terça-feira, 20 de julho de 2021

Quentin Tarantino / “Só um ‘nerd’ se referiria a si mesmo como cinéfilo”

 

O diretor norte-americano Quentin Tarantino.
ART STREIBER


Quentin Tarantino: “Só um ‘nerd’ se referiria a si mesmo como cinéfilo”

Cineasta estreia como romancista com uma adaptação de seu nono filme, ‘Era uma vez... em Hollywood’. “Este é o primeiro livro de vários”


LUIS PABLO BEAUREGARD
Los Angeles - 11 JUL 2021 - 19:52 COT

No ano da pandemia, transportou para as páginas de um livro seu nono filme, Era uma vez... em Hollywood, o filme de 2019 interpretado por Leonardo DiCaprio (Rick Dalton), Brad Pitt (Cliff Booth) e Margot Robbie (Sharon Tate). Quentin Tarantino (Knoxville, Tennessee, 58 anos) leva para o papel uma ficção cinematográfica que impedia que a Família Charles Manson ―seita que levava o nome de seu líder― assassinasse a atriz Sharon Tate, esposa de Roman Polanski. O diretor conseguiu levar à prosa seu inconfundível estilo cinematográfico, mesclando-o com referências eruditas a obscuras séries de televisão e filmes que aparecem na história e em suas conversas. “Você deve reconhecer que tem mérito não ser da Espanha e conhecer os irmãos Marchent!”, diz a certa altura da entrevista ao EL PAÍS, referindo-se aos pioneiros do western espanhol que infiltrou em seu filme.

Tarantino está de bom humor. Veste camisa de manga curta azul e acaba de terminar seu almoço, que tirou de uma lancheira de metal do Bounty Law, o programa fictício em que o ator interpretado por DiCaprio fica famoso no longa. Sobre a mesa da suíte de um hotel de luxo em Beverly Hills está um elegante exemplar de seu primeiro livro (publicado em português pela editora Intrínseca, com tradução de André Czarnobai). A edição é apenas para a promoção. Os exemplares que inundaram as livrarias dos Estados Unidos são de bolso e custam 9,99 dólares. O design, do diretor, imita os livros baseados em filmes que cresceu lendo nos anos setenta. Como quase todo primeiro romance, tem ecos autobiográficos e recordações de uma cidade à qual chegou quando tinha quatro anos.

Pergunta. Seu primeiro romance começa com uma cena muito própria, com muitos diálogos. Foi uma declaração de intenções?

Resposta. Esta história sempre começou com Rick e Marv [seu agente Marvin Schwarz, que é interpretado por Al Pacino no filme]. Primeiro o pensei como um romance, depois como uma peça de teatro; quando o pensei como um filme foi sempre com essa primeira cena. Não há muito enredo, mas há algo. Mostra Rick, confrontado com o dilema em que se encontra, que é uma coisa do passado para esta nova geração de protagonistas em Hollywood. Marv explica isso a ele, o que lhe permite percorrer toda a sua filmografia, a carreira, e informar o público.

P. Pouco depois, mostra sua intenção de fazer de Cliff um personagem central. Muito mais sinistro e complexo do que o da tela.

R. Sempre busquei isso para Cliff. No filme, os assassinos da família Manson deparam-se com Cliff em vez de com Sharon [Tate]. A ideia não era que se deparassem com um herói masculino. A ideia é que se deparassem com alguém 15 vezes mais perigoso do que eles. Alguém que era um assassino total, no sentido que a Família Manson queria.


Tarantino, Pitt e DiCaprio no set de ‘Era Uma Vez... em Hollywood’.
Tarantino, Pitt e DiCaprio no set de ‘Era Uma Vez... em Hollywood’.


P. Ao mesmo tempo, é um homem que só vai ao cinema para ver filmes de arte. Muitos pensariam que o gosto cinematográfico de Cliff não é o seu.

R. Eu concordo com muito do que Cliff pensa, mas não sou eu. É Cliff falando. Concordamos em muita coisa, mas por razões diferentes. Cliff nunca se referiria a si mesmo como cinéfilo. Apenas um nerd se referiria a si mesmo como cinéfilo. Mais do que falar sobre Kurosawa, ele gostaria de falar sobre motores e carburadores. Ele não vai ao cinema para ter emoções, para isso anda de motocicleta.

P. Não lhe preocupa que as pessoas comparem o romance com o filme?

R. Eu assumo. Quando estava escrevendo, fiquei convencido de que pelo menos nos próximos dois anos, 97% dos leitores terão visto o filme. Estou em paz com isso. Usarei isso a meu favor.

P. Espera que se transforme em algo próprio?

R. Seria muito interessante artisticamente se fosse apenas uma peça de acompanhamento ou se conversasse com o filme. Não pensava nisso quando estava escrevendo. Só acreditava que poderia ser um bom livro. Chegará o momento em que as pessoas o lerão sem ter visto o filme, mas demorará um pouco.
Pitt e DiCaprio, como Cliff e Rick, em ‘Era Uma Vez... em Hollywood’ (2019).
Pitt e DiCaprio, como Cliff e Rick, em ‘Era Uma Vez... em Hollywood’ (2019).


P. Começou com ideias da história quando estava fazendo À prova de morte (2007). Quando soube que tinha um livro?

R. Tudo começou como um romance. O primeiro capítulo que tinha não está aqui. Era um livro cinematográfico sobre Rick Dalton, seus filmes, algo que alguém que acompanhou sua trajetória escreveria em profundidade. O capítulo seguinte foi o de Aldo Ray...

P. Uma parte muito triste. Um ator alcoólatra na vida real que está filmando em Almería.

R. É um personagem fascinante de Hollywood. Há algo comovente em uma decadência tão pública. Onde estava e quão baixo caiu. Hollywood está cheia de estrelas que vivem momentos difíceis 20 anos depois, mas Aldo Ray é o santo padroeiro de todos eles. Ele também é um grande personagem. É patético, mas também acho que o retratei com dignidade. Queria colocá-lo com Cliff, outro herói da Segunda Guerra Mundial, em condições semelhantes em um hotel sem ar condicionado na Espanha durante as filmagens.

P. Hollywood continua triturando vidas assim?

R. Posso estar errado, mas acho que não. O equivalente a Aldo Ray nos anos cinquenta, e ainda teve uma queda acentuada até 1978, talvez fossem alguns atores dos anos noventa. Talvez houvesse pessoas que eram estrelas na época e agora estão na televisão sem serem protagonistas. Mas não é a situação de Aldo. Não existem pessoas que chegaram ao topo e acabaram fazendo pornografia ou filmes que vão direto para o vídeo.

P. Como você fez a pesquisa para este livro?

R. Tudo sobre a família Manson está em quatro ou cinco livros que têm a história oral e eu a conto novamente com minhas próprias palavras. Mas a carreira deste ou de outro ator, os lugares de Hollywood, os programas e filmes... passei minha vida inteira enchendo a cabeça com esse tipo de coisa. Quando estava escrevendo o roteiro, fiquei surpreso com a quantidade de coisas que tinha retido desde que tinha nove anos. Carregava 70 quilos de peso extra no meu cérebro. Eu não precisava mais deles porque agora as pessoas digitam algo no computador e têm as respostas imediatamente. Eu me orgulhava de ter aquilo na minha cabeça, mas agora me pergunto por quê.

P. Acredita que isso torna este romance a única adaptação literária possível de seus filmes?

R. Sim. Sabia que queria novelizar um filme. Tinha me apaixonado pela ideia. Tinha nove para escolher e isso tirava um pouco de pressão. Pensei que era este porque era o mais recente, as pessoas gostaram e os personagens tinham causado sensação. Também porque contém certos aspectos históricos da indústria e desta cidade.

P. Por que se colocou como personagem?

R. Simplesmente aconteceu. Quando tive a ideia de que o grupo de atores fosse beber alguma coisa depois de filmar, escolhi um lugar que conhecia. Meu padrasto tocava piano lá. Eu o visitei algumas vezes. Talvez uma vez à noite, quando ele estava tocando. Normalmente, se eu estava lá, era porque ele tinha ido me buscar na escola. Minha mãe era enfermeira, mas ele tocava à noite e estava disponível de manhã. E me levava de vez em quando com ele para receber cheques. Era um lugar fascinante. Então coloquei meu padrasto e fui com ele. Pareceu-me algo doce.
No filme ‘Era Uma Vez... em Hollywood’, de Quentin Tarantino, Margot Robbie interpreta a atriz assassinada Sharon Tate.
No filme ‘Era Uma Vez... em Hollywood’, de Quentin Tarantino, Margot Robbie interpreta a atriz assassinada Sharon Tate.SONY PICTURES


P. Teve que buscar uma voz para seu estilo narrativo?

R. Acho que não batalhei muito. Escrevo roteiros há muito tempo. E é muito fácil. É algo que flui... Um romance é algo parecido. Não quero dizer que foi difícil, mas também não foi fácil. Você escreve muitos capítulos, acha que fez muito bem, volta a lê-los e percebe que são horríveis... mas ao menos conseguiu colocar algumas ideias no papel. Depois você reescreve e fica um pouco melhor. Nos roteiros eu consigo o que quero muito mais rápido.

P. Aprendeu alguma coisa?

R. Sim, sou um escritor melhor depois de terminar um romance.

P. Manteve segredo por muito tempo que estava escrevendo um livro.

R. Só queria comentários positivos (risos). Contei quando tinha quatro ou cinco capítulos e percebi que escreveria o livro inteiro. Três ou quatro pessoas recebiam os textos. E era emocionante porque agora estava escrevendo para alguém. Já não era algo estranho que fazia apenas para mim.

P. Sentou-se para escrever com algumas das críticas do filme na cabeça? Gerou muito debate que no filme o personagem de Margot Robbie quase não tivesse diálogos, por exemplo.

R. Procurei que não, porque se isso me afetasse seria deixá-los ganhar a partida.

P. No romance agora lemos uma Sharon Tate de carne e osso, com uma história por trás.

R. Sim e não. Rejeito completamente a ideia de que um personagem se define apenas pelo número de frases que tem. Não conheço nenhum ator que pense isso, a menos que seja um ególatra. Não conheço nenhum dramaturgo que acredite nisso e, francamente, nenhum crítico. É um argumento absurdo. Poderia ter inventado uma melhor amiga com a qual conversasse sem parar e cumpriria a cota. Ou poderia tê-la colocado com Dr. Saperstein, seu cachorro, fazendo comentários. E isso teria resolvido a polêmica, mas não teria feito dela um personagem melhor.

P. Sentiu-se mais livre escrevendo um romance?

R. A grande diferença é que o filme custou 95 milhões de dólares e foi investido ainda mais para vendê-lo em todo o mundo. E não tem um para-raios diante das controvérsias. É bom ser parte da conversa, mas não a ponto de ser um demérito para seus parceiros comerciais. Mas este é um livro de 9,99 dólares. Quem diabos se importa com o que está dentro?

P. Entrou em um novo território, o literário, e a crítica disse que escreve como Elmore Leonard. Sente-se confortável com isso?

R. Não escrevo como ele, mas sou fã dele. Estou contente. Esperava que alguns críticos fossem duros, mas não, eles foram generosos comigo. Muitos pensam que é um livro divertido. O filme é muito engraçado, mas o livro é ainda mais.

P. Está experimentando novos terrenos agora que o sol está se pondo em sua carreira cinematográfica?

R. Sim, mas sempre fui identificado como escritor. E este é o primeiro livro de vários.

P. Escreveu um romance com um menino de 15 meses em casa. Como?

R. Funcionou muito bem. A pandemia chegou e todo mundo estava em quarentena. Eu tinha planejado ficar esse ano em casa por causa do bebê e para trabalhar no livro, um trabalho solitário. Foi grandioso. Ia ao meu escritório enquanto minha esposa ficava com ele, depois almoçava com eles, brincava e dava banho nele. Foi genial.

P. Está gostando de ser pai?

R. Amo cada segundo. Está sendo uma maravilha.

P. Já mostrou o primeiro filme a ele?

R. Sim. Foi Meu malvado favorito 2.

P. Você se identifica com Rick, alguém que tenta dizer adeus a Hollywood?

R. Não. Ele vem de um lugar cheio de ansiedade e eu não. Ele está na obsolescência, de onde eu não estou nem perto. Uma das coisas engraçadas sobre minha relação com Rick é que gosto do personagem e é muito fácil para as pessoas sentirem pena dele. Leo [DiCaprio] sabia que eu não me identificava de maneira alguma com ele. Penso que é um chorão. Sua carreira não é ruim. É uma carreira muito boa, ignoro que é demasiado egoísta para apreciá-la!

P. Não está preparando o terreno para sua aposentadoria?

R. Não, ao contrário. Se há algo que estou dizendo com este romance, é “Olá!”.


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