sábado, 2 de maio de 2015

Como Gisele explica e confunde o Brasil

Gisele Bünedchen
Como Gisele explica e confunde o Brasil

Não é apenas com a sua despedida no auge que Gisele explica o Brasil e suas riquíssimas contradições permanentes


Gisele se despede das passarelas. / FERNANDA CALFAT (GETTY IMAGES)
Continuo, estranhamente, achando que falta alguma coisa nessa linda, muito linda, como mais adianto explico, talvez seja coisa de macho-jurubeba que aprecia a fartura, a opulência, a comilança como ideia de quem viveu historicamente a fome atávica. É, amigo, mulher muito linda, nos padrões ditos ideais, até gay deseja, quero ver é amar a vida e a paisagem feminina indiscriminadamente e a qualquer hora. Não posso deixar, à guisa de um redundante guisadinho à brasileira, é de dizer que, se tiver que escolher, prefiro as normais e as minhas taras pelos humaníssimos defeitos. A perfeição exagerada broxa ou brocha – o dicionário admite as duas grafias.
Dito isto...

Querida Gisele, quando você estava lá se despedindo da plateia do SP Fashion Week esta semana, ave, o Congresso acenava ao trabalho precário
Como Pelé, a modelo Gisele Bündchen se despediu esta semana das passarelas ainda com muitas paradinhas sexualmente estratégicas, sua marca na moda, para gastar nos desfiles. Pelé fazia paradinhas nas cobranças de pênaltis, algo odiado pelos goleiros. Nos primeiros momentos, as moças que competiam com Gi, desculpa a intimidade, morriam de inveja de tal gesto da galega. O movimento sempre foi sexy tanto no orgasmo do gol quanto na reinvenção da câmera lenta para os fotógrafos do mundo fashion. Paradinha. É o faz-que-vai-e-acaba-fondo que dá um nó no verbo ir e vir, constitucionalissimamente falando.
Assim como o rei do futebol, tomara que a rainha da modelagem faça várias despedidas, mesmo que “oficialmente” tenha parado no auge como o 10 eterno do Santos Futebol Clube, o maior e mais elegante time de todos os tempos e de todas as galáxias. Toda nossa monarquia artística ou boleira, aliás, sempre amou uma cerimônia de adeus provisória. Só do rei do baião, Gonzagão, testemunhei pelo menos três, cada uma festa mais bonita e importante do que a outra. O título de nobreza dá esse direito no jogo tupiniquim dos tronos.
Mas não é apenas com a sua despedida no auge que Gisele explica o Brasil e suas riquíssimas contradições permanentes. A alemãzinha da colônia de Horizontina (RS) chega às passarelas aos 14, em 1994, ano do tetra da Copa de Romário e Taffarel nos EUA, sob o signo da euforia da criação do Real, ainda no governo Itamar Franco, com FHC no posto de ministro da Fazenda. Os escândalos da safra, tomando aqui a corrupção como vinho fino, eram o da compra dos equipamentos bilionários do Sivam --o sistema de vigilância da Amazônia-- e o caso da Pasta Rosa, a contribuição ilegal comprovada de pelo menos US$ 2,4 milhões do sistema bancário para candidatos governistas. Você não se lembra porque no tempo não havia essa de prender ninguém por essas vergonhas petistas que vemos até hoje na era Dilma.


Noves fora as tenebrosas transações de quase sempre, Gisele chega na precoce vida profissa em um ótimo momento de recuperação econômica e vento favorável soprando do Sul para o Sudeste e daqui para uma carreira internacional que todos bem sabemos. Coisa linda. Brasil-sil-sil. Muitos escândalos depois, como a Privataria Tucana e o Mensalão do PT, cada safra com seu aroma de amadeirado Pau-Brasil na retaguarda do populacho cheio da cachaça chamada esperança, Gisele reina no mundo. Pega também a fase do Brasil de Lula moda & modinha, a nossa pátria em chuteiras, anúncio da Copa 2014 e Olimpíadas 2016, e o mundo todo em havaianas aos nossos pés. O fim do rodrigueaníssimo complexo de vira lata.
Óbvio que a essa altura Gisele não dependia mais da economia do seu país de origem, embora tivéssemos, graças aos bons ventos do lulismo, melhor era do país de todos os tempos, alcançado o sétimo lugar no planeta. Bonito. Demais.
Entre o jurubeba de varejo e o pinot noir da gente fina, continuamos degustando nossos escândalos de sempre. Repórter investigativo de vários jornais, durante todo esse período Gisele, virei somellier de falcatruas de variados e sortidos aromas. Meu camarada de algumas tantas noites paulistanas Manoel Beato, cabra do ramo do vinho, me ajudou, sem frescuras ou rótulos, a gostar do bom e barato, mostrou como era possível, principalmente naquele tempo, eita Gisele, do dólar no 1x1 ou quase, aquele dólar Grenal empatado, jogo parelho, inverossímil e milagroso. Pior é que eu não obedecia nem à versão bagaceira do Beato. Queda por queda, querido amigo francês Camus, não há retro nem pós gosto na vida. Pense! Viver é tombo.

Gisele, amor, nem imagina entrar nessa política toda. O que desejava mesmo era revelar como tu explicas o Brasil na ótica da crônica de costumes
Que bobagem existencialista é essa, cronista nordestino picareta, ainda mais nessa hora no Galeto Sat's, Copacabana, oxe!, madruga. É o que cutuca uma linda puta à prova de pendores ideológicos, ela, a nova Lili Carabina, que apronta suas merdas na rua e chega no bar para devorar uns duzentos corações de galinha na brasa. Ora com vinho da Serra gaúcha, ora com a pinga da esperança dos mortais que comentam o noticiário e o 0x0 de Corinthians x San Lorenzo, o time do papa. Ela tem fé, acredita até em roubo repassado no videoteipe futebolístico.

Retrogosto da ressaca histórica

Você está certo, velho superego chamado Corisco. Meu papo é com Ela. Querida Gisele, pelo menos da Constituição trabalhista e cheia de direitos de 1988 até o retrogosto da ressaca dos feios, sujos e terceirizados de 2015, mudou muito, minha linda. Quando você estava lá se despedindo da plateia do SP Fashion Week esta semana, ave, o Congresso acenava ao trabalho precário, inclusive da mão de obra costureira da moda, o trabalho sem garantias, o serviço cujo direito é o pé-na-bunda, aquém, muito aquém do que imaginaram e fizeram teus conterrâneos Getúlio Vargas e o velho Leonel Brizola, para citar o homem das leis trabalhistas e o defensor com o luxo da coragem de uma Anita Garibaldi.

Gisele pós Gilberto Freyre

Gisele, amor, nem imagina entrar nessa política toda. O que desejava mesmo era revelar como tu explicas o Brasil na ótica da crônica de costumes, algo muito mais importante, como escrevi numa publicaçãozinha chamada O Livro das Mulheres Extraordinárias, aqui como infinitas modificações. Algo assim, não sei o que tu achas:
Gisele ainda engatinhava, anos 1980, quando o sociólogo Gilberto Freyre alertava, no Recife, sobre tendências de costumes e novas concepções de feminilidade no Brasil.
Profético, Freyre descreveu como o norte-europeizante ou albinizante de beleza que começava a se destacar na tevê, nas revistas e passarelas. A mulher alta, alva, loira, cabelos lisos e corpo menos arredondado. Havia também um reflexo desse impacto nas ruas: a morenidade cedia à loirice artificial.
Era a nova concepção “ianque”, em contraponto à beleza brasileiríssima da mulher mais baixa, morena, cabelos negros, longos, crespos, cintura fina, peitos pequenos e a bunda grande.
Naquele momento, o autor de Modos de homem & modas de mulhercitava apenas Vera Fischer como musa-mor dessa “nova mulher” que, de certa forma, resgatava a queda que o Brasil aristocrático tinha pelas bonecas francesas.
Mal sabia o bruxo de Apipucos que a menina que engatinhava em Horizontina se revelaria a referência e o modelo máximo de beleza brasileira na moda. O impacto eurotropical do Sul do país gerou Giseles em série no mercado fashion, embora nenhuma outra, jamais, tenha alcançado a mesma importância.
Na dialética do botequim, porém, o dilema proposto por Freyre continua rondando a cabeça do macho brasileiro. Há sempre algum canalha “nacionalista” em defesa de um tipo mais brejeiro, miscigenado, mignon. O assunto sempre dividiu as mesas. Com um detalhe: a avassaladora preferência feminina pelo “tipo Gisele”.
Em vez do alumbramento óbvio diante da beleza da top model que encantava o mundo, minha visão inaugural, quando estive frente a frente com Gisele, foi a da maioria dos homens do Brasil: fiquei achando que faltava alguma coisa. Trocaria fácil, fácil um tanto da elegância e competência na passarela por alguns quilinhos a mais. Muito gazela para o meu gosto.
Com toda a canalhice que é a façanha de dar uma nota para uma mulher que passa, como na brincadeira adolescente e porco-chauvinista, eu atribuí 5,5 para a moça. Que ousadia. Um traste feio como este cronista se atrevia a gigantesca e soberba impropriedade.
Que eu tenha direito ao sagrado perdão, Gisele, deixo aqui o meu mea-culpa. Aquela foi minha nota geral para as modelos da época, que definhavam de tão magras. Uma nota crítica e metonímica: confundi a parte pelo todo, portanto dei um 5,5 para a anorexia reinante no mundo.
Eu havia sido convidado pela Folha de S.Paulo, em 1997, para acompanhar Gisele no Morumbi Fashion e escrever uma crônica. Assim aconteceu nosso encontro. Eu era então um homem sério, um engravatado repórter de política. Um deslocado na moda, um homem de outro mundo, daí minha matutice estética.
Não poderia deixar de exaltar um rosto incrível, óbvio, uma comissão de frente, uns peitos que representavam um Brasil farto à Morumbi. A magreza de todo o corpo, porém, era equivalente aos grotões do país pré-Bolsa Família de Lula.
Depois, óbvio, fui entendendo que a Gisele ficou ligeiramente gostosa. Que era bela com aquele corpo mesmo, que tinha, sim, uma bunda que eu teimara em não perceber, confundindo a parte pelo todo dos desfiles – um esqueletismo que não batia com a minha fome ancestral.
O certo, caro Freyre, é que, mundo afora, Gisele reina como nossa Pelé loirissimamente bela. Não te preocupes, a beldade, paradoxalmente, leva o Brasil miscigenado à passarela, te garanto. Ela anda bonito demais, como na poesia suburbana de quem equilibra uma lata d’água na cabeça. Hoje daria nota 9,9 para Gisele. Quando ela ganhar alguns quilinhos, quem sabe, eu viro Carlos Imperial, grande canalha e artista do patropi pré-Gi e grito: “Dez, nota dez!”.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor do romance Big Jato (editora Companhia das Letras), entre outros livros.


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