Jan Didion, seu marido e filha em sua casa de Los Angeles em 1968 JULIAN WASSE |
A última fronteira de Joan Didion
O ator Griffin Dunne estreia um documentário sobre sua tia, uma lenda do Novo Jornalismo
ELSA FERNÁNDEZ-SANTOS
29 OUT 2017 - 09:39 COT
O documentário Joan Didion: The Center Will Not Hold (Joan Didion: o Centro Cederá), dirigido pelo sobrinho da escritora, o ator e cineasta Griffin Dunne, indaga sobre a vida da mulher que nos anos sessenta trouxe sensibilidade californiana ao Novo Jornalismo e que quatro décadas depois viu sua fama se revigorar com uma dissecação arrepiante da dor: O Ano do Pensamento Mágico (2005), que se centrava na perda de seu marido, o escritor John Gregory Dunne, e na doença de sua filha, Quintana Roo Dunne, cujo fatal desenlace inspiraria também Noites Azuis(2011).
Acompanhada de seu terrier, Didion (Sacramento, Califórnia, 1934) vive o presente rodeada de recordações, comendo como um passarinho e combatendo suas incessantes enxaquecas. Em sua mesa de trabalho há emolduradas duas notas manuscritas da filha. Em uma delas se lê: “Querida mamãe, era eu quem fugia quando você abriu a porta”.
A escritora admite à câmera que ainda se sente culpada por essa morte (“Era adotada, tinha sido dada a mim para que cuidasse dela, e falhei”). Afirma que escreveu sobre o sofrimento “porque ninguém tinha me explicado o que era” e confessa que espera o final da vida sem medo: “Uma das principais preocupações é as pessoas que deixamos para trás. Eu não deixo ninguém”. Didion assume com distanciamento que sua figura delgada e pequena se agigantou ao aplicar à morte de seus dois seres queridos seu instinto de repórter. Diante das trevas da depressão e da falta de senso, buscou um sentido e sem se propor lançou luz a um pranto universal.
"Falar de Joan é falar de nossos próprios mortos", diz Dunne, lembrando sua irmã, estrangulada pelo ex-namorado
Sentado no terraço da cafeteria ucraniana Veselka, instituição do East Village nova-iorquino famosa por seu gulash, Griffin Dunne (Nova York, 1955) fala de seu pai falecido, o produtor e escritor Dominick John Dunne, e de sua irmã, a atriz Dominique Ellen Dunne, estrangulada pelo ex-namorado no início dos anos oitenta, quando tinha 22 anos. “É curioso, sempre acontece o mesmo. Falar de Joan é falar de nossos próprios mortos”, reconhece em um momento da entrevista.
Além do mais, naquela manhã de setembro um cadáver inesperado se sentou à mesa, o do ator Harry Dean Stanton. “Nós ficamos mais velhos”, lamentou Dunne. “Sinto falta de atores como Harry, com história em seu rosto. Ele a tinha há muitos anos. Tomara que meu rosto também acabe sendo um mapa de vida. Conhecido como intérprete, entre outros em Depois de Horas (1985), de Martin Scorsese, como diretor por joias como a comédia romântica A Lente do Amor(1997) ou, mais recentemente, pela série I Love Dick, onde interpreta um intelectual com problemas, Dunne é uma personalidade atraente e atípica na indústria do cinema.
A seu ver, o segredo de Joan Didion remonta à última fronteira, a terra de Sacramento. Didion cresceu escutando as histórias de seus antepassados, que tinham feito parte do que se conhece como a expedição Donner, malogrado grupo de pioneiros que a caminho da Califórnia modificou sua rota até ficar preso nas montanhas de Nevada. Mais da metade morreu, o resto sobreviveu comendo os mortos. A família de Didion se negou a seguir o atalho, completando por sua conta o resto do caminho até a fronteira. “Cresci escutando todos os adjetivos possíveis sobre a força, ou o que for, de Joan”, explica Dunne. “E, sim, ela é tudo isso que irradia, mas acho que o segredo é genético, procede de um entorno duro de verdade. E desde menina escuto todas aquelas histórias que determinaram sua construção moral. Joan adora a palavra caráter, e isso é ela, alguém com verdadeiro caráter.” Com cinco anos, Didion escreveu sobre uma mulher que se congelava no Ártico e outra que derretia no deserto, sua imaginação só entendia de extremos. “De alguma forma, a Califórnia sempre permaneceu impenetrável para mim”, diz no filme. “Acaso não somos a paisagem na qual crescemos? Tudo o que eu sou, faço ou penso está nessa paisagem.”
A primeira lembrança de Dunne é de sua infância, quando durante uma refeição zombaram dele e ela permaneceu séria enquanto os demais adultos gargalhavam. “Serei grato a ela por toda a vida”, diz. “Durante muitos anos John e Joan eram a mesma pessoa para todos nós. Não se separavam nunca. Mas eu sempre me senti muito próximo dela. Por uma razão estranha sempre me incluíram em sua vida, também a social. Quando eu tinha 12 anos, Joan deu uma festa na qual iria Janis Joplin. Ela sabia o quanto eu gostava de Janis e disse à minha mãe que me levasse com eles. Foi uma experiência que não esquecerei jamais, lembro de cada detalhe como se fosse ontem. Receio que os demais estavam chapados demais para se lembrar de algo.”
O ator Harrison Ford rememora seus anos de carpinteiro, quando ampliou a biblioteca e a casa de Malibu da escritora: “Apesar de não ser como eles, sempre me incluíam e minha jovem família em sua vida. Convidavam-nos para suas festas. Eram mais inteligentes e mais cultos, mas nunca nos trataram diferente por isso.” Mas talvez o instante mais tocante seja protagonizado por Vanessa Redgrave, que em 2008 interpretou na Broadway uma peça baseada em O Ano do Pensamento Mágico. Repassando um álbum de fotos familiares, as duas idosas lembram de Natasha Richardson, a filha de Redgrave que faleceu em um acidente de esqui em 2009. Redgrave admite que para ela nada mais é o mesmo, mas interrompe a via do drama com um corte que faz as duas rirem: “Entendi algo que até então não podia compreender, e é que a gente não se pode permitir ser uma alma em sofrimento”.
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