaz de controlar a emoção, o pequeno pede um autógrafo. Mays concorda, mas quando chega o momento de assinar, ninguém tem um lápis. Naquele dia tomou a decisão de nunca mais sair na rua sem um lápis, embora não chegou a precisar dele: 52 anos depois, já um autor reconhecido, ganhou de Willie Mays uma bola de beisebol autografada.
Na segunda história, Auster tem 14 anos e está em um acampamento de verão quando uma tempestade o surpreende com alguns companheiros em uma floresta. Pensando que o melhor é procurar abrigo em uma clareira que é acessível apenas passando sob uma cerca de arame farpado, os rapazes decidem passar um de cada vez. Quando o menino que ia na frente dele estava fazendo isso, caiu um raio em cima dele e o eletrocutou. “Naquele dia aprendi que a morte anda à espreita entre nós e pode atacar a qualquer momento. Essa ideia está na base de tudo que escrevo”, diz o escritor no início da longa conversa sobre 4321.
Em outro momento, evocando a figura de seu pai, Auster menciona “sua grande tragédia familiar”. Não a viveu diretamente, mas era inevitável que o escritor acabasse sendo o depositário daquela história. Quando Sam Auster tinha sete anos, sua mãe, avó do escritor, assassinou o marido na cozinha da casa da família. “Meu pai tinha sete anos, era o mais jovem dos irmãos, e teve que viver toda sua vida com aquilo”.
Na quarta história, na qual também aparece seu pai, a morte e o acaso se combinam de maneira diabólica. Na noite que, depois de um bloqueio de 10 anos, Paul Auster finalmente conseguiu escrever um texto em prosa que o deixa satisfeito, seu pai morria de um ataque cardíaco enquanto fazia amor.