quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Coringa / O vilão mais carismático, completa 80 anos

Cena da HQ ‘A piada mortal’.
Cena da HQ ‘A piada mortal’

Coringa, o vilão mais carismático, completa 80 anos

Na Espanha, duas HQs homenageiam o inquietante personagem, que inspira debates filosóficos sobre a liberdade



TOMMASO KOCH
Madri - 20 JUN 2020 - 15:40 COT


Uma última gargalhada estrondosa. E depois, o silêncio. O palhaço jazia imóvel no chão. Mas seu rosto continua sorrindo, para sempre. Porque a carreira original do Coringa era para durar apenas 30 páginas. O tempo de envenenar Gotham, sequestrar Robin, enfiar um par de sopapos no Homem-Morcego e disparar o primeiro “vou te matar” da sua relação. Na briga final do Batman nº 1, o “horripilante bufão” sofria um final digno de sua desumana ironia: ao tropeçar, cravava sua própria adaga no peito. Assim decidiram e desenharam seus pais, os artistas Bill Finger, Bob Kane e Jerry Robinson. Entretanto, o criminoso mostrou, já em sua primeira aventura, um enorme talento para se rebelar contra a ordem estabelecida. Seu carisma seduziu a editora DC Comics, que impôs o acréscimo de um quadrinho. Já dentro da ambulância, vinha à tona “um dado desconcertante”. E então um médico sentenciava: “Continua vivo. E vai sobreviver!”.

Era o final de abril de 1940, mas o diagnóstico continua sendo mais do que válido. O Joker acaba de completar 80 anos, e sua saúde não mostra nenhum abalo. Tampouco a idade o aburguesou ou saciou sua sede de revolução, muito pelo contrário. Duas HQs comemorativas acabam de ser lançadas nos EUA reunindo suas melhores histórias —na Espanha, sairão em outubro e novembro pela ECC Ediciones—. Oito décadas de delírio e sadismo, de caos e surpresas. E inclusive de debates filosóficos: há quem o considere marxista, existencialista ou a mais pura encarnação do super-homem teorizado por Nietzsche. “É o vilão mais interessante e o único que compete em fama com heróis como Superman, Homem-Aranha, Mulher-Maravilha e Batman. Ele é um exemplo de pura liberdade”, diz Robert G. Weiner, coautor, com Robert Moses Peaslee, do ensaio The Joker: A serious study on the clown prince of crime (“Coringa: um estudo sério sobre o príncipe-palhaço do crime”, em tradução livre).


Cena do filme 'O homem que ri' (1928), cujo personagem inspirou o estilo do Coringa. Cena do filme 'O homem que ri' (1928), cujo personagem inspirou o estilo do Coringa. WARNER BROS

Trazer o caos


De fato, embora tenha nascido como um gânster —inspirado no filme O homem que ri (1928), de Paul Leni—, o Coringa mudou de identidade várias vezes. Parecia um hippie na série televisiva dos anos 1970, foi hacker, gênio da química, e virou terrorista no século XXI. “Agora encarna todos os medos que não podemos controlar, o imprevisto. Se Batman luta pela ordem, o Coringa procura trazer o caos”, explica Gustavo Martínez, editor na ECC. Seu riso foi menos contagiante nos anos 1970, quando fracassou uma tentativa de lhe dedicar uma série de HQs própria. Mas seu pesadelo nunca sai de moda; ao invés disso, adapta-se à época. Tanto que sua última encarnação cinematográfica voltou a gerar polêmicas: após ganhar o Leão de Ouro em Veneza, o FBI avisou que Coringa, de Todd Phillips, podia estimular a violência; foi louvado ou atacado como ode anticapitalista, hino de esquerda ou de direita, segundo quem o veja.

Afinal de contas, o Coringa pode ser qualquer coisa. Tanto que uma teoria aponta que, por trás da sua identidade, se esconderia Alfred, o célebre mordomo do Batman. “Vai além de qualquer classificação ou integração dentro de uma estrutura de poder. Talvez por isso sua origem e seu fim sempre devam se manter indetermináveis”, lê-se na antologia Riddle me this, Batman!: Essays on the universe of the Dark Knight. Para desenhistas e roteiristas, representa o éden da liberdade. No fundo, o próprio vilão costuma convidar os leitores a desconfiarem do que se conta sobre seu passado. E até seus três criadores oferecem versões discrepantes sobre como o geraram.

Joaquin Phoenix no final de 'Coringa' (2019).
Joaquin Phoenix no final de 'Coringa' (2019). WARNER



Assim, cada novo artista lhe põe a maquiagem que preferir: um homem destruído pela morte de sua mulher grávida, ou a vítima dos abusos paternos; um desequilibrado sem escrúpulos ou a demonstração viva de que louca mesmo é sociedade. Uma mente, definitivamente, indecifrável, e por isso tão fascinante como inquietante, assim como sua fantasia de palhaço. O Coringa é uma piada tremendamente incômoda. “É igualmente provável que lhe mate ou lhe deixe viver. Fascina-me que nunca pague seus colaboradores. No máximo, não os assassina. E ainda assim sempre há gente disposta a trabalhar com ele”, observa Weiner.

Tamanha defesa da liberdade para todos leva o Coringa a ser comparado a Jean-Paul Sartre. Foi visto também como anarquista, por sua luta antissistema, ou sequaz de Marx, quintessência da luta proletária. Para outros, sua vontade de poder a todo custo e sem temor a nada coroa o manifesto filosófico de Nietzsche. Embora, entre tantas teorias, talvez a mais terrível seja a de A piada mortal. Na HQ escrita por Alan Moore, o Coringa simplesmente é um sujeito que teve o azar de perder tudo. “Basta um dia ruim para mergulhar o homem mais cordato do mundo na loucura!”, dispara o vilão. E um dia ruim, como se sabe, qualquer um pode ter.

Primeira aparição de Coringa,em edição em espanhol de 'Batman 1' (abril de 1940).Primeira aparição de Coringa,em edição em espanhol de 'Batman 1' (abril de 1940).ECC EDICIONES

Leituras selecionadas

Junto com o Coringa, em 2020 também completam 80 anos Robin e a Mulher-Gato. Daí que Gustavo Martínez, editor na ECC Ediciones, aceite selecionar uma série de HQs para tentar abranger a história dos três personagens. Do vilão, recomenda ler A piada mortal e Um sorriso de matar. Para o mais célebre ajudante do Batman, sugere Robin: Ano um, Jovens Titãs: Ano um e Asa Noturna: Volume 1.

EL PAÍS



sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Elizabeth Taylor / Mrs Palfrey no Claremont



 Margarida Periquito
 9789896419844
 01/2020
 184
 15,3 X 23,3 x 1 cms
 Capa Mole

 290 gr


Mrs Palfrey 

no Claremont

«Nomeado pelo The Guardian como um dos “100 melhores romances de sempre” e finalista do Man Booker Prize, Mrs Palfrey no Claremont é uma visão irónica e compassiva da amizade entre uma mulher de idade e um jovem autor, escrita por uma romancista magnífica, o elo de ligação que faltava entre Jane Austen e John Updike.» [Independent]
Numa chuvosa tarde de domingo, em janeiro, Mrs Palfrey, que recentemente se tornara viúva, chega ao Hotel Claremont, onde irá passar o resto dos seus dias.

Os outros hóspedes são pessoas — altamente perturbadas e excêntricas — que vivem de migalhas de afeição e de um interesse obsessivo pelas refeições servidas no hotel. Juntos, lutam contra os seus inimigos gémeos: o tédio e a morte.

Até que, um dia, Mrs Palfrey conhece o jovem e belo escritor Ludo, dando início a uma amizade pouco convencional…



SOBRE A AUTORA

Elizabeth Taylor

Elizabeth Taylor nasceu em Reading, no Berkshire, na Grã-Bretanha, em 1912. Estudou na Abbey School e trabalhou como governanta e bibliotecária antes do seu casamento em 1936. «Aprendi muito com esses empregos», escreveu, «e nunca lamentei o tempo que passei neles.» Viveu em Penn, no Buckinghamshire, durante a vida de casada. O seu primeiro romance, At Mrs Lippincote’s, foi publicado em 1945, sendo segui- do de vários outros.Ao mesmo tempo, escrevia contos, publicados em diversas revistas e reunidos em quatro volumes, e um livro para crianças, Mossy Trotter.Elizabeth Taylor ficcionou perspicazes e comoventes personagens da classe média inglesa.Morreu em 1975. Com o passar dos anos, foi sendo reconhecida como uma grande romancista por escritores como Sarah Waters, Elizabeth Bowen e Kingsley Amis.

RA


FICCIONES

DE OTROS MUNDOS

MESTER DE BREVERÍA







quinta-feira, 20 de agosto de 2020

García Márquez / “Pablo Escobar não podia distinguir entre o bem e o mal”

Gabriel García Márquez e Mercedes Barcha


García Márquez:
“Pablo Escobar não podia distinguir entre o bem e o mal”

O escritor leu para um grupo de jornalistas o rascunho de 'Notícia de um Sequestro'



ROSA MORA
Madrid, 25 jul 2019
ARQUIVO | 7 DE SETEMBRO DE 1995

“Antes de entrar no automóvel olhou por cima do ombro para ter certeza de que ninguém a seguia”. São as primeiras linhas do primeiro capítulo do novo livro de Gabriel García Márquez. Ele as leu para 12 privilegiados jovens jornalistas e poucas pessoas mais em Miraflores de la Sierra (Madri). Ali, quase em segredo, o escritor colombiano realizou um curso —“uma oficina”, corrigiu ele— de jornalismo, organizada por sua Fundación para el Nuevo Periodismo e pela Escola de Jornalismo do EL PAÍS – Universidade Autônoma de Madri. E esse livro, que não é um romance, sobre o narcotráfico na Colômbia é uma longa reportagem. Tudo que conta nele é informação cem por cento investigada e verificada durante três anos.


“Há apenas um mês esse livro tinha 700 páginas, agora tem 400”, disse. Provavelmente, terminará com 380 ou 450, depende do que eliminar ou acrescentar. A cópia que ontem mostrou é a 11ª versão que ele elabora e existirão muitas outras antes de publicar. “Eu digo para mim mesmo que sairá no Natal, sabendo que será um pouco depois”. Ainda não tem título definitivo. Pode ser Notícia de um Sequestro ou Os Longos Dias do Sequestro ou até Reportagem. De qualquer forma, será um dos livros mais esperados de 1996 e, sem dúvida, será uma aula de jornalismo e de literatura. Do livro, de jornalismo e de literatura García Márquez falou ontem com uma paixão contagiosa. Notícia de um Sequestro relata o caso de nove sequestros de jornalistas na Colômbia, ordenados pelo narcotraficante Pablo Escobar. “Sabia que não tinha saída e que a polícia ou seus rivais acabariam matando-o”. Por isso era melhor se entregar e usar esses jornalistas para pressionar o Governo e negociar suas condições de entrega. “César Gaviria [então presidente da Colômbia], com toda a dor de sua alma, não podia legislar para libertar os sequestrados”. Foi então uma negociação muito longa, durou quase um ano.

García Márquez não queria, de jeito nenhum, que Escobar aparecesse como protagonista do livro, por isso o traficante terminou como uma sombra esfumaçada. “Setecentas páginas me convenceram de que Escobar não podia distinguir entre o bem e mal”.

Já fazia tempo que o escritor queria voltar ao jornalismo. “Faz uns anos, o pão foi envenenado em uma cidade. Pensei que essa seria a reportagem perfeita, mas abri a boca e quando cheguei lá estavam todos os jornalistas da Colômbia para contar como Gabo fazia uma reportagem. Desisti”.


Longa investigação



Um tempo depois, ele se encontrou com Maruja Pachón de Villamizán, uma das sequestradas. Aí começou tudo. Fez uma longuíssima entrevista com Maruja e seu marido, Alberto Villamizán, pensando em escrever uma história. Logo se deu conta de que não podia dispensar o contexto. Investigou, entrevistou outros sequestrados sobreviventes, muita gente e foi surgindo a história. Vai entregar o livro a esses sobreviventes para que leiam antes de sua publicação. “Até para que apontem discordâncias se quiserem”.

“Foi fascinante voltar ao jornalismo e, além disso, sem um chefe de redação. Conto a rigorosa verdade, inclusive a parte mais subjetiva do que me contaram”. Esse esforço pela objetividade não oculta o estilo muito pessoal de García Márquez. “Não dá para dissimular. A voz do escritor precisa ser sempre a mesma”. García Márquez explicou ontem que articulou o livro em torno de dois mundos, o interno, o dos sequestrados pelo que tinham informação do que acontece no mundo, e o exterior, o dos familiares e amigos que ignoram tudo sobre os detidos, inclusive se estão vivos ou mortos. Dedica os artigos ímpares aos sequestrados e os pares aos que estão fora. O primeiro, esplêndido, relata o sequestro de Maruja e de Beatriz, sua cunhada.

As páginas que ontem o escritor leu já incluíam novas correções. “Faltam detalhes de interesse, embora não sejam indispensáveis. Por exemplo, falta um pouco de humor, embora eu sei que nos casos de sequestros nunca há humor”. Entre risadas explicou outra de suas manias: “Gosto que em meus livros todos os capítulos tenham o mesmo número de páginas. É um desafio e uma imbecilidade, mas eu gosto”. E com esse, está um pouco preocupado porque um capítulo é mais comprido que os outros, tem 43 páginas. Acha que poderá encontrar uma solução. Outro dos problemas que apresentou é o dos nomes. Primeiro cria o nome e depois o personagem ganha vida, cresce, explicou. E agora não conseguiu fazer isso. É uma reportagem.

“Quero convencer uma geração inteira de que a maneira mais limpa de competir é com a reportagem”, explicou a seu público entusiasmado. Nesse livro, disse, cuidou ao máximo os detalhes e não inventou nada. “Os escritores e os jornalistas ganham em credibilidade se tivermos muito cuidado com os detalhes”. Outro truque para conquistar o leitor é captar sua atenção e não deixar que ela se perca em nenhum momento. Tanto em um romance quanto em uma reportagem “o final de cada linha precisa manter o suspense para obrigá-lo a ler a seguinte”.

NA PELE DO TERROR




Gabriel García Márquez passou três anos submerso em um mundo terrível, o do narcotráfico. Não sentiu medo, disse, porque escreveu sobre uma história já passada, mas omitiu dados que poderiam ser perigosos para algumas pessoas. Enfiou-se na pele do terror e ontem transmitiu com tanta força esse sentimento que os ouvintes ficaram impressionados. Marisa Montoya, irmã do secretário da Presidência da Colômbia, foi sequestrada e assassinada. Entre ela e seus jovens sequestradores estabeleceu-se uma relação especial. Eles a chamavam de avó, ela os obrigava a rezar o terço. “Avó, prepare-se que vamos levá-la para outro lugar”, disseram um dia.

“Ela deve ter pensado que iam libertá-la. Penteou-se, pediu que a maquiassem, se arrumou, até conseguiu um pouco de perfume. Depois colocaram um capuz na cabeça dela, desses com buracos para os olhos e a boca. Colocaram-na no carro. Andaram apenas seiscentos metros, pararam e deram seis tiros nela”. E acrescentou García Márquez, com voz emocionada: “Seu irmão nunca fez nada, não moveu um dedo”. Nem sequer quis saber nada quando o escritor ofereceu-se para mostrar todo o material que tinha reunido.

Não foi o caso da mãe de Diana, outra jornalista sequestrada e que morreu por acidente depois de um cruzamento de tiros quando era transferida de lugar. “A mãe se agarrou ao presidente Gaviria, começou a persegui-lo, chegou a vê-lo quatro vezes. Disse que se sua filha morresse ele seria o responsável”.

Depois do tiroteio, Diana, gravemente ferida, foi transferida a um hospital em Cali.

Sua mãe disse a Gaviria: “Minha filha morreu e você é o responsável”. “Não morreu”, respondeu o presidente. “Morreu”, insistiu ela. “Não. Estou em contato com a polícia de Cali de forma permanente e me disseram”, rebateu. “Morreu”, repetiu. “Como sabe?”. “Porque é minha filha e é o que diz meu coração”. “Nesse momento, Diana tinha morrido”, concluiu García Márquez.

Todo mundo teria continuado escutando-o por horas.



segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Morre Mercedes Barcha, a mulher que tornou possível o sucesso de García Márquez



Mercedes Barcha y Gabriel García Márquez


Morre Mercedes Barcha, a mulher que tornou possível o sucesso de García Márquez

A esposa do Nobel de literatura faleceu neste sábado no México, aos 87 anos


Camila Osorio
Cidade do Mexico, 16 ag 2020

Entre os milhares de lendas e imagens literárias que o Nobel Gabriel García Márquez tornou famosas em seus 87 anos de vida, uma das mais conhecidas incluía sua esposa, Mercedes Barcha. Contava que ela penhorou vários eletrodomésticos para poder enviar pelo correio o romance que tornou Gabo universal. Mercedes Barcha morreu neste sábado na Cidade do México, aos 87 anos. Foram casados por 56 anos e tiveram dois filhos, Rodrigo e Gonzalo. O marido se encarregou de tornar o nome dela famoso durante anos porque não teria conseguido se entregar em tempo integral às letras não fosse o trabalho administrativo e o cuidado que ela lhe dedicou.

No dia em que o escritor terminou o manuscrito de Cem Anos de Solidão, na década de 1960, ele e a mulher foram ao correio do México para enviá-lo à editora na Argentina que estava interessada no livro. Um funcionário do local pesou as folhas do texto e disse que a remessa custaria 83 pesos, mas Mercedes --que era a administradora da família-- falou que só tinha 45. Os dois decidiram então enviar apenas metade do manuscrito, a parte que podiam pagar, e ficar com o restante na esperança de poder mandar depois. “Então, fomos para casa e Mercedes pegou as últimas coisas que faltava penhorar”, disse Gabo. Ela empenhou o aquecedor, seu secador de cabelo, a batedeira, e assim Mercedes conseguiu enviar o resto do romance que tornaria seu marido lendário. “Agora, só falta o romance ser ruim”, lhe disse, então, com raiva. Mercedes era a primeira pessoa que lia a obra de Gabo e era a crítica que o escritor mais temia.
“Sua personalidade era única, uma mescla singular de inteligência absoluta, força de caráter, pragmatismo, curiosidade, senso de humor e hermetismo'‘, disse Jaime Abello Banfi, diretor geral da Fundação Gabo, em um comunicado de condolências. “Querida Mercedes, você foi um polo na Terra, jamais te esqueceremos. Sua recordação nos inspirará.”

Embora ela sempre se certificasse de que a vida doméstica estivesse funcionando, Mercedes Barcha também era uma devota da literatura e lia os manuscritos do marido antes de muitos amigos do Nobel. Quando Gabo estava terminando Cem Anos de Solidão, disse a certa altura que a crítica que mais o preocupava era a da companheira. “A expressão em seu rosto me garantiu que o livro estava no caminho certo”, contou Gabo.

Pouco se sabe sobre os esforços de Mercedes para escrever, embora os arquivos de Gabriel García Márquez da Universidade de Austin-Texas contenham um pequeno texto que ela escreveu aos 15 anos para um jornal de estudantes. É um elogio ao enorme rio Magdalena, na Colômbia, que nasce na cordilheira dos Andes e deságua no mar do Caribe, onde ela o chama de “um tesouro” impossível de retratar. “Considero como um átomo o que minha caneta pode escrever sobre essa longa e majestosa corrente”, disse naquele texto de 1947.


“Os pais de Mercedes eram amigos dos pais de García Márquez”, diz Gustavo Tatis, biógrafo de Márquez e autor do livro The Conjurer’s Yellow Flower. Ela tinha 9 anos e ele 12 quando se conheceram, “e García Márquez teve desde muito cedo a clarividência de que esta seria a mulher que o acompanharia durante toda a vida”. Mercedes mais tarde inspirou vários personagens de Gabo em romances como Cem anos de solidão, O outono do patriarca e O amor nos tempos do cólera, que foi dedicado a ela. “Ela era uma espécie de Úrsula Iguarán”, lembra Tatis, “uma grande mulher por trás do gênio de García Márquez”.

Jon Lee Anderson, jornalista da revista The New Yorker e amigo de Mercedes, lembra que era uma pessoa escassa, com poucas palavras, mas que falava eufemisticamente e com sabedoria. “Quando escrevi um perfil sobre Gabo em 1999, entendi que só com a aprovação dela eu conseguiria acessá-lo”, diz Anderson, que, como outros amigos de Mercedes, se lembra dela naquele papel protetor de escritora. “Quando a conheci em Bogotá e conversamos, sem que ela me dissesse, senti que havia me dado a aprovação para que eu pudesse me aproximar dele”. Os amigos de Gabo eram facilmente amigos de Mercedes também, e ela decidia quais deveriam estar mais perto e quais deveriam ser distantes. No artigo de Anderson, quando falava com Gabo sobre sua esposa, o ganhador do prêmio Nobel lhe diz que ele tinha uma teoria: que Fidel Castro, amigo do escritor, na verdade confiava mais em Mercedes do que ele.

“Ela sempre foi uma mulher muito reservada, desempenhou muito bem aquele papel de muro de contenção diante de Gabo”, lembra outro amigo próximo, o escritor nicaraguense Sergio Ramírez. Outra pessoa que conseguiu passar por esse muro foi Zheger Hay, um militante de esquerda na Colômbia que foi exilado no México nos anos 80 e conheceu Mercedes logo após sua chegada. “Ela sempre teve uma vida muito discreta, sem se exibir”, lembra Hay. Mercedes, diz sua amiga, passava os dias cuidando das casas da família em Cartagena ou na Cidade do México e era constantemente informada sobre as últimas notícias políticas, embora tivesse o cuidado de não compartilhar sua opinião publicamente. “Mercedes era uma viciada em televisão para assistir ao noticiário, ela estava muito ciente de tudo”, diz Hay. “Mas tinha um senso de discrição especial, porque sabia muito bem que Gabo era seu marido e por isso tudo que ela dizia também podia virar notícia.”

Embora calorosa com seus amigos, Mercedes decidiu que não queria ser uma figura pública que falava constantemente na mídia sobre seu marido ou sua vida familiar, e é por isso que a maior parte do que se sabe sobre ela foi através das palavras de seu marido. Mas nenhum homem de letras pode se dedicar à literatura sem uma comunidade íntima para sustentá-lo. Com a sua partida, Mercedes lembra que hoje nem Cem Anos de Solidão nem O amor nos tempos do cólera existiriam sem uma mulher como ela.

EL PAÍS




sábado, 15 de agosto de 2020

terça-feira, 11 de agosto de 2020

O triunfo de Gisele Bündchen e do seu nariz

Gisele Bündchen - Wikipedia, la enciclopedia libreO triunfo de Gisele Bündchen e do seu nariz

A modelo brasileira chega aos 40 anos em plena forma e com uma carreira cheia de sucessos, apesar das dúvidas que seu físico provocou no começo



Carlos Primo
Madrid, 20 Jul 2020


Há uma história muito conhecida segundo a qual Gisele Bündchen, no começo da sua carreira de modelo, ainda adolescente, escutou que não iria longe devido ao seu nariz. Não é um mito, como confirmou Angela Missoni ao The New York Times em 2016: quando Bündchen posou em sua primeira campanha para a grife italiana, o fotógrafo Mario Testino decidiu que fosse penteada de tal maneira que o cabelo escondesse seu rosto. Testino, nas palavras de Missoni, “estava preocupado com o nariz dela”. Aquilo aconteceu em 1998, quando a modelo brasileira tinha apenas 18 anos. Nesta segunda-feira completa 40 como uma das profissionais mais conhecidas, influentes, prestigiosas e também atípicas do setor.

Este aniversário é uma cifra redonda, especialmente para quem está na carreira de modelo, a qual embarcou há décadas numa interminável corrida pela juventude. Bündchen, entretanto, conseguiu se localizar numa espécie de limbo geracional. A brasileira é mais jovem que as veteranas dos anos noventa, mas não tanto como a nova fornada de influencers encabeçada por Kendall Jenner, que lhe arrebatou o título de modelo mais bem paga do mundo em 2017.Última supermodelo ― assim a qualificou Claudia Schiffer em 2011 ― e primeira estrela digital da moda, tal como referendam seus 16 milhões de seguidores no Instagram, Gisele contou em numerosas ocasiões que chegou às passarelas por acaso. Nascida em uma família de classe média no Rio Grande do Sul, sua mãe a matriculou numa escola de modelos para que aprendesse a caminhar corretamente. Foi descoberta num parque de diversões, e as oportunidades chegaram em cascata. Mudou-se primeiro para São Paulo e depois para Nova York, onde ocupou um espaço no setor editorial e conseguiu um dos contratos mais cobiçados na indústria, com a Victoria’s Secret.

Bündchen foi um dos “anjos” da marca de lingerie de 1999 a 2007. Anos mais tarde, contou que decidiu deixar esse trabalho porque sua agenda de eventos havia se tornado muito ocupada e se sentia cada vez menos à vontade na passarela. “Eu me via num lugar diferente na minha vida e não tinha certeza de querer continuar trabalhando ali”, escreveu uma década depois em Aprendizados: minha caminhada para uma vida com mais significado, o livro de memórias e reflexões que publicou em 2018.

Bündchen não desfila desde 2017. Continua protagonizando campanhas de cosmética da Dior. Na mais recente, lançada em maio, posa junto à sua mãe, Vania. Também é rosto habitual da marca brasileira de joalheria Vivara. Só neste ano foi capa da Harper’s Bazaar russa, da edição norte-americana da Marie Claire e da Vogue Brasil. Entretanto, sua atividade nas redes sociais pouco tem a ver com a moda. Compartilha suas rotinas de exercícios e de ioga, escreve mensagens inspiradoras em inglês e português e divulga causas sociais, projetos solidários e iniciativas ambientalistas. Não tem alergia à política; no ano passado, suas críticas ao Governo de Jair Bolsonaro fizeram que o presidente brasileiro a qualificasse publicamente como “má brasileira”. Ela, envolvida há 13 anos na defesa do meio ambiente e na proteção da Amazônia, lhe respondeu em uma carta aberta que “maus brasileiros são os que desmatam”.

Em todo caso, os conteúdos que dão o que falar ultimamente estão mais relacionados à sua vida familiar. Está casada há 11 anos com o astro do futebol americano Tom Brady, com quem tem dois filhos que aparecem frequentemente nas redes sociais da modelo. Em abril, Brady falava abertamente em uma entrevista sobre as tensões existentes no casal pela dificuldade de conciliar vida profissional e familiar. O momento mais crítico do relacionamento, segundo o atleta, ocorrera dois anos antes. “Gisele não estava satisfeita com nosso casamento”, disse Brady. “Precisava de uma mudança. Ela me disse que embora a situação funcionasse para mim, não era igual para ela. É que às vezes em um relacionamento você se encontra num ponto em que tudo funciona para você, mas o importante é que funcione para os dois.”

Nos últimos meses, o casal protagonizou posts de agradecimento aos trabalhadores sanitários durante a pandemia e inclusive desafios virais no TikTok, utilizando o humor e a leveza como forma de calar os rumores. Não é uma estratégia inesperada na trajetória de uma modelo que sempre soube tirar proveito da naturalidade. Tanto faz que tenha um nariz que não parecia perfeito, uma anatomia mais sinuosa que os padrões ou uma forma de caminhar pela passarela que pouco tem a ver com o rigor da academia. Há décadas, os salões de meio mundo se empenham em oferecer às clientes cachos loiros idênticos aos que Gisele, segundo ela, sempre manteve de forma natural. E já se sabe que a chave para triunfar em um dos setores mais rebuscados do mundo é, paradoxalmente, conseguir que tudo pareça fácil.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Sobrevivente de Hiroshima / “Um exército de fantasmas veio até mim”




Hiroshima: los árboles que sobrevivieron a la bomba atómica y hoy ...
Hiroshima

Sobrevivente de Hiroshima: “Um exército de fantasmas veio até mim”

No 70º aniversário da bomba atômica de Hiroshima, sobreviventes revivem lembranças


Macarena Vidal Lyn
Hiroshima, Japão, 6 ag 2015


Na segunda-feira 6 de agosto de 1945, às 8h de uma manhã ensolarada em Hiroshima, Takashi Teramoto, de 10 anos, era o menino mais feliz do mundo. Sua mãe tinha se deixado convencer e o trouxera de volta para casa depois de passar meses recolhido a um refúgio infantil. Naquela noite, o garoto tinha dormido em sua casa pela primeira vez em mais de três meses. “Como me senti confortável! É uma de minhas lembranças mais intensas”, sussurra. Às 7h30, depois de ser acordado por um alarme antiaéreo, havia saído para brincar com dois amigos. Sua mãe o fez entrar às 8h10 para preparar-se para ir ao médico. Cinco minutos mais tarde, às 8h15, explodiu o inferno.

Hiroshi Hara.
Hiroshi Hara.M. V. L

Takashi nunca voltaria a ser completamente feliz. Em meio a um céu completamente limpo, o Enola Gay, um B-29 norte-americano pilotado por Paul Tibbets, havia lançado a primeira bomba atômica, chamada Little Boy.


Com cerca de três metros de comprimento e quatro toneladas de peso, carregava 50 quilos de urânio. A 600 metros de altura sobre o centro da cidade e 43 segundos depois de seu lançamento, sua explosão causou uma bola de fogo de 28 metros de diâmetro, com uma temperatura de 30.000 graus Celsius. Uma área de dois quilômetros de raio se tornou apenas terra queimada. Setenta mil dos cerca de 350.000 habitantes de Hiroshima, que até então não havia sido bombardeada na guerra, morreram imediatamente depois do ataque. Outras 70.000 pessoas morreram antes do fim daquele ano, vítimas de seus ferimentos ou da radiação.


“Vi de relance um grande clarão azul. E ouvi um grande estrondo. Depois não vi mais nada. A terra tremia e não paravam de cair coisas em cima de mim. Finalmente vi um pouco de luz e saí à rua”, onde uma vizinha se responsabilizou por ele. “Minha mãe ainda estava dentro da casa, eu não queria sair dali, mas os vizinhos me disseram que cuidariam dela. Quando começou a cair chuva ácida, gotas de água negra, a vizinha me protegeu com um pedaço de lata porque meu rosto ardia. Ela morreu meses depois, doente por causa da radiação. Estou convencido de que lhe devo minha vida”, lembra-se Teramoto.

Takashi Teramoto




Minoru Yoshikane também viu o clarão de relance. Aos 18 anos, estava terminando a escola secundária e aspirava a tornar-se professor de inglês, entusiasta que era da literatura e das canções nessa língua. Havia sido recrutado, como os demais estudantes da escola secundária, para trabalhar no esforço de guerra e encontrava-se numa fábrica esperando ordens. Quando explodiu a bomba, ele e seus colegas se refugiaram no sótão. “Duas horas mais tarde, um de nossos professores nos disse que a escola corria perigo e tínhamos que sair para oferecer ajuda, e então nos dirigimos ao centro.”

Nunca esquecerá o que viu. Não restavam casas em pé. Cerca de 90% dos edifícios de Hiroshima ficaram destruídos pela explosão e pelos incêndios que se seguiram. “Vi o que parecia ser um exército de fantasmas vindo até mim. Dezenas de feridos, queimados, com os rostos destroçados, não pareciam humanos. A pele caía em pedaços. Também havia mortos, muitos mortos. Fiquei muito assustado.”

Hiroshi Hara, de 13 anos, estava numa ilha próxima procurando comida para seu tio doente quando ocorreu a explosão. No dia seguinte, tentou chegar à escola, no centro de Hiroshima. “O rio estava cheio de corpos. Muitos feridos, queimados, com as orelhas derretidas. Imploravam por água, alguma coisa para beber. Ao verem que eu era estudante, perguntaram para que escola estava indo, se conhecia seus filhos e filhas. No momento da explosão, muitas crianças, agrupadas por idade e escola, estavam no centro trabalhando em fábricas ou construindo abrigos... Milhares e milhares deles morreram.”

Minoru Yoshikane.M. V. L.

Na sua fuga até o campo, o pequeno Takashi também havia encontrado outros desses feridos graves, que escapavam como podiam. Reconheceu um deles, com o rosto queimado e que caminhava com os braços estendidos à frente, para evitar que a pele que saía em tiras tocasse no chão: era um dos amigos com que estivera brincando antes da explosão e que morreria em poucos dias. O outro morreu imediatamente, ele saberia depois.

Três dias mais tarde, 9 de agosto, às 11h02 da manhã, outro B-29, Bockscar, lançava outra bomba, desta vez de plutônio, contra Nagasaki. O Fat Man, que tinha uma onda explosiva muito maior –equivalente a 22.000 toneladas de trinitrotolueno, contra as 15.000 do Little Boy— caiu sobre um bairro da periferia. Cerca de 70.000 pessoas morreram de imediato ou nos meses que se seguiram até o fim do ano. Em 15 de agosto, o Japão capitulou. Nesse mesmo dia, a mãe de Takashi morreu em decorrência de ferimentos.




Hiroshi Hara


O inferno não tinha acabado para as vítimas. Takashi, como muitos outros residentes, viu como perdia o cabelo por efeito da radiação. Sangrava pelas gengivas e pontos negros irrompiam na pele. Teve que ficar de cama até dezembro. Ele conta que ver as pessoas vomitar sangue se tornou algo normal naqueles meses. Seu irmão acabou morrendo depois de um câncer que ele crê ter sido causado pela bomba. “Muita gente continua sofrendo ainda hoje.”

Para os hibakusha, como são conhecidos no Japão os sobreviventes da bomba atômica, “foi um caminho difícil” desde então, como afirma Yasuyoshi Komizo, da Fundação para a Cultura da Paz de Hiroshima. Tiveram que viver sob a censura oficial dos EUA a respeito dos bombardeios e sob a discriminação dos próprios compatriotas, que temiam os possíveis efeitos da radiação. Alguns negavam que tinham estado ali. “Como qualquer ser humano, no início o que sentiam era ódio e vontade de vingança. Não mudaram de opinião facilmente. Mas com o tempo concluíram que continuar com ódio não faz sentido, que a paz é algo que cabe a cada ser humano, e querem dar seu testemunho para que nunca mais se repita um ataque nuclear.”