sábado, 30 de junho de 2018

Vargas Llosa / A literatura e as estrelas



A literatura e as estrelas

Os astrônomos são seres estranhos, que dormem de dia e trabalham à noite e que, como os vampiros, operam nas sombras, e a luz que os guia não é deste mundo


Mario Vargas Llosa
30 Jun 2018

O ponto mais alto em La Palma (Ilhas Canárias) fica a cerca de 2.400 metros, no Roque de los Muchachos, rochedos que à distância e com um pouco de imaginação parecem figuras humanas. Aqui se respira um ar tão puro quanto o de Arequipa, a terra em que nasci, e é muito bonito contemplar, lá embaixo, a nossos pés, um colchão de nuvens que se estende como um mar em todas as direções até o remoto horizonte. Mas o mais pitoresco do lugar talvez sejam alguns corvos sociáveis que posam faceiros para as fotografias dos turistas em troca de um punhado de comida.
Aparentemente este pedaço de terra tem o clima mais diáfano da Europa e talvez do mundo, e isso explica a existência do Observatório, composto de enormes telescópios noturnos e solares construídos neste pico por diversos países e que, desde meados dos anos oitenta do século passado, atraem para cá astrônomos de todo o planeta. São seres estranhos, que dormem de dia e trabalham à noite e que, como vampiros, operam nas sombras, e a luz que os guia não é deste mundo, mas lá de cima, muito lá em cima, emitida agora ou há milhões de anos pelos astros que navegam (ou navegaram antes de desaparecer) pelo universo infinito.
Se a beleza desta ilha, uma das menores das Canárias, com seus bosques, praias, morros e parques naturais é grande durante o dia, o verdadeiro milagre acontece com a chegada da escuridão, quando o céu vai se povoando de uma miríade infinita de estrelas, constelações, planetas, luzes que relampejam, apagando e acendendo e, como no Aleph borgiano, tomamos a tremenda consciência de que ali, em cima de nossa cabeça, está o universo infinito. A coisa é ainda mais espetacular quando, com a ajuda das lentes dos telescópios, se começa a navegar pelos espaços siderais e se aproxima daqueles bólidos e, por exemplo, se tem a sensação de ser um astronauta que passeia pelo céu rugoso da Lua, entre crateras gigantescas, obra dos meteoros que a bombardearam ao longo dos milhões de anos de existência que tem essa aglomeração de planetas.




Não é avassalador e paralisante trabalhar em um campo que abrange o infinito desmedido?

Creio que nos dois dias que passei por ali aprendi mais do que em todas as outras viagens que já fiz em minha vida. Por exemplo, que nada se parece tanto à literatura quanto a astronomia, porque em ambas a imaginação é tão importante quanto o conhecimento e que, sem aquela, este não evoluiria em absoluto. Os astrônomos do Observatório e, em especial, seu diretor, o professor Rafael Rebolo López, armados de paciência e sabedoria, dão respostas eloquentes a todas as minhas perguntas, que sempre suscitam novas perguntas e, assim, a conversa ultrapassa a frágil fronteira que nessa disciplina separa (e com frequência confunde) a física da metafísica.
Não é avassalador e paralisante trabalhar em um campo que abrange o infinito desmedido, o tempo sem tempo que é a eternidade? Sim, talvez. Mas, para evitar a paralisia, surgiu a teoria do Big Bang, que estabelece um ponto de partida —uma explosão da matéria ocorrida há mais de treze bilhões de anos e que prossegue sua eterna expansão pelo espaço sem fim— para essa eternidade e, que apesar de ambos os conceitos serem incompatíveis, permite aos cientistas trabalhar com menos incerteza. E se a teoria do Big Bang for popperianamente “desmentida” em um dado momento? Surgirá outra que retificará o que foi alcançado até o momento e permitirá progredir por uma via diferente. Não é essa a história de todas as ciências, sem exceção?
Alguns astrônomos chegaram a encontrar vida, ou sintomas de vida, em algum outro astro do universo? Não, em nenhum. Mas isso não permite afirmar de forma definitiva que só a Terra tem semelhante privilégio, entre outros motivos porque os cientistas realmente encontraram em astros disseminados por vários pontos do espaço quase todos os elementos constituintes necessários para a vida. De modo que tal descoberta —ter parentes em algum canto perdido do universo— pode ocorrer em algum momento do futuro. E vamos ver se esses humanoides venusianos ou marcianos se parecem aos da ficção científica ou são mais originais do que os inventados pela fantasia literária!
Que possibilidades existem de que o pequeno planeta Terra desapareça pelo impacto de um gigantesco meteoro que seria milhares de vezes maior do que o que caiu na Sibéria há mais ou menos um século, devastando um enorme território? Muitas, se levarmos em conta que com muita frequência se registram no espaço sideral acidentes, ou seja, hecatombes gigantescas resultantes de desvios das órbitas, ou falta de órbitas, nas trajetórias de certas formações rebeldes; e poucas se considerarmos que não aconteceu ainda na longuíssima história registrada do astro terráqueo. Mas, sem dúvida que, como hipótese, poderia acontecer amanhã e devolver tudo que existe à nossa volta ao nada do qual saiu há alguns milhõezinhos de anos. Vistas do ponto de vista das estrelas, que estúpidas e mínimas parecem as guerras e todas as violências de que está impregnada a história da humanidade.
Pergunto ao grupo que me rodeia que porcentagem de astrônomos tem uma crença religiosa e, depois de trocar pareceres, me dizem que provavelmente vinte por cento; os demais são agnósticos ou ateus. Um desses amigos se apressa em marcar a diferença: “Eu acredito”. E acrescenta: “E me sinto perfeitamente à vontade compatibilizando minha religião com tudo que a ciência descobre ou descarta”.
É verdade o que diz, sem dúvida, e deve ser também para essa quinta parte de astrônomos cuja fé resiste a esse cotejo cotidiano ao qual estão submetidas suas crenças religiosas com as revelações —não sei se as chamo de estupendas ou terríveis— que as estrelas lhes fazem. Mas entendo melhor as outras quatro quintas partes de cientistas cujo trabalho diário submerge em dúvidas e hesitações em relação às ideias propagadas pelas religiões sobre o ser supremo que teria criado todas aquelas constelações e tudo que existe. Porque se tornam pequeninos os deuses que os seres humanos adoram ou adoraram diante desse espetáculo avassalador digno das Mil e Uma Noites de trilhões de trilhões de estrelas semeadas ao longo de um espaço sem fronteiras, gravitando e sustentando-se mutuamente, emitindo luz ou recebendo-a, e que pobres as explicações das religiões inventadas para essas perguntas inexplicáveis: como tudo isso foi possível? Pode ser puro acaso, conjunções e constituições misteriosas como casualidades, as que, de imediato, neste universo gelado, fizeram brotar a vida, aqui, neste planetinha sem luz própria que é o nosso? É mais ou menos convincente que fosse não o acaso mas um ser superior, dotado de infinita sabedoria, quem tenha, talvez entediado por sua eterna solidão, criado essa maravilha tenebrosa que é a história humana? As melhores respostas —as mais belas e criativas— a essas perguntas possivelmente não estão nem nas estrelas nem na religião, mas na literatura.



segunda-feira, 25 de junho de 2018

Charlize Theron / Essa mulher, essa atriz

Charlize Theron

Charlize Theron: essa mulher, essa atriz

Como a Romy Schneider adulta, como Michelle Pfeiffer, reconheceria esta atriz mesmo que aparecesse fantasiada de King Kong


Carlos Boyero
22 jun, 2018


A tão cúmplice e duradoura associação entre a roteirista Diablo Cody e o diretor Jason Reitman goza de um notável prestígio entre o público indie, entre os hipsters, espíritos tão modernos como sensíveis, e demais espécies fastidiosamente atuais. Não compartilho desse encantamento. Costumo me nausear com tanto afã de originalidade, intensidade emocional, pretensões de vanguarda. Entretanto, Jason Reitman também inventou um filme que adoro e revisito continuamente. Chama-se Amor Sem Escalas. É uma tragicomédia admirável, protagonizada por um sujeito cujo deplorável trabalho, pago pelas humanistas empresas, consiste em assessorar e consolar os infinitos e desolados batalhadores que a crise condenou à maldita rua, com a missão de que estes não criem problemas demais aos seus ex-patrões. Esse homem inteligente, pragmático e cínico, cujo doce lar consiste em hotéis e aeroportos, em seduções rápidas e fugazes, viverá perplexo e sem defesas um desastre sentimental ao confundir a aventura com o amor. Tudo em Amor Sem Escalas exala um estado de graça. Sempre me deixa um gosto agridoce. Continua me divertindo e comovendo, nunca me cansa.
É fundamental para os futuros espectadores de Tully – a última, estranha e atrativa criatura de Jason Reitman – que ninguém revele de antemão o mistério que seu argumento oculta. Não serei eu quem fará isso, logo eu que fico nervoso sempre que escuto essa cafonice de “Não me faça um spoiler”. O roteiro mergulha no que ocorre no cotidiano, na torturada cabeça e no esgotado organismo de uma mulher que vai parir seu terceiro filho, do esgotamento perante responsabilidades múltiplas, da tristeza que lhe assalta sem necessidade de se olhar no espelho, da depressão pós-parto, de se perguntar o que foi sua vida antes, e o jugo que criar uma família representa, do cansaço infinito no corpo e na alma. Ama o seu bondoso e cinzento marido, e adora sem gestos estridentes os seus filhos, embora a deficiência de um deles aumente sua angústia até limites perigosos. E recebe uma oferta de seu generoso irmão para que a contratação de uma babá noturna para o bebê lhe permita um pouco de descanso. Aí começam a ocorrer coisas surpreendentes e venturosas, para a esgotada protagonista e para o intrigado espectador.
Gosto moderadamente de Tully, mas o que realmente me apaixona, como sempre, é a presença dessa atriz mais do que boa e dessa linda mulher chamada Charlize Theron. Teve que ficar feito uma foca e deformar seu rosto em Monsterpara que os acadêmicos descobrissem que a boneca sensual também tinha talento e lhe concedessem esse rotineiro Oscar que sempre é dado a atores e atrizes que interpretam gente com maluquices diversas. Contam que, para dar vida a uma grávida, Charlize Theron acrescentou vinte quilos a seu insigne corpo, e o resto ficou a cargo da maquiagem e do figurino.
Entretanto, o fascínio e a credibilidade que desprende desde que apareceu numa tela permanecem intactos. E conta muitas e profundas coisas sobre a personagem à qual dá vida com seus olhos, seu gestual, suas sóbrias e matizadas sensações, sua voz e seu tom. Como a Romy Schneider adulta, como Michelle Pfeiffer, reconheceria Charlize Theron mesmo que aparecesse fantasiada de King Kong. São as coisas do amor.



sexta-feira, 22 de junho de 2018

Martín Caparrós / A lenda do pior goleiro do mundo


Luis Ricardo Guevara Mora leva um gol durante um dos jogos na Copa da Espanha de 1982. 



COPA RÚSSIA 2018

A lenda do pior goleiro do mundo

O goleiro salvadorenho Luis Ricardo Guevara entrou para a história das Copas do Mundo depois do 10 x 1 sofrido contra a Hungria na Espanha-82



Martin Caparrós
20 JUN 2018

20 
A cada quatro anos, quando o futebol novamente é destaque em todo o mundo, alguém se lembra dele, vai atrás dele, conta sua história. Luis Ricardo Guevara Mora tem um raro mérito: ninguém, na história do futebol, fez pior.
Guevara nasceu em São Salvador, El Salvador, em setembro de 1961. Um menino pobre de um país muito pobre que tentava —adolescente, alto, atlético, moreno— jogar basquete, beisebol. Quando lhe propuseram ser goleiro de um time de futebol, achou engraçado e decidiu tentar.

Guevara se deu bem. Tinha 17 anos quando estreou na seleção de El Salvador; dois anos depois, foi goleiro da equipe de seu país nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1982. El Salvador vivia uma guerra civil: os combates eram suspensos para assistir aos jogos. Foram cinco, Guevara levou apenas um gol, e seu país chegou, pela segunda vez em sua história, à rodada final.
Chegar à Espanha foi um problema: a Federação salvadorenha era pobre, mas caótica, e enviou os jogadores em muitos aviões. A equipe demorou três dias para chegar à cidade de Elche, onde ainda vivia uma senhora que havia sido, muitos anos antes, "uma morena de altas torres, alta luz e olhos altos": Josefina Manresa, viúva do poeta espanhol Miguel Hernández. Eles não se importavam: só queriam vencer o primeiro jogo contra a Hungria, que parecia mais fácil do que a Argentina ou a Bélgica.
Então, decidiram tentar, ir para o ataque, mas, aos cinco minutos, já estavam perdendo. Quando estava 0 x 5, um atacante salvadorenho, "Pelé" Zapata, fez um gol —que passaria a ser conhecido depois como gol de honra— e seus companheiros interromperam a comemoração para não irritar aqueles hunos sedentos. Talvez não tenham se irritado; continuaram goleando com sorrisos. Guevara poderia ter sofrido menos: quando havia levado apenas seis, seu treinador decidiu substituí-lo, mas o goleiro substituto se recusou a entrar e Guevara teve que continuar. No final, os húngaros conseguiram o resultado mais impressionante das Copas do Mundo: 10 x 1. Nos mil jogos disputados desde o início do torneio, em 1930 em Montevidéu, nunca houve nada igual.
Tem mérito, se reconhece pouco. A arte de vencer é fácil, quase óbvia; a arte do fracasso é mais complexa. Naquele dia, Guevara levantou, sem querer, seu monumento: o fato que seria inscrito na memória. Tinha 20 anos e já era o que seria para sempre: o homem que levou o maior número de gols em um jogo da Copa do Mundo, um vencedor às avessas.




Guevara era o símbolo do desastre: o inimigo público que todos queriam atacar e, também, o pobre coitado do qual todos gostavam de ter pena

O esporte se tornou o evento cultural mais difundido de nossos tempos, porque é simples. Parece complexo, cheio de nuances, mas, em última análise, oferece uma facilidade que a vida escamoteia: um resultado. Em um esporte está claro o que é ganhar e o que é perder, quem vence e quem não. Por isso, é raro quando esses casos confusos aparecem: aquele que se torna inesquecível por sua derrota.
El Salvador voltou a perder outros dois jogos, só que mais discretamente. Alguns dias depois, quando "la Selecta" —como a equipe é chamada em seu país— chegou a São Salvador, milhares e milhares de compatriotas os esperavam para insultá-los nas ruas. E Guevara era o símbolo do desastre: o inimigo público que todos queriam atacar e, também, o pobre coitado do qual todos gostavam de ter pena; ele não sabia o que doía mais. Mas também não permitiram que escolhesse: já na alfândega abriram sua mala e, uma semana depois, atiraram no carro onde estava. Foram 22 tiros, e não defendeu nenhum.
Luis Ricardo Guevara Mora teve que começar sua vida quando esta já estava definida para sempre. Deixou seu país, continuou jogando futebol por outras duas décadas, sobreviveu. Agora trabalha, modestamente, mais gordo, em um centro esportivo de uma cidade salvadorenha e, a cada quatro anos, alguém lembra que foi o pior de todos. Ele, certamente, nunca soube como esquecer isso.

sábado, 2 de junho de 2018

Fernando Vicente / Os contadores de Zacapa




Os contadores de Zacapa

Narrar contos e acontecimentos é o antecedente remoto da literatura, da história, das religiões e talvez, indiretamente, a locomotiva do progresso


Mario Vargas Llosa
2 jun 2018

Se você for à Guatemala, depois de visitar as lápides e pirâmides maias e essa joia colonial que é Antigua, peço-lhe que vá ao leste do país e faça uma parada na cidade de Zacapa. Esta é uma região menos turística que outras, mas, raspando um pouco, também está cheia de surpresas e maravilhas. Para comprovar isso, dirija-se sem vacilar à rua Terceira, no bairro de Las Flores, onde, no número 1.794, encontrará uma antiga casa que ostenta este singular título em sua fachada: “Associação Zacapaneca de Contadores de Contos e Histórias”.

A senhora Vilma Elizabeth Sánchez, que preside a instituição, lhe explicará que esta já tem trinta e três anos de fundação e que sua razão de ser é perpetuar a “oralidade” do vale médio do rio Motagua, um território que, além de ser candente e famoso por seu rum, é o mais fértil do país e talvez de toda a América Central na antiquíssima e civilizada arte de inventar e contar histórias. “Oralidade” quer dizer pré-literatura, aquela que existia apenas graças à voz humana, antes que aparecesse a escrita. E esta mesma senhora, de cabelos brancos e maneiras elegantes, ou um dos sócios, por exemplo o jovem poeta e contador de histórias Jorge Pinto, lhe revelará que o povo de Zacapa, depois do trabalho, quando cai a tarde e o calor diminui, costuma colocar suas cadeiras e cadeiras de balanço nas altas calçadas da rua e, enquanto tomam a fresca reparadora e vão vendo as estrelas aparecerem no céu, mencionam histórias que engalanam as lembranças ou as substituem por fantasias tenebrosas ou amáveis, de amores ou aventuras, realistas ou fantásticas, uma tradição que aqui continua sempre sã e robusta, enquanto vai desaparecendo pouco a pouco no resto do mundo. Zacapa é uma dessas ilhotas que ainda mantêm vivo aquele velhíssimo costume de criar histórias com a imaginação e a palavra, e contá-las para vivê-las e fazer vivê-las quem as escuta. Comove-me muito a ideia de toda uma cidade que espera o anoitecer fantasiando uma vida paralela à real, mais intensa, variada e atrevida que a meramente vivida, uma vida que nos desagrava do que falta à verdadeira para nos fazer felizes.



A “oralidade” contribuiu para impulsionar a civilização  das cavernas à viagem às estrelas

Esta é a mais antiga das tradições da humanidade, uma atividade praticada por todas as culturas do planeta sem uma só exceção, a mais exclusivamente humana que existe, e que eu tive a sorte de ver operando em lugares e povoados tão afastados entre si como os sertões do interior da Bahia, onde os contadores de histórias perambulam de feira em feira e se fazem acompanhar com violas e violões, na cidade de Peshawar no Paquistão (onde, na rua chamada Contadores de Contos, por alguns poucos centavos aedos frequentemente cegos recitam histórias aos visitantes – só que em língua pashtun), ou entre as aldeias machiguengas dispersas pela Amazônia peruana. Impressionou-me descobrir que esse costume que surgiu nos primórdios da história humana ainda vive e se mexe nesta cidade do oriente guatemalteco, onde as igrejas católicas e os templos evangélicos disputam as ruas e as praças, e um esbelto coreto do século XIX (onde ainda deve haver retrete com banda de música aos domingos, frequentadas por casais de namorados) domina sua praça central.
Contar histórias é o antecedente remoto da literatura, da história, das religiões e talvez, indiretamente, a locomotiva do progresso. A “oralidade” contribuiu de maneira decisiva para impulsionar a civilização da épocas das cavernas, do canibalismo e das pinturas rupestres até a viagem dos homens às estrelas. Os contos, as histórias inventadas, davam mais vida aos nossos ancestrais, tiravam homens e mulheres das prisões asfixiantes que eram suas vidas e os faziam viajar pelo espaço e pelo tempo e viver as vidas que não tinham nem nunca teriam em sua miúda e sucinta realidade. Sairmos de nós mesmos, sermos outros, outras, graças à fantasia, nos entretém e enriquece. Mas, além disso, nos ensina como é pequeno o mundo real comparado com os mundos que somos capazes de fantasiar, e deste modo nos incita a agir para que nossos sonhos se tornem realidades. O progresso nasceu assim, da insatisfação e do mal-estar com o mundo real que inspirava nos humanos a mesma ficção que os fazia desfrutar.





Graças à magia das histórias, a vida tem sido menos incompreensível, dura e rotineira

As histórias que inventamos constituem a vida secreta de todas as sociedades, aquela dimensão da existência que, embora nunca tenha tido chance de se realizar, foi de alguma forma vivida pelos seres humanos, na incerta realidade dos desejos, fantasias, pesadelos e invenções, de toda essa projeção da vida que não tivemos e por isso devemos inventá-la. Ela existiu sempre na memória das gentes, mas só a escrita a fixou e lhe deu permanência, muitos séculos depois de que nascesse, ao redor das fogueiras, quando nossos antepassados, aqueles bípedes ainda mais animais que humanos, contavam-se histórias à noite para esquecer o medo do trovão, as aparições, as feras e os milhares de perigos que os espreitavam em qualquer parte.
A Associação de Zacapa tem 28 membros pagantes, porque é mantida por seus sócios, não pelo Estado nem pelo Governo, que jamais puseram dinheiro nesta instituição, nem ela pediu: é a sociedade civil que a criou e a mantém. Ocupa uma ampla e bonita casa com teto de telhas e um pequeno jardim onde cresce uma mangueira muito alta. À sua sombra são realizados recitais e sessões onde os contadores profissionais ou espontâneos fazem as delícias de um público no qual se misturam crianças e velhos e todas as classes sociais. A associação dispõe de uma biblioteca e uma sala de leitura, grava as improvisações, publica antologias, e de tempos em tempos dedica uma apresentação exclusivamente às crianças, para ganhar sua afeição e despertar nelas vocações de contadores de contos. Do mesmo modo, leva narradores orais aos colégios, aos sindicatos, às prisões.
Também mantém vínculos com outras organizações do mesmo tipo, na Guatemala e no exterior, e às vezes recebe contadores de outras línguas e geografias. E também envia seus melhores narradores para participarem de feiras e espetáculos dedicados à “oralidade” em outros países. Em uma das paredes vejo, por exemplo, cartazes de uma expedição que “os contadores de Zacapa” fizeram aos Estados Unidos, onde atuaram em Chicago e Miami. Voluntários limpam o local, preparam as apresentações e as divulgam.
Zacapa já é conhecida no mundo pelo rum que produz, uma dessas bebidas ardentes das quais não me atreveria a falar, porque nunca as provei. Mas deveria ser também por seus contadores de histórias e por manter viva aquela herança que chega até nós desde remotíssimas épocas pré-históricas, e graças à qual a vida tem sido menos incompreensível, dura e rotineira, tanto que nos vimos obrigados, para não nos extinguirmos de tristeza, a nos inventar essa magia, inventar e contar, a fim de tornar a vida mais digna e suportável. Sem ela nunca teriam nascido os livros de Cervantes nem os dramas de Shakespeare, e talvez jamais teríamos renunciado ao garrote, nem a beber o sangue dos inimigos.