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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Abdulrazak Gurnah ganha o Nobel de Literatura por sua “comovedora descrição dos efeitos do colonialismo”

 

Abdulrazak Gurnah


PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA 2021

Abdulrazak Gurnah ganha o Nobel de Literatura por sua “comovedora descrição dos efeitos do colonialismo”

O escritor tanzaniano, radicado no Reino Unido desde o final da década de 1960, leva o prêmio mais importante das letras universais



Andrea Aguilar
Madri, 7 Oct 2021

Começou a escrever aos 21 anos como um jovem refugiado tanzaniano no Reino Unido, e nesta quinta-feira, aos 73, estava na cozinha da sua casa quando recebeu um telefonema da Academia Sueca para lhe informar que ganharia o maior prêmio literário que existe. Horas depois, em Estocolmo, era anunciado ao público que o Prêmio Nobel de Literatura de 2021, dotado de 10 milhões de coroas suecas (6,28 milhões de reais), foi dado ao tanzaniano Abdulrazak Gurnah, “por sua comovedora descrição dos efeitos do colonialismo na África e do destino dos refugiados, no abismo entre diferentes culturas e continentes”. A surpresa foi notável não só para o autor, cujo nome estava fora das listas e das apostas.


Nascido em 1948 na ilha de Zanzibar, Gurnah escreve em inglês e já lançou 10 romances – todos inéditos no Brasil – como Paradise (1994), que foi indicado ao Booker Prize e ao Whitebread Prize. Outros títulos conhecidos são By the sea (2001), Desertion (2015) e os mais recentes Gravel heart (2017) e Afterlives (2020), elogiados pela crítica. Na manhã desta quinta (hora do Brasil), Anders Olsson, membro da academia, explicou como em seu “magnífico último livro ele se afasta das descrições estereotipadas e abre nosso olhar a uma África culturalmente diversa, pouco conhecida em outras partes do mundo”.



Gurnah também escreveu e editou ensaios sobre literatura pós-colonial e é professor emérito no departamento de língua inglesa da Universidade de Kent. Em seus textos analisou o trabalho de outro Nobel, V.S. Naipaul, e de um eterno candidato ao prêmio da Academia, Salman Rushdie – sobre quem também publicou um livro de introdução à obra, Companion to Salman Rushdie (Cambridge University Press, 2007). Mas, na ficção do Nobel de 2021, o que mais ecoa é provavelmente esse exílio britânico sobre o qual o Nobel sul-africano J. M. Coetzee escreveu em Verão. Gurnah é o sexto africano a obter o prêmio, depois do argelino Albert Camus (1957), do nigeriano Wole Soyinka (1986), o egípcio Naguib Mahfouz (1988), e dos sul-africanos Nadine Gordimer (1991) e J. M. Coetzee (2003).


No ano passado, o Nobel de Literatura foi atribuído à poetisa americana Louise Glück. Em 2019, para a polonesa Olga Tokarczuk. O prêmio de 2018, ao austríaco Peter Handke, foi adiado para 2019 devido aos escândalos de abusos sexuais e vazamentos que atingiram a academia sueca no ano anterior. O prêmio para o romancista tanzaniano neste ano revela um autor desconhecido para o grande público, algo que também é parte da tradição da Academia Sueca.


O autor chegou ao Reino Unido no final da década de 1960, após sair do seu país em um momento no qual a minoria muçulmana estava sendo perseguida. Tinha estudado na Universidade Bayero Kano, na Nigéria, e de lá se transferiu para a Universidade de Kent, onde se doutorou em 1982. Seus estudos se centram no pós-colonialismo e no colonialismo, especialmente relacionado com a África, o Caribe e a Índia.


Abdulrazak Gurnah se impôs na decisão final diante de outros nomes que apareciam como apostas para o prêmio neste ano, como a francesa Annie Ernaux, o queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, o japonês Haruki Murakami, o sul-coreano Ko Un, a guadalupense Maryse Condé ou a chinesa Can Xue. Outros autores que sempre aparecem como favoritos são Don DelilloSalman RushdieAdonis, Jon Fosse, Mircea CărtărescuHilary Mantel e Margaret Atwood.


EL PAÍS

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Volta ao mundo em livros / Tanzânia / Desertion

 



VOLTA AO MUNDO EM LIVROS: TANZÂNIA – DESERTION


Por JULIA BOECHAT
22/10/2021


Quando o prêmio Nobel de literatura de 2021 saiu para Abdulrazak Gurnah, um autor da Tanzânia, resolvi que o país merecia pular a fila. Fiquei com muita vontade de ler algo dele, e ele já estava na minha lista como um autor sugerido para a Tanzânia, então resolvi unir o útil ao agradável.

Vários romances dele pareciam interessantes, mas resolvi ler Desertion. O romance começa em 1899, quando Hassani, dono de uma pequena loja em Zanzibar, encontra um inglês passando mal na rua. Ele acha primeiro que o homem é uma aparição, e depois pensa que seria melhor deixar que um dos ricos da ilha tome conta dele, mas decide que é sua obrigação como muçulmano cuidar de um desconhecido doente. Como no good deed goes unpunished, ele é acusado por outro europeu de ter roubado e tentado assassinar o hóspede. Quando o inglês, Martin Pierce, recupera os sentidos, ele tenta reparar o dano, e acaba se apaixonando no processo pela irmã de Hassani, Rehana. Rehana é cercada de escândalos, já que o pai dela era indiano e ela foi abandonada pelo marido, também indiano, e quando a relação com um europeu se soma a isso, ela é forçada a abandonar a cidade.

No meio da história, começamos a descobrir mais sobre o narrador, Rashid, que abandonou Zanzibar anos antes, enquanto ele nos conta outra história de amor, a do seu irmão, Amin, com Jamila, outra mulher cercada por escândalos, para começar, o de ser uma descendente da relação proibida entre Martin e Rehana. Eles crescem na Zanzibar dos anos 50, na época da independência da Inglaterra, quando a elite omani do lugar foi expulsa do país. Com tudo isso, dá para sentir muito no texto a nostalgia de um autor por um mundo que não existe mais, por uma mescla de pessoas, línguas e culturas que era única. As relações me pareceram quase idealizadas no início do livro, cheias de um romanticismo, começando na própria profissão de Martin Pierce como um orientalista. E quanto mais a relação é revisitada nos olhos de Rashid, morando em uma Inglaterra onde ele recebe o tratamento reservado para imigrantes africanos e muçulmanos, mais ele vê as ligações entre esses casais e o colonialismo inglês em Zanzibar. Com isso, fiquei pensando muito sobre o título, Desertion, e achei uma resenha escrita pela Laila Lalami que expressou tudo o que eu queria dizer sobre ele:

“The desertion of the title should, by now, be fairly straightforward. White men desert their native lovers, Muslim men desert liberated partners, and young, educated men desert Zanzibar for the comforts of Britain. But there is another kind of desertion that haunts the novel: the British colonial experience. Indeed, Gurnah seems to suggest that Britain “deserted” its colonies, like the islands of Zanzibar, before the time was right. In a postcolonial novel this might seem like a startling assertion, but it is not new to Gurnah. One of the main characters in By the Sea remarks that he married in 1963, ‘a year before the British departed in a huff and left us to the chaos and violence that attended the end of their empire.’ Gurnah appears to fault the British for not living up to their responsibilities, for disrupting a social order without being asked and then leaving the resulting problems for others to solve. One could even argue that the disjointed narrative in Desertion is deliberate, that it is Gurnah’s way of reflecting a world in which relationships between people, between countries, are interrupted before they have run their course. Seen in this light, the novel has a staying power that belies its quietness.”

Já vi por esse romance por que o Gurnah é tão amado, e por que seu Nobel foi tão celebrado. Quando ele ficou sabendo do prêmio, ele respondeu que ele gostaria mesmo de ter mais leitores, e acho que em breve isso será possível no Brasil, já que já estão preparando traduções de seus romances. Zanzibar me parece muito interessante desde que eu fiz uma aula sobre o Oceano Índico, e a atmosfera desse romance foi perfeita para aprender mais sobre a ilha, e, por isso, foi uma escolha perfeita para a Tailândia.

VOLTA AO MUNDO EM LIVROS


terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Obra de Abdulrazak Gurnah editada pela Cavalo de Ferro em 2022

Abdulrazak Gurnah

 

Obra de Abdulrazak Gurnah editada pela Cavalo de Ferro em 2022

A obra do escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah, vencedor do Prémio Nobel de Literatura de 2021, vai começar a ser editada em Portugal pela Cavalo de Ferro, a partir do início do próximo ano, anunciou hoje a editora.



18:04 - 26/10/21 POR LUSA
CULTURA 
ABDULRAZAK GURNAH

A publicação da sua obra começará em fevereiro/março de 2022 com "Afterlives", o mais recente romance do escritor que se radicou no Reino Unido em 1968 para fugir da perseguição religiosa no seu país.

Seguem-se "Paradise", a obra que revelou Abdulrazak Gurnah como escritor, em maio, e "By the Sea", em setembro.

"Paradise", de 1994, partiu de uma viagem de investigação que o autor fez à África Oriental por volta de 1990, e inclui uma referência a Joseph Conrad.

"Afterlives", publicado em 2020, é uma espécie de sequela de "Paradise", pegando-lhe no ponto em que acaba: o cenário é o início do século XX, um tempo antes do fim da colonização alemã da África Oriental em 1919.

Quanto ao romance "By the sea", editado em 2001 e o único do autor que teve publicação em Portugal, pela Difel, em 2003, com o título "Junto ao mar", foca-se na identidade e autoimagem dos refugiados.

No início de 2023, a Cavalo de Ferro prevê publicar "Desertion", romance de 2005, que usa uma história de paixão trágica para iluminar as vastas diferenças culturais na África Oriental colonizada.

"É um absoluto privilégio incluir Abdulrazak Gurnah entre os autores da Cavalo de Ferro e poder divulgar a sua obra junto dos leitores portugueses. Uma obra importante, que ajuda a repensar questões que se posicionam no centro das preocupações do mundo atual, com uma voz que ainda teima em ser considerada periférica", afirmou o editor da Cavalo de Ferro, Diogo Madre Deus.

Abdulrazak Gurnah, nascido em 1948 em Zanzibar, na Tanzânia, foi o primeiro negro africano a ser reconhecido pela Academia Sueca em mais de 30 anos, depois do nigeriano Wole Soyinka em 1986.

Todo o seu trabalho e obra foi dedicado aos legados do colonialismo, exílio e dos refugiados, temas que refletem a sua própria experiência de vida.

O autor cresceu em Zanzibar, mas após a libertação pacífica do domínio colonial britânico, em dezembro de 1963, Zanzibar passou por uma revolução que, sob o regime do Presidente Abeid Karume, levou à opressão e perseguição de cidadãos de origem árabe, e à ocorrência de massacres.

Pertencente ao grupo étnico vitimizado, após terminar a escola Abdulrazak Gurnah foi forçado a deixar a sua família e a fugir do país, a recém-formada República da Tanzânia. Tinha então 18 anos de idade.

O autor, que vive no Reino Unido desde então, foi distinguido "pela sua penetração descomprometida e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no espaço entre culturas e continentes".

Segundo a Academia Sueca, "a dedicação de Gurnah à verdade e a sua aversão à simplificação são impressionantes. Isto pode torná-lo sombrio e intransigente, ao mesmo tempo que segue os destinos dos indivíduos com grande compaixão e compromisso inflexível".

A academia destacou ainda, na sua obra, "uma exploração interminável impulsionada pela paixão intelectual", que está presente em todos os seus livros, nomeadamente no seu mais recente romance, 'Afterlives'.

A obra do autor será ainda publicada por outras editoras do grupo Penguin Random House, no qual se inclui a Cavalo de Ferro, nomeadamente pela chancela Companhia das Letras, no Brasil, e pela Salamandra, em língua espanhola.

Ao longo da sua carreira literária, Abdulrazak Gurnah publicou dez romances e uma série de contos. O tema da perturbação dos refugiados atravessa todo o seu trabalho, e embora o suaíli fosse a sua primeira língua, o inglês tornou-se a sua ferramenta literária.

CULTURA AO MINUTO

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Abdulrazak Gurnah / Un Nobel para entender que o Ocidente não é o centro do mundo

 

Abdulrazak Gurnah


NOBEL DE LITERATURA

Um Nobel para entender que o Ocidente não é o centro do mundo

Repassamos alguns dos temas que irrigam a obra do novo Nobel de Literatura, o escritor de origem tanzaniana Abdulrazak Gurnah


Chema Caballero
Madri, 9 Oct 2021

A prosa de Abdulrazak Gurnah é polida e limpa, de fácil leitura. Também tem um retrogosto às narrações e conversas que se escutam em solo africano, o que faz apreciar cada uma das palavras. Mas sob ela fluem muitas outras coisas, horrores e atrocidades cristalizados em uma constelação de temas escassamente tratados nas literaturas africanas. Um deles é a presença das comunidades asiáticas assentadas na África oriental já no século XIX. Homens e mulheres que fugiram da pobreza na Índia e na Península Arábica e encontraram um meio de vida nessa região. Muitos foram comerciantes à procura de marfim e controlaram o tráfico de escravos do interior às regiões costeiras. Mercadorias que trocavam por quinquilharias, fuzis e pólvora, como reflete o autor em sua obra.


Mais tarde, os britânicos impulsionariam a chegada dessas pessoas como mão-de-obra qualificada à construção das ferrovias, por exemplo, em suas colônias da África oriental, e para preencher os postos de trabalho para os que não consideravam os nativos aptos. Mas os indianos e os omanis já estavam lá antes da chegada dos colonos. Também na atual Tanzânia, país onde Gurnah nasceu. E, entretanto, pouco se falou deles. Nos últimos anos, alguns autores lançaram um pouco de luz sobre essas comunidades, como é o caso do queniano Peter Kimani com Dance of the Jakaranda (2017) e a britânica Hafsa Zayyan em We Are All Birds of Uganda (2020). Muito antes deles, Gurnah sempre colocou o centro de sua narrativa nessas pessoas e descreve com detalhes e ternura seus costumes e formas de vida. Talvez tenha sido o pioneiro nesse campo.


Quando os alemães chegaram à África ocidental já encontraram os asiáticos lá. E essa é outra originalidade da literatura do tanzaniano. Muitos de seus romances se situam no período colonial alemão, no que foi a África oriental alemã (a Deutsch-Ostafrika), um território que compreendia a atual parte continental da Tanzânia, além de Ruanda e Burundi. A colônia se instaurou na década de 1880 quando as tropas alemãs intervieram para deter uma revolta contra a Companhia Alemã da África Oriental que operava na região e se manteve até o final da Primeira Guerra Mundial, quando após a derrota alemã a Sociedade das Nações entregou Ruanda e Burundi à Bélgica e Tanganica, como era conhecida a parte continental da atual Tanzânia, ao Reino Unido. Em seu último livro, Afterlives (2020), Gurnah mostra a resistência alemã à invasão britânica durante a guerra e o papel desempenhado pelos askaris, as tropas nativas que lutavam (forçadamente na maioria dos casos) ao lado dos alemães.


Foram escritos muitos romances que denunciam os efeitos causados pela colonização britânica e francesa nas sociedades africanas. Vale citar como exemplo o clássico por excelência das literaturas africanas: O Mundo se Despedaça (1958) do nigeriano Chinua Achebe. Mas poucas vezes se falou da colonização alemã nas literaturas africanas.


Esta, da mesma forma que as outras, rompeu a harmonia existente nas diversas sociedades presentes no continente africano anterior à sua chegada impondo suas normas e arrogando-se a faculdade de arrecadar impostos. Além disso, tratou com mão de ferro qualquer tentativa de dissidência e rebeldia. Essa intervenção convulsionou todo um sistema social e de relações que até aquele momento funcionava e gerou uma violência nunca antes vivenciada na área. No que talvez seja o melhor romance do tanzaniano – Paradise (1994) –, essas questões estão muito presentes e de maneira muito sutil se mostra como tudo se despedaça com a chegada dos alemães.

Mas Gurnah não é ingênuo e não tenta mostrar uma África pré-colonial idílica como talvez o façam Achebe e outros contemporâneos seus. A África que existia antes da chegada dos colonos era uma África cheia de contradições com suas diferenças, desigualdades, superstições e muita crueldade. Mas, por mais brutal que ela fosse, nunca seria como a dos alemães, homens frios, rígidos e muito seguros de si mesmos, tanto que os mitos populares diziam que “comem ferro” como aponta o autor em algumas de suas obras.


Todas as colonizações se caracterizam por seus massacres, e a alemã não é diferente. Basta lembrar o genocídio dos povos herero e namaqua na atual Namíbia. Em Tanganica isso também ocorreu. Lá foram massacrados, pelo menos, 75.000 tanzanianos para reprimir a rebelião Maji Maji (1905-1907) em que diversos povos se sublevaram contra a administração alemã pelas carências e pobreza geradas pelas políticas coloniais alemãs que exigiam aos camponeses prestar trabalhos forçados nas plantações de algodão, principalmente, para ser seu produto exportado à metrópole. Isso fazia com que precisassem abandonar seus próprios campos que eram os que os alimentavam. Essa brutalidade da colônia alemã fica muito bem evidenciada na narrativa de Gurnah.


Um terceiro tema, talvez menor e mais transversal, muito presente na obra do tanzaniano, é o do racismo. Os asiáticos consideram os africanos inferiores e os tratam como tal, impondo normas discriminatórias nos espaços que controlam. Essa realidade ainda pode ser percebida hoje nos países da África oriental. O próprio Gandhi foi acusado há alguns anos desse racismo durante sua estadia na África do Sul, o que causou manifestações e protestos em várias partes do continente africano que culminaram com a retirada de suas estátuas em algumas universidades como aconteceu na de Gana em 2018. Os alemães pensam o mesmo dos nativos, mas também dos asiáticos e tratam os dois grupos com igual desprezo.


É possível que seja a presença dessas temáticas e outras na obra de Gurnah ou qualquer outro motivo o que tenha levado um comitê de suecos a conceder a ele neste ano o Nobel da literatura. Talvez também tenha influenciado o fato desse comitê parecer gostar de rotacionar de continente e de gênero a cada ano, em uma tentativa de ser paritário ou algo do tipo. Por isso, era de se supor que neste ano o prêmio iria a um homem africano. Todas as apostas indicavam o queniano Ngugi wa Thiong’o, eterno candidato à premiação e, entretanto, não foi assim.


Por mais que possamos gostar da obra de Gurnah, se nos fosse dada a oportunidade de escolher teríamos preferido que o prêmio fosse para Thiong’o. Na literatura deste estão presentes muitas das questões tratadas por Gurnah, mas talvez apresentadas com mais crueza. Além disso, a perspectiva tomada pelo queniano é diferente, mais a partir dos últimos da terra, os mais estropiados e pisoteados. Ele relata as lutas de independência, o sacrifício do povo, a esperança quando se consegue a liberdade e o desencanto da realidade quando os que lideraram aquele sonho se assentam no poder e o utilizam em benefício próprio. E essas críticas custaram a ela a prisão, a tortura e o exílio. Mas talvez Thiong’o seja revolucionário e radical demais para os membros do comitê.


Thiong’o é uma referência das literaturas africanas, bem conhecido e acompanhado em seu país, onde suas obras são publicados em kikuyu e inglês, e em todo seu continente. Gurnah é praticamente um desconhecido em seu país de origem. Mora no Reino Unido e lá desenvolveu sua carreira. É muito difícil encontrar seus livros na Tanzânia, que precisam ser importados do Reino Unido. São encontrados somente na livraria de um centro comercial frequentado principalmente por expatriados a preços que somente esses expatriados podem pagar.


Humbert, de Arusha, no norte do país, confirma isso: “Pouca gente o conhece aqui, de modo que o prêmio passou praticamente despercebido. Somente o Governo postou algumas mensagens nas redes sociais parabenizando-o”. Mussa, em Zanzibar, diz: “Parece que há um escritor famoso que nasceu nessa ilha e não sabíamos”. Por fim, Abdurahman em Dar es Salaam enfatiza o dito pelos anteriores ao afirmar que “dizer que ninguém conhece Gurnah neste país talvez seja um pouco exagerado, mas devem ser bem poucos os que ouviram falar dele antes da notícia da premiação. Aqui, somos mais de literatura escrita em suaíli”.


Mas não vamos cair na armadilha de elucidar se existem as literaturas africanas e, em caso afirmativo, o que são. O escritor sudanês Abdelaziz Baraka Sakin, autor de The Messiah of Darfur, já se meteu nessa enrascada nessas mesmas páginas.


O fato de ser capricho de suecos e não satisfazer nossos desejos não impede que o Nobel outorgue um reconhecimento merecido a um autor que conseguiu com que o horror da colonização não seja esquecido, entre tantas outras coisas. Além disso, servirá para que seus livros sejam divulgados e os leitores tenham a oportunidade de ler narrativas onde “o universal não seja o ocidental”, como diz a especialista em literaturas africanas Sonia Fernández Quincoces.



sábado, 25 de dezembro de 2021

Abdulrazak Gurnah / “Não ganhamos prêmios por sermos africanos, mas pelo que escrevemos”


Abdulrazak Gurnah



PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

Abdulrazak Gurnah: “Não ganhamos prêmios por sermos africanos, mas pelo que escrevemos”

Vencedor do Nobel deste ano reflete sobre o conceito de literatura pós-colonial e as limitações do reconhecimento. “É a escrita que está sendo premiada, não a percepção dos leitores”


Andrea Aguilar

28 Nov 2021


Pouco mais de um mês depois de receber a ligação da Academia Sueca para informá-lo de que havia ganhado o Prêmio Nobel de Literatura de 2021, o escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah (Zanzibar, 1948) se conectava na segunda-feira passada por videochamada, de Barbados. Embora mantenha a sua residência habitual no Reino Unido, no condado de Kent, em cuja universidade fez o doutorado e lecionou durante quase três décadas, viaja com frequência para as Antilhas, pois sua mulher tem família ali.


Conciso e cortês, veste uma camisa de linho branco e está em um cômodo de madeira pintado da mesma cor e que nos oferece poucas referências do lugar. Já redigiu o discurso de aceitação do Nobel, que não irá buscar em Estocolmo, mas na Embaixada da Suécia em Londres.


A organização optou por manter a cautela na pandemia e celebrar os prêmios de acordo com o país de residência dos premiados. Gurnah trata da questão dizendo que suas palavras na cerimônia “não trarão grandes surpresas” e sem querer antecipar as ideias ou tópicos que abordará nessa verdadeira aula magna.


Autor de uma dezena de romances, Gurnah não aparecia nas apostas do Nobel. Segundo ele, recebeu o telefonema do comitê sueco com genuína surpresa, mas a verdade é que seu nome já havia constado da lista de indicados a dois dos mais conceituados prêmios da língua inglesa: o Booker Prize e o Whitebread. Foi em 1994, graças ao seu quarto livro de ficção, Paradise — Paraíso na edição que será reeditada em dezembro na Espanha, com nova tradução. “Não há edição brasileira dessa obra. “Foi o romance que me permitiu chegar a muitos e novos leitores. O processo de indicação ao Booker naquele momento não era tão longo como agora, era algo mais vivo e emocionante, ou pelo menos assim foi para mim”, lembra. Fazia muito tempo que ele havia deixado a Tanzânia, em 1968, quando o Sultanato de Zanzibar foi violentamente derrubado, e se graduou no Reino Unido. Depois de passar alguns anos dando aulas na Nigéria, voltou para a Universidade de Kent, começou a escrever romances e nunca mais foi embora.


Tinha começado aquele romance muito tempo antes e a primeira coisa que escrevera era precisamente a cena com a qual a história se encerra. “Foi assim que Paradise começou, mas depois fui escrevendo outras coisas, trabalhando em outros assuntos. Aquilo ficou guardado no meu caderno por seis ou sete anos sem que eu fizesse nada com isso, embora claramente o tivesse na cabeça. Queria escrever sobre a Primeira Guerra Mundial no leste da África. O tempo passava e comecei a me perguntar como se chegou àquele momento em que os alemães começaram a recrutar soldados ali”, recorda.


Em uma viagem bem longa e sozinho por vários países da região, ficou impregnado da paisagem e de outras histórias que ouviu nesses lugares. E assim foi se aproximando de “uma outra dimensão” sobre o lugar e sua história, sobre essa costa da Tanzânia e do arquipélago de Zanzibar. Tudo isso culminou de forma tangencial em um dos temas centrais da obra de Gurnah como um todo: o colonialismo. “O primeiro encontro com os colonos europeus é mais um dos temas sobre o qual comecei a refletir. Eu vi meu pai muito mais velho pouco antes de ele morrer e pensei que ele devia ser um menino quando aquilo aconteceu. Isso me levou a tentar imaginar como eram as coisas antes de acontecer aquele encontro, antes de esses estranhos chegarem e dizerem que eles estavam no comando de tudo”, explica, e acrescenta que sua escrita muitas vezes toma forma ao longo de muito tempo, e seguindo diferentes meandros, de modo que o princípio pode acabar sendo o final.


Essa extensa geografia de ideias acaba permeando o enredo e o terreno que Paradise percorre. No romance, a criança protagonista passa às mãos de um rico comerciante por causa das dívidas de seu pai e, depois de passar alguns anos trabalhando em dois empórios, se junta a uma grande expedição comercial, uma caravana mítica. Há referências a uma montanha nevada, um lago que conseguem atravessar em um único dia e algumas cachoeiras majestosas, mas não há nomes, nem mapas. “Escrevi presumindo que quem lesse conheceria o terreno e reconheceria o Kilimanjaro e o lago Tanganica. E de fato é possível ver o caminho que eles seguem, mas, ao não nomeá-lo, abre-se de alguma forma a possibilidade de que seja mais mítico, e de que o que é narrado possa acontecer em outro lugar. O leitor pode imaginar sem ter que se vincular a um lugar específico”, argumenta.


Sem dúvida, um dos mapas mais variados dos descritos por Gurnah em seu romance é o humano, com sua rica descrição da mistura de personagens de diferentes religiões e raças, dos árabes aos sikhs, que habitaram aquela parte do mundo no início do século XX e competiam entre si antes da chegada das potências europeias. “Havia distintas sociedades e culturas que estavam em contato sem que houvesse uma autoridade central ou algo semelhante. Eram grupos que não acho correto chamar de nações. Entre si viviam em uma negociação permanente, tanto cultural como linguística. Não havia uma cultura dominante”, afirma. “Aquelas pessoas eram mercadores que comercializavam entre si e se declaravam guerra ou o que fosse.” A descrição do caldeirão de culturas que povoam o romance de Gurnah escapa a qualquer simplificação ou idealização do passado pré-colonial. A violência e a crueldade despontam sem reparos e sem a necessidade de que o colonialismo europeu chegue. “As simplificações do passado e do presente têm que ser contestadas”, sustenta.

“A leitura e a escrita andam juntas, sempre pensei nisso. É um ingrediente tão fundamental para o escritor como as experiências de vida”

Essas pessoas falavam línguas diferentes, embora o protagonista, Yusuf, se faça entender em suaíli, um idioma cuja gênese, explica Gurnah, é muito semelhante à do crioulo e que, além do mais, é sua língua materna, embora sempre tenha escrito seus livros em inglês. “Em parte porque é um idioma no qual sempre fui bom, mesmo na escola em comparação com os colegas. Mas talvez o mais determinante é que só pensei em escrever quando cheguei à Inglaterra e, mesmo assim, levei algum tempo até aceitar que era isso que eu queria fazer. E durante todo esse período eu já estava morando no Reino Unido e estudando literatura e lendo em inglês. Tinha muita coisa ruim, mas uma das melhores é o quanto havia para ler, quantos livros eu tinha à minha disposição nas bibliotecas”, explica.


“A leitura e a escrita andam juntas, sempre pensei nisso. É um ingrediente tão fundamental para o escritor como as experiências de vida, é o que te dá contexto e relevo ao seu trabalho, o que te permite compreender a área em que você se desenvolve. Então, quando comecei a questionar em que idioma fazer isso, não passou outra coisa pela minha cabeça, fiz no mesmo idioma em que estava lendo.” A sua perspectiva sobre isso mudou com o tempo? “Assim como acontece com os atletas, às vezes você não consegue escolher a prova em que vai competir. Você pode gostar muito de salto em altura, mas pode não ser tão bom como nas maratonas. Algo assim acontece com a minha escrita, não foi de todo uma escolha. Faria diferente hoje? Não, porque gosto de escrever em inglês e sinto prazer ao fazer isso.”


A literatura pós-colonial é o campo de pesquisas dele desde a década de 1980, e em sua obra de ficção desempenha um papel central, conforme destacou o júri do Nobel. Em Paradise, um personagem fala sobre como a história será escrita e como os colonizadores farão com que leiam aquela versão como se fosse “a palavra sagrada”. Gurnah acha que literatura pós-colonial é um termo apropriado? “A primeira coisa é que isso nem existia quando eu estava cursando minha pós-graduação”, diz. O estudo das diferentes literaturas se dava então com base em um prisma geográfico e cada área contava com especialistas que defendiam seu terreno.


“Quem é você para falar sobre literatura caribenha ou literatura africana? Essa era a atitude até que um grupo de teóricos do pós-colonialismo, como Edward Said, Gayatri Spivak e Homi K. Bhabha, começou a aplicar certos modelos para identificar algumas experiências comuns e lançou as primeiras flechas. Foi isso que permitiu agrupar escritores de diferentes lugares e afastar-se das autoridades regionais. Só em meados da década de 1990 começamos a dar uma disciplina de Literatura Pós-colonial e isso aconteceu porque era algo útil, não a finalidade de tudo”, relata


“Hoje a discussão sobre o termo literatura pós-colonial não me preocupa. Eu a vejo como uma expressão provisória que nos permite reunir diferentes textos para estudo. É útil no plano acadêmico, mas não creio que seja como fórmula para descrever a literatura fora desse campo”, pondera, e prossegue dizendo que se alguém o descrever como um escritor pós-colonial, ele concordaria, embora isso diga pouco sobre a escrita em si. “A escola pós-colonial não deve ser jogada fora porque vale para algumas coisas, principalmente para ensinar e escrever crítica. Mas acho que essa utilidade, não servirá ao autor. É para quem estuda a sua obra, não para o criador. Quando me perguntam se sou britânico, africano ou zanzibar, bem, não sei, sou tudo isso, mas, serve para alguma coisa? Pode dar aos leitores um pouco de contexto, suponho, mas então você tem que ler os livros para chegar ao escritor.”


Sobre o sucesso da leitura pós-colonial no meio acadêmico, Gurnah tem uma visão positiva por sua enorme diversidade e abrangência. “Os especialistas do século XVIII, os medievalistas ou os estudiosos da dança moderna estão interessados nisso. As mentes se abriram com essa ideia do colonialismo e suas consequências, algo que se relaciona com qualquer aspecto da cultura, tanto os lugares europeus como dos lugares colonizados. Essa consciência surgiu e aumentou a conexão com o mundo não europeu. Os estudos pós-coloniais questionam coisas tão óbvias como os próprios escritos sobre o colonialismo. E é uma disciplina que vai em várias direções, que estuda relações que remontam a muitos séculos e que nos permite compreendê-las melhor.”


A coincidência este ano de vários escritores de origem africana na lista de importantes premiações literárias (o Nobel, o Booker, o Goncourt, o Camões e o Neustadt) levou alguns a se referirem a um fenômeno. Qual é a sua posição sobre isso? “Eles ganharam não porque são de origem africana, mas porque a sua escrita mereceu. Que esses prêmios tenham sido dados a esses escritores é bom, no ano passado não foi assim. Não é que mundialmente se tenha decidido que os africanos deveriam ser premiados, é a escrita que foi premiada”, afirma.


Essa literatura sempre esteve aí e até agora não lhe deram atenção? Esta é uma idade de ouro? “Há muitos escritores aos quais não se presta atenção e há muitos jovens, e alguns não tão jovens, que estão se destacando. E haverá muitos mais. Pode ser que haja um certo tipo de corrente, mas não estou seguro de que a atribuição dos prêmios signifique que haja uma consciência por parte dos leitores... Insisto, é a escrita que está sendo premiada, não a percepção dos leitores, embora isso tenha algo a ver. O que li sobre este assunto são manchetes sugerindo que este é o ano da África, e entendo que os jornalistas precisam tentar agrupar e resumir, mas o que isso faz é diminuir a conquista de cada um dos escritores premiados. E a história se apresenta como um fenômeno cultural mais do que literário.”


Gurnah conta que está trabalhando em um novo livro e se despede amável e apressado.


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