O Grande Circo Místico’ será o representante do Brasil na disputa de Melhor Filme em Língua Estrangeira no
‘O Grande Circo Místico’ vai representar o Brasil no Oscar 2019
Longa do cineasta Cacá Diegues conta a história de cinco gerações de uma mesma família circense
EL PAÍS
11 SET 2018 - 14:07 COT
‘O Grande Circo Místico’ será o representante do Brasil na disputa de Melhor Filme em Língua Estrangeira no Oscar 2019. Dirigido pelo cineasta Cacá Diegues, o longa venceu uma disputa entre 22 produções nacionais para a indicação, anunciada nesta terça-feira, 11, pela Academia Brasileira de Cinema (ABC).
Com os atores Bruna Linzmeyer, Vincent Cassel e Mariana Ximenes no elenco, o filme - uma adaptação do poema de Jorge de Lima - conta a história de cinco gerações de uma mesma família circense, de 1910 aos dias de hoje. Após passagem pelo festival de Cannes e de Gramado, a estreia comercial está prevista para o dia 15 de novembro.
Livro de Roca Barea sobre a lenda negra espanhola questiona as próprias bases da História como uma ciência objetiva, pois demonstra que em muitos casos ela se acomoda às urgências do poder
MARIO VARGAS LLOSA
15 SET 2018 - 17:00 COT
Um livro de erudição rigorosa pode ser divertido? É raro, mas acontece no caso de Imperiofobia y Leyenda Negra (Imperiofobia e Lenda Negra), de María Elvira Roca Barea, que acabo de terminar. É aguerrido, profundo, polêmico, e é lido sem pausas, como um romance policial em que o leitor voa sobre as páginas para saber quem é o assassino. Confesso que há tempos não lia um livro tão ameno e estimulante.
Seu subtítulo é Roma, Rússia, Estados Unidos e o Império Espanhol. E é verdade que a autora se ocupa também das lendas negras geradas pelos três primeiros impérios, mas sua principal ocupação, com profundidade e utilizando com desenvoltura uma impressionante bibliografia, é a construção intelectual e fictícia que há séculos distorce profundamente a história da Espanha e ridiculariza seu povo. De acordo com ela, ainda está muito viva, porque os próprios espanhóis não quiseram e não souberam contra-atacá-la, dando as costas a essas caricaturas que os apresentavam como fanáticos, perversos, ignorantes e inimigos viscerais da ciência, da modernidade e da civilização.
Segundo Roca Barea, a lenda negra anti-espanhola foi uma operação de propaganda montada e alimentada ao longo do tempo pelo protestantismo especialmente em suas versões anglicana e calvinista —contra o Império Espanhol e a religião católica para afirmar seu próprio nacionalismo, demonizando-os até extremos pavorosos e chegando a privá-los de humanidade. Dá exemplos abundantes e de toda espécie sobre isso: tratados teológicos, livros de história, romances, documentários e filmes de ficção, quadrinhos, piadas e até conversas pós-refeição. A extensão e duração da lenda negra teve a contribuição da indiferença com que o Império Espanhol, primeiro, e depois seus intelectuais, escritores e artistas, em vez de se defender, em muitos casos tornaram sua a lenda negra, avalizando seus excessos e fabricações como parte de uma feroz autocrítica que fazia da Espanha um país intolerante, machista, lascivo e em luta com o espírito científico e a liberdade.
Você sabia que as degolas e esquartejamentos de católicos na Inglaterra de Henrique VIII e da rainha Elizabeth I, e nos Países Baixos de Guilherme de Orange, foram infinitamente mais numerosos do que as torturas e justiçamentos em toda a história da temível Inquisição Espanhola? Sabia que a censura de livros na França, Inglaterra e Alemanha foi tão ou mais severa do que na Espanha? O ensaio de Roca Barea prova tudo isso de maneira inequívoca, mas também inútil, pois, como mostra seu livro —é o mais inquietante dele—, quando uma dessas ficções malignas (hoje diríamos pós-verdades) encarna na história substituindo a verdade, alcança uma solidez e realidade que resiste a todas as críticas e desmentidos e sempre prevalece sobre eles. A ficção traga a história. Por isso, as batalhas de Napoleão narradas por Victor Hugo e Tolstói sempre nos parecem, apesar de seus abundantes erros, mais certas do que as dos historiadores mais rigorosos.
Pois bem, no livro de Roca Barea aparecem historiadores de muito prestígio, como o alemão Leopold von Ranke e o inglês Thomas Macaulay —existem muitos outros pensadores e artistas não menos distintos, como um Voltaire e um Edgar Allan Poe—, que, talvez sem ser conscientes disso, contribuíram para a lenda negra. E perpetraram distorções flagrantes à verdade histórica acomodando em seus livros os fatos de tal modo que confirmaram em vez de refutar os exageros e mentiras inventados para desprestigiar e afundar moral e politicamente o “inimigo” imperial e “papista”. A autora de Imperiofobia y Leyenda Negra não considera que tudo isso venha de uma conspiração conscientemente forjada pelos poderes; tudo isso é, evidentemente, encorajado e às vezes financiado pelo poder, mas também nasce de maneira espontânea, como uma excrecência natural do nacionalismo, que se forma e fortalece sempre contra algo ou alguém, pois precisa de um inimigo a quem odiar para poder subsistir. E a Espanha do Século do Ouro, quando a lenda negra é mais ativa, era o mais poderoso império da Europa e, certamente, o inimigo obrigatório dos países que pretendiam substituí-lo. E das denominações religiosas que queriam ser as mais genuínas herdeiras das verdades bíblicas.
Dessa maneira indireta, o livro de Roca Barea, sem sequer ter proposto tal coisa, questiona as próprias bases da História como uma ciência objetiva, pois sua pesquisa demonstra que em muitos casos nela se infiltra, em razão das circunstâncias e das pressões religiosas e políticas, a ficção como um elemento que desnaturaliza a verdade histórica e a acomoda às urgências ideológicas do poder estabelecido. E não há ácido mais eficaz e inescrupuloso na alteração das verdades históricas do que o nacionalismo, como os espanhóis têm a ocasião de comprovar atualmente com o desafio independentista da Catalunha, que, além de se rebelar contra a Constituição e as leis, se empenha em refazer a história e transformá-la em uma ficção a seu serviço.
O livro de Roca Barea é muito bem escrito, com uma prosa elegante, argumentos pertinentes e por vezes com uma ironia alegre que atenua a gravidade dos assuntos dos quais trata. Salta às vezes do passado remoto à atualidade, para mostrar que há entre ambos uma concatenação secreta e, frequentemente, indica nas notas o dia exato em que fez aquela citação e verificação nos arquivos (algo que, acredito, se faz pela primeira vez).
A autora desse livro extraordinário me dá um puxão de orelhas, em uma de suas páginas, por ter lembrado que o romance como gênero literário esteve proibido na América Espanhola durante os três séculos coloniais, porque as autoridades religiosas e políticas espanholas consideraram que as invenções disparatadas desses livros poderiam confundir os indígenas e distraí-los dos ensinamentos religiosos. É, acho, o único caso na história em que um gênero literário foi proibido. Roca Barea me recorda que naquela época surgiu na Espanha o romance picaresco (poderia ter mencionado também o principal romance: Dom Quixote). Minha afirmação não é parte da lenda negra, mas se trata de uma verdade inequívoca. A proibição, que existiu e foi reiterada várias vezes ao longo daqueles trezentos anos, dizia respeito somente às colônias, não à metrópole. E, ainda que a proibição tenha funcionado no que se refere à publicação de romances, não impediu que, graças ao profuso contrabando, os romances tenham sido lidos fartamente nas colônias americanas. Mas o primeiro romance, como tal, só foi publicado no México, após a independência: El Periquillo Sarniento (1816). Todas as boas histórias da literatura hispano-americana (recomendo as duas melhores, ou seja, a de Enrique Anderson Imbert e a de José Miguel Oviedo) reproduzem essas proibições que, desde meus anos de estudante, sempre me fascinaram. Por que a ficção foi proibida como tal? O resultado foi que, ceifada a fonte natural da ficção, que é o romance, tudo na América Latina passou a ser impregnado pela ficção proibida: não só os gêneros literários como a poesia e o teatro, também a religião, a política e a própria vida da sociedade e das pessoas.
Eliane Brum e Xico Sá, colunistas do EL PAÍS, ganham o Prêmio Comunique-se
Eliane Brum foi premiada na categoria Colunistas- Opinião e Xico Sá, em Cultura
EL PAÍS
11 SET 2018 - 21:12 COT
Eliane Brum e Xico Sá, colunistas do EL PAÍS, venceram na noite desta terça-feira o prêmio Comunique-se 2018, nas categorias Colunista- Opinião e Cultura, respectivamente. O prêmio contemplou 28 jornalistas em 13 categorias diferentes, com indicações dos próprios profissionais da imprensa, e os vencedores foram escolhidos por meio de uma votação online.
"Não há nenhuma narrativa que possa substituir a reportagem como documento sobre a história em movimento. E o que se espera de nós é que sejamos capazes de resistir e fazer reportagem no momento em que, por todas as razões, é mais difícil fazer reportagem", escreveu Brum em discurso lido pela diretora de redação do EL PAÍS BRASIL, Carla Jiménez. A colunista não pôde comparecer ao evento porque estava na Cúpula do Clima, em São Francisco, nos Estados Unidos.
Xico Sá, que venceu na categoria Cultura, afirmou em discurso que Jotabê Medeiros, que concorria com ele ao troféu, também merecia o prêmio pela biografia escrita sobre Belchior. "O jornalismo é importante porque a gente luta contra a barbárie, o fascismo. Isso vale a palavra, a existência, a cultura jornalismo", disse o colunista na premiação.
Neste ano, os anúncios dos contemplados como "gurus do jornalismo" foram feitos por Felipe Andreoli, Heródoto Barbeiro, Ivan Moré, Márcio Gomes, Maria Beltrão, Rafa Brites e Samantha Schmütz. Acompanhe a transmissão do evento.
Um inesperado encontro com o ex-presidente uruguaio que faz a simplicidade parecer coisa de louco
Breiller Pires
Montevidéu, 25 NOV 2017 - 09:44 COT
Pegamos um Uber do aeroporto rumo ao centro de Montevidéu. Em fluido portunhol, engatamos papo com o motorista sobre a admiração dos brasileiros – Maracanazo à parte – pela garra dos jogadores de futebol uruguaios. Maxi, nosso condutor, lembra então de outro compatriota que também costuma ser aclamado em conversas com passageiros provenientes do Brasil: José “Pepe” Mujica. Sem demonstrar muito entusiasmo ao falar de seu ex-presidente, ele insinua que o antigo guerrilheiro tupamaro é mais querido fora que dentro do Uruguai. “É um louco”, disse Maxi, mudando de assunto.
Denise, minha companheira de aventuras e loucuras da vida, e eu fomos ao país vizinho a passeio. Depois de alguns dias de turismo convencional, de um jogo do Peñarol e uma visita ao estádio Centenário, nos restava um par de horas na capital uruguaia antes de partir. Decidimos aproveitar o tempo livre para visitar a famosa chácara de Mujica e a escola agrária idealizada por ele, que cedeu parte de seu terreno para construí-la. Não fui até lá como jornalista. Fui movido unicamente pela curiosidade despertada por um político que vive sem luxos, por sua apologia à sobriedade – não à pobreza –, por seus valores em defesa da liberdade de escolha individual, que permitiram ao Uruguai legalizar o aborto e o consumo de maconha, e das obrigações do Estado em garantir direitos básicos das pessoas mais pobres.
Não alimentamos a ilusão de encontrá-lo. Afinal, Mujica hoje é senador e uma das figuras mais populares do cenário político mundial. Percorremos os 20 quilômetros que separam o centro de Montevidéu da chácara, instalada numa comunidade rural da periferia, e chegamos por volta das 10h da última segunda-feira. Para desavisados, a estrada de terra termina em uma enorme placa de “pare” com o alerta escrito à mão: “Disculpen, el senador Pepe Mujica no puede recibirlos por falta de tiempo. Gracias”. O segurança sai de uma guarita em frente à entrada da chácara e nos aborda com cordialidade. Dissemos que não queríamos importunar. O intuito era apenas conhecer a escola e contemplar o lugar onde mora o sujeito que ficou conhecido como “o presidente mais pobre do mundo”. Ele responde que não vê problema, desde que a gente não ultrapasse a placa. Conta que cumpre a função há três meses, quando Lucía Topolansky, esposa de Mujica, assumiu o cargo de vice-presidente do país. Uma de suas tarefas é despachar visitantes de vários cantos que peregrinam até a chácara. Recentemente, passaram por ali grupos de japoneses, sauditas, marroquinos e até um ônibus de turismo lotado de indianos em busca do líder que se converteu em uma celebridade.
Brincamos com os cachorros de Mujica, que foi presidente entre 2010 e 2015, marcando uma geração dentro e fora do Uruguai. Atestamos a simplicidade de sua casa, que tem um telhado verde musgo, e vimos a fachada da escola, onde adolescentes aprendem a manusear uma roçadeira. Depois de nos despedirmos do segurança, entramos no carro. Viro a chave da ignição. Do meu lado, para um trator com dois homens. Um deles estica o pescoço como quem quer dizer algo. Era Pablo, outro funcionário da segurança de Pepe e Lucía. Desço do carro e ele me pergunta se sou cubano. Explica-se: eu usava um casaco da delegação de Cuba nas Olimpíadas de 2012.
– Vieram ver o Pepe? – questiona Pablo.
– Seria uma honra, mas viemos só dar uma passada e conhecer a escola. Já estamos de saída.
– Bem, se vocês não têm pressa, por que não esperam um pouco? Quem sabe ele não aparece para dar um ‘oi’?
Se o próprio funcionário de Mujica estava sugerindo, por que não esperar? Decidimos ficar por no máximo 20 minutos. Nesse meio tempo, um dos cachorros do senador deita sobre o meu pé e só sai para perseguir, aos latidos, um motoqueiro que cruza a estrada. Um caminhão-reboque estaciona em frente à chácara para trocar o pneu do carro de uma das professoras da escola. Pablo manobra o trator dentro de um galpão. A bucólica rotina campesina transcorre normalmente até que todos os cachorros rumam em bando na direção da casa. O segurança torna a deixar a guarita. De repente, por entre as árvores que cercam a chácara, surge como um personagem dos contos de realismo fantástico de Gabriel García Márquez a figura mítica de Pepe Mujica. Levo alguns segundos para concluir que aquele senhor de agasalho e calças dobradas na altura das canelas atravessando a estrada a passos lentos se trata do ex-presidente do Uruguai.
Ele entra na guarita com Pablo, o segurança e outros dois homens. Sua aparição sem alarde continua martelando em minha cabeça. A palavra “mito”, tão banalizada e cada vez mais usada para definir oportunistas que não fazem jus à distinção, se aplica perfeitamente a Mujica. Muitos duvidam de que sua retórica do desapego aos bens materiais seja praticada, de fato, longe das câmeras e microfones. Mas a realidade se revela bem ali, diante dos nossos olhos, assim como o sinal de Pablo com a mão nos chamando até a guarita. Mujica está sentado à beira da janela. Nos apresentamos, acanhados. E eu me apresso em dizer que não queremos incomodá-lo. O suor escorre por suas bochechas caídas, e ele, sujo de terra, com carrapichos grudados na calça, se mostra um pouco ofegante. Antes de político, o homem do campo, que cultiva flores e hortaliças na chácara.
Apesar de sua enorme capacidade de improvisar discursos, Mujica emana um ar tímido e sereno. Diferentemente do estereótipo de líder popular, seu carisma reside na fala pausada, singela, e não nas pregações inflamadas. Ele pede para que a gente tome assento em duas cadeiras à sua frente. “O Brasil agora anda bem”, diz, referindo-se à seleção brasileira comandada por Tite. Ele é torcedor do Cerro, um pequeno time da região, que disputa a primeira divisão uruguaia. Não é algo que o entusiasme como a política, mas gosta do jogo. “Não há uruguaio que não goste. Nosso futebol é meio milagroso. Somos um país tão pequeno e sempre estamos aí, chegando, chegando...” Mujica espreita sobre o quadro eleitoral no Brasil para 2018. Ao saber que o deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro desponta em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás somente do ex-presidente Lula, faz uma pausa, tira o boné com a marca da Antel, estatal uruguaia de telecomunicações, coça a cabeça e lamenta: “¡Qué horrible!Já tinha ouvido falar, mas não pensei que ele fosse tão bem cotado”. Ainda solta um suspiro em forma de “Qué raro, Brasil, ¿no?”. Emendo com outra pergunta: como avalia o governo Michel Temer? “Ah, um desastre”, replica, justificando. “Retrocedeu ao que era o país antes de Getúlio Vargas [em alusão à recém-aprovada reforma trabalhista]. E vão pressioná-lo para que faça ainda mais reformas neoliberais.”
Embora não tenha tido filhos, Mujica parece um vovô experimentado, daqueles que andam de Fusca azul, mimam os netos e sempre carregam doces no bolso para arrancar um sorriso. Os doces de vô Pepe são palavras. Sobram-lhe poucos dentes na boca, mas seu espírito ainda conserva muito de utopia, da crença de que pequenos gestos, como interromper o trabalho no roçado para conversar com gente que nunca viu, podem mudar o mundo. Não é justo tomar tanto tempo de alguém que se dedica a causas nobres, de representar o povo uruguaio no Parlamento a plantar flores na chácara. Encerro a conversa, mas, em nenhum momento, Mujica parece demonstrar incômodo com a nossa presença. Pelo contrário. Quer saber de que cidade somos e o que fazemos no Brasil.
Mujica: “Os únicos derrotados são aqueles que deixam de lutar”
Depois, nos lamentaríamos pelas perguntas que não fizemos, por não ter esticado a conversa com um ex-presidente que parecia disposto a uma manhã inteira de prosa. Porém, um homem com sua história, do alto de seus 82 anos marcados pela resistência e a militância, diz mais pelo modo de agir do que pelas palavras. Viver como ele vive é seu maior ato político. Nunca me esquecerei de sua roupa salpicada pela terra, das botinas sem cadarço e do trato amável que dispensa às pessoas ao seu redor. Em um tempo de descrença e frustrações com a classe política, sentimento que se espalha por todo continente, a confirmação de que o Mujica do imaginário realmente existe é a maior recompensa que poderíamos levar daquele encontro. Ele se despede apertando nossa mão direita e, com a esquerda, dá dois leves tapinhas sobre o braço. Nos deseja sorte, “sorte na vida, jovens”.
Denise ficou paralisada diante de Mujica. De tão incrédula, não conseguiu pronunciar nada além de “gracias, gracias”. Saímos da guarita em êxtase e passamos o resto do dia anestesiados pela experiência que vivemos na chácara. Foram pouco mais de cinco minutos com Pepe, poucas palavras que valeram a viagem. A mensagem célebre de Mujica faz ainda mais sentido: “Os únicos derrotados são aqueles que deixam de lutar”. Fiel a seu estilo, Pepe segue na luta, segue inspirando. Há quem o chame de louco. Mas, ao que tudo indica, sua única loucura é não se curvar à lógica das aparências. É ser simples demais.
Os ratos sempre chegavam na mesma hora, por volta de uma da madrugada. Visitavam a cela todas as noites, com missão idêntica: caçar migalhas. Mesmo que servisse para o prisioneiro José Mujica se sentir menos sozinho. E se agarrar ao contato com a realidade. “Era uma referência. Outra era a troca da guarda. Você vai criando o ofício de ser preso”, diz Mujica (Montevidéu, 1935), sentado no elegante sofá de um hotel e de um festival em que parece um intruso e, entretanto, é protagonista.
Diz que não apresenta “nada”, mas o certo é que dois filmes da Mostra falam dele: Uma Noite de 12 anos, do uruguaio Álvaro Brechner —na sessão Horizontes, e com coprodução espanhola—, recria sua odisseia como preso político, detido em 1972 por pertencer à guerrilha dos Tupamaros, e libertado somente em 1985. El Pepe, Uma Vida Suprema, de Emir Kusturica, é um documentário sobre o ex-presidente do Uruguai e sobre a maneira de ser e pensar que conquistou seu país e o mundo inteiro. Veneza também o coroou como uma de suas estrelas. Ainda que ele diga que na verdade é “estrelado”.
O diretor sérvio deve conhecer bem seu amigo. De modo que o chantageou: ‘Se não vier a Veneza para uma entrevista coletiva, eu também não vou”. Mujica diz que para não ofendê-lo, e como agradecimento pelos dois filmes, fez uma longa viagem que é cada vez mais difícil e da qual gosta cada vez menos. Em um encontro com a imprensa espanhola, olha para frente e para trás, à política e ao cinema, à Europa e à América Latina. Com humor —“uma arma defensiva brutal”—, citando poetas e sempre matizando no final, como se desse pouca importância. “Bom, é como eu vejo”. Ao modo de Mujica.
“Depois da pena de morte, a solidão é um dos castigos mais duros”, defende. Esteve com ela dos 37 aos 50, sofreu torturas, comeu sabão, perdeu os dentes pelas surras, e frequentemente a lucidez. Agora chama tudo aquilo de “peripécia”. “Isso que aconteceu conosco é pouco. Existem muitos outros que ficaram pelo caminho”, acrescenta. Não sabe muito bem como sobreviveu, mas tem algumas hipóteses: “Cada um se agarra no que pode. Quando era muito jovem, li muito. E nesses anos de solidão refleti. Repensar e reconsiderar coisas não é o mesmo que ler, é reconstruir. Acho que o homem aprende mais na adversidade, sempre que não o destrua, do que na bonança”.
Na América acontecem coisas que também se dão na Europa. Mas aqui são bem dissimuladas.
Entre outras lições, Mujica concluiu que a vingança não serve para nada: “Não sei se perdoo. Mas a natureza nos colocou os olhos na parte da frente, e existem contas que ninguém paga e não devem ser cobradas”. Fiel a isso, só viu Uma Noite de 12 Anos uma vez —não participou da estreia no festival, onde foi muito aplaudido—. Melhor não “remexer os sentimentos” que traz sobre sua mãe, os soldados, seus outros colegas presos e aqueles que já não estão.
Tanto isolamento também forjou parte de quem ele é hoje. “Quando tinha um colchão estava contente. Ou um copo de água. Ou se podia urinar. Descobri que brigamos muito por nada”, diz. E cita um estudo que sustenta que, a partir de certos níveis, os aumentos do PIB já não aumentam a felicidade: “Acho que a sentimos quando resolvemos questões básicas; depois, nem sinal”.
O poder e o estilo
“Quando era jovem pensava que a luta era pelo poder. Agora vejo que a história dos lutadores sociais e políticos é um monte de vidros quebrados, dos quais vão ficando pedacinhos: as oito horas de trabalho por dia, os direitos trabalhistas, a aposentadoria... eu me sinto irmão de tudo isso”, diz Mujica. Durante sua presidência, entre outras coisas, legalizou o casamento homossexual e a maconha, descriminalizou o aborto, e declarou guerra à pobreza e à indigência. Mesmo que a oposição tenha lhe acusado algumas vezes de esvaziar suas palavras ecologistas e anticapitalistas com decisões no sentido contrário. De seus mandatos, ele destaca “furos” e sonhos não cumpridos. “Seria preciso nomear o chefe dos bombeiros. O presidente é um apagador de incêndios”, afirma.
Eu tiro essa conclusão: tudo o que incomoda, com o que não se está de acordo, é populista
Também renunciou à mansão presidencial e a 90% de seu salário. E ficou na casa em que sempre morou, com sua mulher, a política e ex-guerrilheira Lucía Topolansky, e sua adorada cachorra Manuela. O recente falecimento do animal o fez refletir sobre a morte. E talvez daí venha o adeus a sua cadeira no Senado: “Às vezes você sente que está desempenhando um papel que já não te motiva. Você está atrapalhando, como uma árvore velha que não deixa ver o que está por baixo”.
Se deixou a política ativa para trás, falar dela ainda acende sua paixão. Perguntado pela crise na Venezuela e na Nicarágua, responde: “Na América acontecem coisas que também se dão na Europa. Mas aqui são bem dissimuladas. A Volkswagen recebe uma multa de 7 bilhões de dólares (28 bilhões de reais) e ninguém é preso, continuam como se nada houvesse. Não venham me dizer que a América está cheia de defeitos e a Europa é corretíssima. Não estou defendendo a deformação que temos, digo que está presente no mundo em que vivemos”. E diante de uma pergunta sobre o auge do populismo, coloca a própria questão em dúvida: “Não utilizo essa palavra porque a usam a torto e direito. São populistas na Nicarágua, e os que votam na direita na Alemanha meio neonazistas. Então, é qualquer coisa. Eu tiro essa conclusão: tudo o que incomoda, com o que não se está de acordo, é populista”.
Partidário da UE
Mujica apoia com convicção o projeto da União Europeia, apesar de seus “defeitos”: “O ser humano é o único animal que tropeça nas mesmas pedras. Nos últimos mil anos a Europa viveu em guerra e agora parecem se esquecer disso. Eu gostaria de ter algo assim na América Latina”. E sobre a Espanha afirma que tem “vários problemas com a memória”, e que sobrevive sua eterna contradição entre o país de “festa e alegria” e o da “raiva e ódio”. “A Espanha feudal ainda é muito forte”, diz. E em relação às turbulências com a Catalunha, afirma: “O nacionalismo dos jovens é algo bom porque serve para moldar caráter e identidade. Mas quando se exacerba se transforma em algo perigoso. Mas atenção: uma coisa é o nacionalismo de um país pequeno e outra o de um grande e de terror para os vizinhos”.
A última pergunta recai sobre a marca de Mujica, aos seus 83 anos. Ele não dá muita importância. “O que é o legado de uma pessoa no universo? Somos menos do que um piolho. O legado é ter vivido intensamente, com acertos e erros. Vencer não é ter dinheiro, é se levantar sempre que se cai”. A poucos quilômetros, o carpete vermelho de Veneza prepara outro desfile de estrelas. Resta saber quantas estão de acordo com o estrelado.