domingo, 25 de fevereiro de 2018

Fenomenologia do grafite / Arte e expressão urbana


Banksy

Fenomenologia do grafite

Arte e expressão urbana

4 NOVEMBRO 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS
Trabalhos artísticos realizados nas ruas, nos espaços públicos, distintos dos que acontecem em espaços institucionalizados (museus, galerias, teatros) são denominados Arte Urbana (Street Art).
A arte urbana se expressa no campo da música, do teatro, do circo, do desenho etc. São inúmeras performances nas ruas das cidades, onde, fundamentalmente, os artistas buscam receber pagamentos dos transeuntes que param e assistem seus desempenhos. É a arte exercida nas ruas como ganha pão diário. O grafite é diferente.
Banksy

Grafiteiros são diferentes de vândalos. No mundo inteiro, inúmeros grafiteiros escrevem, desenham e pintam nas paredes desde a antiguidade (desde as pinturas rupestres nas cavernas). São objeto de muitas controvérsias quanto ao reconhecimento e legalidade de seus trabalhos; alguns assumem suas identidades, outros se camuflam em pseudônimos, muitos passam desapercebidos e outros se tornam famosos: Basquiat, por exemplo, Os Gêmeos em São Paulo e o super criativo Banksy (pseudônimo do artista guerrilheiro) que teve um de seus painéis coberto de tinta por funcionários contratados pela prefeitura da cidade britânica de Bristol, posteriormente tendo todas as suas obras preservadas pelo Conselho Municipal da mesma cidade. Condenação e proteção de grafites estão sempre acontecendo, gerando controvérsias entre os poderes reguladores do uso das cidades, em toda parte.
Banksy

O contexto das ruas, mais especificamente de seus muros e paredes, se constitui na tela, na moldura escolhida para grafitar. Grafitar é expressar em desenhos, em frases, o que se sente e percebe do cotidiano, principalmente em relação à urbe, à cidade vivenciada, tanto quanto é também trazer para as pessoas, seu próprio modo, sua forma onírica, sua própria maneira de perceber.
Grafitar é gritar, é expressar o que se sente. Estes gritos, estas expressões resumem clamores individuais, fracos e não expostos, e exatamente aí se encontra a motivação, a sutileza e popularidade dos grafites: expõem o que se murmura, aos gritos, e assim toda a cidade pode ouvir.

Banksy

O importante no grafite é grafitar o que acontece, sob a forma de desenho e/ou palavras, é estabelecer resumos que se abrem como dinamites, explosões esclarecedoras do que rola nas ruas, nas casas, nas cabeças. Neste sentido o grafite substitui as charges dos jornais, tanto quanto resume as “tirinhas” de super-heróis. É a banda animada das histórias em quadrinhos, é também as confissões escondidas dos banheiros públicos. Sempre há um aspecto de explosão individual diante do que aprisiona. O grafite pode ser também uma expressão de revolta, de crítica ao sistema alienante. O grafite é libertário, desde que expressa o que se sente. Tudo que é colocado no grafite é um ato contra uma situação estabelecida, é a manifestação de um desejo, é uma cogitação, uma crítica, por isso o grafite exemplifica um protesto urbano.
Estamos em um sistema no qual, infelizmente, tudo é captalizado, aproveitado, imitado, e assim, desde que o grafite se popularizou nas cidades modernas, pessoas, empresas, organizações, até mesmo instituições religiosas, mandam grafitar propaganda, palavras de ordem, versos e desenhos sagrados, tentando angariar clientes, consumidores, ou pescar almas.
Banksy

Esta arte espontânea, este grito do povo, coagulado e expresso nas paredes - o grafite - também se transforma pela mediação dos marchands - donos e agentes de galerias - em um objeto de luxo, pintura cara, e aí temos as ruas nas paredes, decorando livings imensos. Grafite vira moda e começa a ter valor agregado, seus gritos são, então, mecanizados seja por ampliação, seja por amordaçamento.


WSI


Vera Felicidade de Almeida Campos


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Vera Felicidade de Almeida Campos / Vontade libertadora



Vontade libertadora

Romantismo

4 OUTUBRO 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS

O exercício de autonomia tem como trajetória a constatação, a realização, o aparecimento da vontade. Descobrir-se capaz de realizar planos, sonhos e propósitos cria firmeza estabelecedora de disponibilidade e de determinação. No contexto da autonomia, a rigidez, a firmeza permite flexibilidade, pois existe em torno do que girar. A vontade é um instrumento de mudança, de libertação, foi assim que Fichte, nos finais de 1770 e início de 1780 trouxe para a humanidade uma transformação considerável: não mais o “cogito, ergo sum” e sim o “volo, ergo sum” (“penso, logo existo” - “quero, logo existo”). Neste momento podemos dizer que, através dos ideais românticos, o homem recuperou seu lugar no centro do mundo com seu querer. Explode nas artes, na literatura, na poesia e filosofia, esta nova ideia; Nietzsche traz os deuses que dançam e anuncia a morte de Deus. É o “humano, demasiado humano” que se afirma.
Remanescentes desta vontade - do exercício da vontade como forma de enfrentar seus aniquiladores - são encontrados hoje na psicologia. A busca de individualização, o exercício de questionamentos terapeutizantes promovem a retirada do ser humano da alienação e submissão. É um ideal romântico no sentido do exercício da disponibilidade, do não compromisso com o que o aliena. O homem deixa de ser peça de engrenagem, individualiza-se e restabelece sua centralidade no mundo. Realizar anseios transcendentais transforma necessidades em possibilidades, confere ao ser humano a condição de dínamo propulsor de infinitas variáveis. Assim, o homem não se esgota em seus limites orgânicos, não permanece contido por construções sociais. Esta não submissão cria liberdade e faz com que a criatividade, a imaginação se exerça e deste modo literatura, arte, poesia pavimentam sua trajetória.
Esta possibilidade de dizer não, conforme Albert Camus a única liberdade, é o que faz a antítese, é o que estrutura a mudança, é o que faz o homem ser o centro do mundo e reedificá-lo. Mundo é o que os homens fazem dele, não é mais o que se recebe como dado, como natural. A própria dicotomia entre natural e criado é transformada: tudo é natural, tudo é construído, o que importa é o defrontar-se, o que importa é o diálogo com o existente, com o outro. Transformar, mudar, manter são as questões respondidas para soluções individualizadas, sem permeios de regras, por definição, defasadas e opressoras.
Questionar, ultrapassar limites são fortificadores da determinação escolhida como antítese ao que aliena. Este ideal romântico - tanto quanto questões mais amplas do romantismo de Fichte, Herder e Kant - traduz as novas dimensões do humano na contemporaneidade, gerando a percepção da própria individualidade, permitindo construção da autonomia, disponibilidade e liberdade. Os frutos de ouro destas atitudes são profusamente encontrados na literatura e na arte em geral. Infelizmente, este fenômeno não foi universal. A expansão realizada pelo colonialismo nos séculos XVII, XVIII e XIX nas colônias, com suas explorações econômicas, transformaram seus habitantes em massa de manobra, em matéria-prima para industria e agricultura, em bala de canhão, consequentemente, pouco restando do humano para criar autonomia, disponibilidade e liberdade que resultasse em literatura, arte e ciência não modelada pelos colonizadores.
Atualmente, horizontes de alienação, de massificação são os resíduos da trajetória humana. A vontade é rara, apenas estruturada como resposta a demandas contingentes, a demandas mercadológicas, mas, apesar disto, muitas sementes estão plantadas, germinando para novos questionamentos e consequentes mudanças.

WSI


Vera Felicidade de Almeida Campos


domingo, 18 de fevereiro de 2018

O homem como centro do mundo / Iluminismo, esclarecimentos situantes

Angelica Kauffmann. Madame Macabre

O homem como centro do mundo

Iluminismo, esclarecimentos situantes

4 SETEMBRO 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS

Um dos resultados mais questionadores e inovadores do iluminismo - século XVIII - foi colocar o homem, o indivíduo, como centro do mundo. Esta antítese ao absoluto - Deus - representado por seus supostos significantes - a Igreja, a realeza - abriu novas perspectivas para o humano, perspectivas posteriormente desenvolvidas em um movimento, uma ideologia, um legado social e jurídico: a Revolução Francesa. A partir daí, o lema “liberdade, igualdade, fraternidade” torna-se o resumo fundamental que passa a nortear a trajetória do homem ocidental. O homem é, então, igual a seu semelhante, nada os diferencia: nem aparência, nem origem ou posição social e esta igualdade se reflete nas leis e possibilidades da vida. Quando existem diferenças elas são determinadas pelos recursos econômicos a partir dos quais classificações de pobres e ricos expõem diferenças que não são intrínsecas ao humano, são circunstanciais, e ainda, geradas pelo acúmulo de riquezas continuadas do absolutismo anterior.
Ser centro do mundo fez o homem perceber que tudo que lhe acontecia dependia dele próprio. Esta libertação dos grilhões de crenças obscurantistas impôs a razão, o conhecimento como chave para abrir novos caminhos, para estabelecer progresso. Sem o iluminismo teria sido difícil chegar à industrialização, à transformação dos recursos existentes através de conhecimento de técnicas específicas.
Mudar, transformar, abrir caminhos se impôs ao homem quando ele ficou entregue a si mesmo. Foi uma radical mudança de modelo que possibilitou autonomia, semelhante à que ocorre na idade adulta, quando padrões familiares são transformados e questionados. O iluminismo enfatizou a razão com consequentes esclarecimentos, questionamentos, ampliação de perspectivas e horizontes e isto refletiu na sociedade em geral, em movimentos artísticos e também na religiosidade. O acesso a Deus não era mais exclusivo dos religiosos que vendiam “permissos”, tais como escapulários e “benzidos”, para que se atingisse a divindade. Intermediários diminuíram, ação direta se impôs mas também outros problemas foram criados: a constatação da fragilidade ou da força diante dos caminhos a percorrer.
Estruturas de uma nova forma de poder foram estabelecidas, reunindo autoridades dispersas e institucionalizadas. Já não basta ser livre, é necessário ser forte para enfrentar obstáculos determinados pelos poderosos institucionalizados. A liberdade se desdobra, torna-se enfático o lema “a união faz a força”. Comunidades são estabelecidas, solidariedade é exercida para que o homem se mantenha no centro do mundo. Nesta trajetória, decorrências mutáveis surgem e sob a forma de democracia muito desequilíbrio é gerado, polarizações que em algumas circunstâncias e panoramas sociais e econômicos permitem a volta de poderes absolutos: ditaduras que retiram o homem do centro e colocam, como centralidade, ideias, ideais e objetivos com a finalidade de transformá-lo em massa de manobra para a manutenção de máquinas de poder voltadas para afirmação de suas ditaduras e plataformas políticas aniquiladoras da liberdade, destruidoras da individualidade.
Novas configurações criam novas antíteses. Agora, recuperação do lugar central e legítimo do homem só é possível pelo exercício de autonomia frente a todas as forças que o alienam e escravizam. O que define o humano é o exercício de suas possibilidades ou a submissão às suas necessidades (que o transforma em mercadoria, o torna alienado). Sucumbir aos fundamentos exploradores dos novos sistemas, adoece, neurotiza, desespera, daí ser necessário enfrentar os problemas, questionar-se e assim gerar mudanças. Entender o que acontece é humanizador.


WSI


Vera Felicidade de Almeida Campos

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Constatação / Impasse e movimento



Constatação

Impasse e movimento

4 AGOSTO 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS

Mudança depende do impacto resultante de constatações realizadas ao longo da vida ou dos processos psicoterápicos. A constatação decorre sempre de questionamentos. É uma atitude possibilitada pela descoberta de que ocorre o que não se esperava ou imaginava ocorrer. Vida acomodada, psicoterapia de apoio e relacionamentos compreensivos, jamais questionam, jamais criam impactos, jamais provocam constatações, pois o caminho de constatar já é ocupado, trilhado pelo do reconhecimento das próprias fraquezas e qualidades, transformando-se em justificativa para validar os acontecimentos. E assim não há constatação, o que existe é reconhecimento do “caber na forma”, estar adequado/inadequado aos processos que ajudam e apoiam ou massacram e desestabilizam.
A constatação é sempre um impacto, enquanto as verificações geradas pelas avaliações de adequação/inadequação se constituem em reconhecimentos de existentes prévios. Por isso na constatação não existe familiaridade, é sempre o novo que se impõe, daí o questionamento que traz mudança - as certezas foram derrubadas. Lidar com estas novas configurações é abrir mão de posições anteriormente definidas que já não significam. Quando isto ocorre surge honestidade, surge coerência e reconhecimento das próprias motivações às vezes não detectadas, ou armazenadas no depósito geral da incoerência.
Sair desta linearidade - certezas e certezas - alça o ser humano a situações mais amplas, sejam as de disponibilidade, sejam as de contingências reveladoras. A amplidão das demandas ultrapassa os posicionamentos de certo/errado atribuídos por outros contextos e estruturas relacionais. As motivações individuais podem ser diversas da sociedade, tanto quanto as sociais podem diferir das regras familiares. Sem as amarras do compromisso, o indivíduo se defronta consigo mesmo e estabelece questionamentos que mudam dependências e ampliam seus horizontes. A mudança sempre quebra amarras pois ela sempre implica em movimento, em ampliação de panoramas vivênciais e relacionais. Sair de posicionamentos, movimentar-se é descobrir, constatar possibilidades, medos, encontros, desencontros; é também estar com o outro integrado ou desintegrado pelas novas constatações.
A mudança amplia ao quebrar posicionamentos, tanto quanto limita ao gerar implicações acerca de constatações inumeráveis que precisam ser vivenciadas - são os impasses. Quando a mudança gera impasse é fundamental não se apegar a resultados compensatórios. O sucesso poderá apenas trazer mais dúvidas, medo e manutenção, fazendo, assim, se jogar fora constatações desalienantes. É exatamente aí que se pode perceber como mudar e manter estão próximos, como as pontas do processo se encontram. O cotidiano psicoterápico sempre nos revela isto. É importante não perder de vista que as similaridades criam diferenciações responsáveis por questionamentos, por constatações, por movimentos gerados por teses e antíteses estabelecidas.

WSI

Vera Felicidade de Almeida Campos

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Vera Felicidade de Almeida Campos / Convivência / Medo e preconceito


Foto de Lee Jeffries

Convivência

Medo e preconceito

4 JULHO 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS

Estar no mesmo lugar, na mesma família, na mesma cidade é conviver com o outro, é conviver com outros. A simples proximidade é o que define a convivência entre pessoas, entre seres.
Proximidade engloba também a temporalidade e é tão abrangente nesta sua acepção que explica os conceitos de contemporaneidade e de antiguidade. Os cenários de convivência são vivenciados (nutridos) no agora, no antes e no depois, tanto quanto no perto e no distante.
Conviver é compartilhar o mesmo espaço, a mesma época, mas é também participar do que ocorre com o outro. A questão da participação na convivência é uma obrigatoriedade que foi reduzida a quase um não sentido de convivência, embora seja o que a mantém em termos de tranquilidade, ou o que a transforma em dificuldade, criando obstáculos, transformando os encontros em choques, disputas, querelas e discórdias. Estes aspectos de desarmonia comprometem convívios, pois as partes foram distorcidamente transformadas em totalidades, contextos à partir dos quais são definidos, são configurados os moldes de convivência. Já não é apenas o estar próximo, no mesmo espaço, na mesma família, que define a convivência: os vetores, as sinalizações que estruturam valores e regras criam grupos onde as pessoas sentem-se representadas e são deles representantes. O igual, o diferente, o estrangeiro, o considerado bom ou ruim são integrados ou desintegrados à partir destes significados. A convivência agora é entre iguais e entre diferentes.
Sociedades são conjuntos onde as direções, os espaços são definidos segundo padrões sócio-econômicos. Espaço de ricos, espaço de pobres, locais de deficientes são criados para que a convivência social não seja perturbadora. Zona de craqueiros[1], espaços proibidos e limites de morte - em certas aglomerações urbanas - estabelecem o sentido do ir e vir. Há o proibido, o permitido, o que vai causar prejuizo, morte, tanto quanto outras situações, outras avaliações podem levar à fama e poder. Os lugares significam em função do que neles circula e por onde eles se encaminham, desde igrejas, hospitais, prisões até às antessalas do poder.
A questão da convivência já não é uma questão aberta, contínua, não é típica dos seres humanos, ela é uma encruzilhada representativa de tudo que deve ser selecionado, continuado e descontinuado: preconceitos, medos, ansiedade, insegurança preenchem estas lacunas, suportam estes tentáculos. Valores criam espaços, estabelecem limites, permitem inclusão, invasão e ameaça. Áreas de pobreza, em qualquer periferia das cidades, geralmente têm dejetos a céu aberto, frequentemente criando espaço para convivência com outras espécies distintas: insetos ou até mesmo baratas e ratos criam problemas e doenças, destruindo os homens que com eles convivem. E assim, conviver com o outro é totalmente diferenciado em função destes valores sociais e econômicos, uma convivência geradora de conflitos e dificuldades, bem diferente das situações onde conviver é situar-se em relação ao outro, a si mesmo e ao mundo, questionando, abraçando, descontinuando, continuando o que está em volta.
A lucidez, o questionamento impedem que o homem seja transformado em objeto, possibilitando espaço de convivência, tanto quanto de diálogo, encontro e interação criadora de convivências significativas e humanizadoras.

Nota

Craqueiros: usuários de craque. Algumas cidades brasileiras têm zonas onde viciados em craque vivem ou passam horas e dias entregues ao consumo da droga.




Vera Felicidade de Almeida CamposVera Felicidade de Almeida Campos



domingo, 4 de fevereiro de 2018

Merecimento e direitos / Relações coisificantes e alienantes iniciadas na família

Merecimento e direitos

Relações coisificantes e alienantes iniciadas na família

4 JUNHO 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS

“Não tenho direito a nada, mas mereço tudo” é o refrão, a oração constante das vítimas, daqueles que sempre se sentem prejudicados na contabilidade dos empenhos, promessas e desejos não realizados. Ter se sacrificado, tudo ter feito em prol dos outros ou de uma situação, é pensado como trunfo, como aval de garantia de tudo merecer.
Nada mais alienante, nada mais coisificante para o indivíduo, para o ser humano, tanto quanto para suas relações sociais e familiares, do que a certeza de merecer, mas não ter direitos, e quando esta divisão entre o indivíduo e o outro, quando estas fragmentações existenciais são vivenciadas como “não tenho direito a nada, mas mereço tudo”, este postulado inicia um processo de revolta, exacerbando medos e frustrações criadas por estar submetido ao outro, a seus desejos e vontades, por vezes, desumanas.
Sacrifícios, renúncia e perdão são os sustentáculos das relações coisificantes e alienantes, principalmente no âmbito familiar. Perceber o que está em volta reduzindo-o à situações convenientes ou indesejáveis estrutura um forte sentido de oportunidade. Insistir em aproveitar as brechas que surgem, cria atitude oportunista, que se caracteriza em esconder incapacidades através de ajudas ou artifícios, transformando-as em capacidade de conseguir através do outro, ou melhor, usando o outro.
Este direito de usar o outro é reivindicado e neutralizado pela idéia de tudo merecer. Cheio de planos, metas e desejos responsáveis por frustrações, medos e ansiedades, o indivíduo sofre, e assim, se sente vítima do sistema e das pessoas. Lidando com esta distorção de se sentir centro do mundo - distorção criada pelo autorreferenciamento - cresce a idéia do mérito não reconhecido, aumenta a impressão de não ter os meios necessários à vida, de não ter a mínima retribuição aos sacrifícios e ações realizadas. Esta avaliação, geradora de frustração, é responsável pela exigência de receber e de ter direitos assistidos e mantidos.
Não ter direitos, nada receber em função de tudo que acha merecer, cria derrotados, reclamadores e insurgentes que tudo recebem, tudo pedem, tudo negociam para conseguir suprir suas necessidades e desejos, agora catalogados sob o rótulo de merecimento.
Mesmo quando se insurge e se sente explorado nas relações de trabalho, ou quando socialmente discriminado, o refrão “não tenho direito a nada, mas, mereço tudo” é mantido, embora tenha suporte na constatação dos processos de espoliação e uso pelos dotados de poder e de capital, pois, no contexto autoritário, assistencial e meritocrático, as contradições não são percebidas, apenas se enxerga os grandes vazios e a sensação de falta: fome e carência que urgem ser preenchidas.
A gravidade dos posicionamentos entre direitos e merecimento resultam da divisão e oposição entre os mesmos. Avaliar é reduzir a valores, geralmente incompatíveis com o processo relacional de estar com o outro. Quebrar esta unidade relacional é estabelecer posicionamento de vítima, de senhor; merecendo, castigando, premiando. Ao quebrar a relação dialética, estabelecem-se posições: surge o superior-inferior, surge o senhor-escravo, o doador-dependente e assim a despersonalização, a divisão é construída, construindo-se também demandas, renúncias e queixas.
Quando os pais se relacionam com os filhos através de recompensas e castigos, constroem escalas de valores e merecimentos referenciados nos processos de submissão e frustração, que mais tarde vão se atritar com os outros nas diversas situações onde o compromisso, a barganha e a chantagem podem ou não imperar. Até perceberem que não é preciso “dar para receber”, “mentir para disfarçar”, as pessoas se sentem estranhas, sem pertencimento, sem saber como agir.
Quebrar a unidade sempre pulveriza a personalidade e cria autômatos doadores e/ou dependentes. Pródigos e mesquinhos começam a povoar o mundo, criando ordens utilitárias e propósitos dilapidadores das possibilidades humanas.



Vera Felicidade de Almeida CamposVera Felicidade de Almeida Campos

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Por que linguagem? / A fala é uma das digitais mais individualizantes do ser humano


Por que linguagem?

A fala é uma das digitais mais individualizantes do ser humano

4 MAIO 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS


Perceber é conhecer pelos sentidos. Cheguei a esse conceito graças à unificação feita pelos gestaltistas alemães, entre o que se chama sensação e percepção. Para eles não havia uma sensação captada pelos sentidos e uma percepção organizadora desses dados sensoriais. Não existiam duas funções: uma de captação e outra de organização. O que se sentia era o que se percebia e já era organizado. A abordagem dualista anterior implicava em um elementarismo fundamentado na ideia de que o todo é a soma de suas partes e, bahavioristas e psicanalistas, também eram adeptos dessa visão: os primeiros, quando reduziam o comportamento humano aos processos de aprendizagem resultante do condicionamento dos reflexos incondicionados e os segundos, ao explicar toda a vida emocional e sexual do homem pelos processos inconscientes, para eles o fundamento e motivo de toda vivência humana.
Essas abordagens implicavam em entender o homem separado do mundo, antagônico à sociedade, ao mundo. Os behavioristas tentavam resolver essa separação através dos conceitos de adaptação e condicionamento e os psicanalistas, através dos conceitos de conscientização e sublimação dos desejos.
Ao iniciar meu trabalho psicoterápico no final dos anos 1960, era isso que existia no campo da psicologia clínica.
Beneficiada pelos conceitos gestaltistas e fenomenológicos, eu sabia que o homem no mundo é uma gestalt, uma unidade e que o todo não é a soma de suas partes. Essa visão me possibilitou perceber que é através do processo perceptivo que o homem estrutura relacionamentos, e então comecei a criar conceitos e a desenvolver a teoria que fundamenta a psicoterapia gestaltista. Ao longo de 38 anos, desde que escrevi o primeiro livro sobre psicoterapia gestaltista, venho desenvolvendo o conceito de percepção.
Neste novo livro, Linguagem e Psicoterapia Gestaltista, explico o processo da linguagem, a estruturação da língua e da fala, pela percepção. Vemos que falar é expressar a organização do percebido. Linguagem é a maneira do ser humano se expressar, se comunicar, se exteriorizar. Linguagem é o desenho, a imagem, a representação, o resumo, as senhas do que se percebe. Linguagem é descrever, é informar. Fala-se porque se percebe e é percebido. A linguagem é construída pelo relacionamento com o outro e o mundo. Cada língua expressa tempo e espaços característicos. A história da humanidade foi contada graças às línguas estabelecidas. Nossa história, nossas vivências podem ser expressas, compartilhadas através da linguagem.
Portanto, neste novo trabalho, continuando o desenvolvimento de percepção como conhecimento, como "perceber que percebe" - categorização - e entendendo o pensamento como prolongamento perceptivo, deixamos claro que a percepção é estruturadora da linguagem e mantemos assim, o conceito de que vida psicológica é vida perceptiva. Na linguagem isso é enfático.
No desenvolvimento de minha teoria, senti necessidade de explicar a percepção como contexto para a construção e formação da linguagem. A linguagem decorre da percepção, ela não é, como afirmam alguns teóricos, estrurante de realidades.
A fala na psicoterapia é um dos desenhos, das digitais mais individualizantes do ser humano. Fala, que te direi quem és. Ao falar expressamos nossa maneira de perceber o outro, o mundo e a nós próprios. Falando da problemática que nos aflige mostramos nossas vivências, nossas distorções, nossa autorreferência, nossas dúvidas, medos e anseios.
A linguística, o estudo da linguagem, desenvolve-se há mais de um século com seus grandes especialistas. Ferdinand Saussure, criador da linguística, foi quem fez a distinção entre langue e parole - língua e fala - dedicando-se a entender as questões de significado e significante. Chomsky explica a construção de uma gramática única como fundamento do processo linguístico. Louis Hjelmslev e outros fenomenólogos seguiam a linha que enfatiza o que é imanente, o que é transcendente na linguagem. Edward Sapir, antropólogo e linguista influenciado por Franz Boas, pesquisando em culturas indígenas, procurava compreender como se forma a língua. Hegel dizia que a linguagem é a atualidade da cultura; assim fica assinalado o aspecto comunicativo e trancendente da linguagem. Na tradição hinduísta, nos Upanishads, vemos que o sentido da linguagem é possibilitar a distinção de valores e significados. Se não existisse linguagem, não poderíamos conhecer nem o bem, nem o mal, nem o verdadeiro, nem o falso.
Dizer que a boca, a língua, a laringe são órgãos da fala é tão tolo, tão errado quanto dizer que o dedo é o órgão de tocar piano. Algumas estruturas neurológicas quando lesadas ou comprometidas interferem ou mesmo impedem a fala. O processo de formação da linguagem é perceptivo, portanto fundamentalmente psicológico, e como tal, garantido por estruturas neurológicas. Essa isomorfia entre o neurológico e o psicológico assegura os processos perceptivos.
A língua é sempre expressão de uma sociedade, uma cultura, uma época vivenciada por grupos humanos. Cada língua que desaparece evidencia como ela é fruto da relação com o mundo, com o percebido. Novas tecnologias, importação das mesmas, novas vivências e necessidades criam novas palavras. Com a internet muitas línguas e dialetos são insuficientes para expressar as novas relações percebidas.
A língua expressa e comunica vivências, pensamentos, faz com que o outro perceba além do olhar e do tato, e seja também percebido.
Este livro expressa os desdobramentos do conceito de linguagem e de como ela se estrutura. É mais um referencial para perceber as configurações do humano, os desenhos e trajetórias realizadas pelo ser no mundo. Penso a linguagem a partir da percepção.
Fernando Pessoa, pelas mãos de seu "mestre" Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos, poeticamente também fala da percepção:
“Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê¬-la e cheirá-¬la
E comer um fruto é saber-¬lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá¬-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.”

Referência:

  • Este artigo é extraído do meu livro Linguagem e Psicoterapia Gestaltista - Como se aprende a falar - Vera Felicidade de Almeida Campos, Editora Ideias & Letras, São Paulo, 2015



sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Incerteza / Caminho para depressão


  1. A indicação do caminho é fundamental para eliminar a incerteza
Incerteza

Caminho para depressão

4 ABRIL 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS

Ter tudo sob controle é, para muitos indivíduos, a única maneira de garantir a tranquilidade. Este evitar de surpresas, este conhecimento de sequências comportamentais cria tédio, tanto quanto garante estabilidade e segurança. Inseguro quanto ao que conseguiu, sentindo-se sozinho, embora acompanhado de inúmeras pessoas, o indivíduo cria regras, senhas para garantir a manutenção de suas conquistas. A vivência de estar ameaçado é uma constante. Este estado de contínua ansiedade, tira o sono, impede concentração e transforma a vida em uma série de acontecimentos sem unificação, sem organização. Tudo é incerto, nada significa, exceto esta nebulosidade, esta organização fragmentada e polarizada pela contabilização de perdas ou lucros.
Este processo segmenta, divide o indivíduo, desde que ele vive para conseguir, para realizar demandas e assistir a complementação das mesmas. Duplo de si mesmo (na medida em que se fragmenta tornando-se um observador das próprias conquistas e fracassos), o processo de esvaziamento se instala, pois um tem que manter o outro. A divisão em função de aparência e interesses exige imagens mantidas à custa das próprias certezas, agora transformadas em incertezas. É um processo autofágico. Imola-se o ser em função do ter, do parecer e assim se perde contato com o si mesmo, isto é, com a possibilidade de relacionamento enquanto vivência presentificada. Tudo que é vivenciado é por ou para. Os processos relacionais são transformados em configurações indicativas de bons ou maus resultados.
Pendurar-se na finalidade, no resultado é asfixiante, gera atordoamentos diante do que acontece, é a incerteza alimentadora da ansiedade, que desorganiza o dia-a-dia. Utilizam-se vários estratagemas para assegurar-se, para drenar a ansiedade: medos, compulsões, vivências obcecadas como forma de ritualizar o imponderável, como base de alguma organização que gere paz, que gere tranquilidade.
A continuidade do processo de incerteza faz com que, paradoxalmente, o indivíduo se acalme ao saber que morrerá, que tudo findará. Assim, a ansiedade encontra um freio, mas em compensação cria vivência de depressão: a única certeza é o final.
As situações de incerteza geram fantasias e justificativas. Tudo é inventado para tentar criar ordem, organização que situe e possibilite saída. Quando isto é feito, a manutenção impera, consequentemente, o isolamento aumenta. Cada vez mais sozinho, o indivíduo colapsa e seu grande acompanhante passa a ser o remédio que alivia e aplaca.
Vivenciar incerteza exige questionamento. O que mudou? O que foi transformado? O que deixou de existir ou passou a ter outra configuração? Responder estas questões traz novas percepções, novas realidades, que embora não aceitáveis ou confortáveis, possibilitam diálogo e transformação. Sem questionamento, as mudanças são negadas e, assim, cria-se nebulosidade responsável pela vivência de incertezas, labirintos a percorrer, esfringes a decifrar, movimentos a controlar, que ocupam algum tempo, que motivam, mas, depois, tensionam e entediam.
A monotonia do existir - a desvitalização - deprime.