sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Milita Doré / Montanhas de Amor

 


Milita Doré

Montanhas de Amor

30 OUTUBRO 2020,
MIRIAN NOGUEIRA TAVARES

Thoreau, que tinha tuberculose, escreveu em 1852: "A morte e a doença muitas vezes são bonitas, como.... o brilho héctico da consunção." Ninguém concebe o câncer de maneira como a tuberculose era concebida, como uma morte decorativa e, muitas vezes, lírica. O câncer é um assunto raro e ainda escandaloso na poesia. E é inimaginável que ele confira estética à doença.

(Susan Sontag)

“Tudo o que faço transforma-se em paisagem”, diz-me a artista. Através do desenho, das suas linhas e curvas, da sua sinuosidade e dos múltiplos caminhos que a linha pode percorrer, Milita Doré está sempre a criar paisagens, mesmo quando faz retratos, mesmo quando o desenho é de um corpo.

A paisagem é um lugar para onde se olha, é um recorte da natureza, feito por quem a vê, é um espaço real e imaginado. É também, e sobretudo, um espaço metafórico. Ao contrário da natureza desmesurada e inabarcável, a paisagem pode ser representada e contida entre a moldura de um quadro, entre as margens do papel. E é essa capacidade metafórica da paisagem que encanta a artista e faz com que seus retratos sejam, ao mesmo tempo, corpo e relevo.




Montanhas de amor é uma exposição que expande a ideia de paisagem da artista que adentra, pela primeira vez, na paisagem inusitada do próprio corpo, região até então inexplorada. A tomada de decisão de autorretratar-se, e de se deixar retratar, surge num momento de extrema sensibilidade – a descoberta de um cancro da mama. A artista decide convidar amigos e amigas artistas para retratá-la antes de sofrer o tratamento que iria deixar cicatrizes, reais e metafóricas, no seu corpo.

No livro A doença como metáfora, lançado em 1978, Susan Sontag reflete sobre a condição de duas doenças, e dos seus doentes, que afetaram, e afetam, de maneira diversa a sociedade: a tuberculose, no séc. XIX e o cancro no séc. XX. Para a escritora e crítica norte-americana, a sociedade trata e/ou tratou ambas as doenças através de metáforas, pela incapacidade humana de encarar de frente a morte, ou a sua inevitabilidade. Encontrada a cura para a tuberculose, que foi romantizada e estetizada, e que se tornou parte do imaginário dos artistas do séc. XIX e começo do séc. XX, resta o cancro, ou o Grande C, a inominável doença que ainda não tem cura e que ainda é estigmatizada. Para Sontag, dificilmente alguém conseguiria transformar a doença em poesia, ou em arte. Para Milita Doré, transformar a doença em arte foi a maneira encontrada de lidar com o estigma, com o medo, com as incertezas e com a mutilação. Cada desenho, cada fotografia, cada peça criada pela mão das pessoas amigas que convidou, recompuseram o seu corpo, mantiveram a sua inteireza, eternizaram o efémero, que somos todos nós, em imagens que permanecerão.


Com as imagens dos outros sobre si mesma, a artista compôs duas grandes peças em forma de montanha – uma é preenchida por desenhos e a outra é feita de plástico, cordas e fios de metal. Funcionam como estruturas especulares, na forma, e opostas, no conteúdo: uma é cheia e a outra vazia. A ideia de cheio e de vazio é reproduzida nas várias obras que a artista concebeu para esta exposição. As imagens médicas, que mostram o corpo por dentro, foram seccionadas e bordadas em quatro guardanapos brancos – as linhas indiciam uma presença quase invisível, tracejada e incompleta. O bordado, arte tradicionalmente associada ao universo feminino, é usado pela artista como um apontamento sobre esse universo que é composto de ideias e de ideais – o corpo feminino tem volumes e reentrâncias próprias e os seios são como montanhas que despontam na/da planura do ventre e que encarnam, em si mesmos, o conceito de feminilidade.

Entre vídeos, esculturas, instalações, fotografias e desenhos, Milita Doré reafirma a sua condição – mulher e artista. Criadora de paisagens, condutora do seu próprio destino, a artista transformou as obras dos outros em suas, fundiu as representações com a presença do próprio corpo que se deixou retratar, que não resistiu, que se deu de forma generosa e que foi acolhido por mãos e olhos afetuosos. Ao tentar explicar o conceito de paisagem, o sociólogo alemão Georg Simmel afirma que a única maneira de o fazer é comparando o espectador ao artista:

O que faz o artista – tomar um fragmento da corrente caótica e infinita do imediatamente dado, concebendo-o e configurando-o como um todo autónomo, cortando os fios que o vinculam ao universo para voltar a entretecê-los – também o fazemos nós.

Montanhas de amor é o resultado da tessitura de vários fios, vinculados ao real e ao imaginário, ao universal e ao particular, à dor e à poesia. É uma paisagem laboriosamente inscrita no corpo da artista que se desvela para todos e para cada um de nós.

WSI



terça-feira, 27 de outubro de 2020

Gene Wolfe / A sombra do torturador

 


Gene Wolfe

A SOMBRA DO TORTURADOR

Alessandro Ciapina
20 de dezembro de 2014

A Sombra do Torturador (The Shadow of the Torturer) é o primeiro livro da Tetralogia do Livro do Novo Sol, de Gene Wolfe. É considerado por muitos um dos melhores livros de Fantasia Científica já escritos, um gênero que combina elementos da ficção científica com a fantasia. Este primeiro volume relata a história de Severian, um aprendiz na Ordem dos que Procuram a Verdade e a Penitência (a Ordem dos Torturadores) e os eventos que o levaram à sua expulsão da Ordem e sua jornada para fora de sua cidade natal de Nessus. O estilo é o da narrativa em primeira pessoa, onde Severian – que alega possuir uma memória eidética (fotográfica) – conta sua história situada em um futuro muito distante, quando o Sol enfraqueceu transformando a Terra em um mundo frio e moribundo. Os livros dessa série são os seguintes:

  1. A Sombra do Torturador (The Shadow of the Torturer);
  2. A Garra do Conciliador (The Claw of the Conciliator);
  3. A Espada do Lictor (The Sword of the Lictor);
  4. A Cidadela do Autarca (The Citadel of the Autarch);
  5. Urth do Novo Sol (The Urth of the New Sun) – Este último é uma espécie de epílogo para a história de Severian.

Gene Wolfe (83 anos) não é um autor de best-sellers, fato que explica o completo desprezo das editoras brasileiras. Apesar disso ele é muito elogiado pela crítica e é reconhecido no meio literário como um dos maiores escritores vivos da língua inglesa, dono de uma prosa densa, rica em elementos alusivos e sem apego à convenções de gêneros literários. Neil Gaiman o considera possuidor de um “intelecto feroz”, Swanwick disse que Wolfe é “o maior escritor da língua inglesa vivo atualmente” e Disch considerou O Livro do Novo Sol como “uma tetralogia sofisticada, inteligente e suave.”
Os quatro volumes do Livro do Novo Sol são povoados por referências e metáforas cristãs, especialmente católicas – Gene Wolfe é um católico praticante – mas o leitor não precisa conhecer nada de teologia para aproveitar o livro pois essas referências ficam restritas ao background da história.
Um exemplo do uso de símbolos e referências católicas neste livro é o de Santa Catarina de Alexandria que foi presa por censurar a perseguição aos cristãos pelo imperador Maximino Daia. O imperador convocou 50 dos maiores sábios do mundo para convencê-la de que ela estava errada, e que deveria negar o Deus dos cristãos. Mas os argumentos de Catarina era tão eloquentes e convincentes que foi ela quem acabou convertendo os sábios ao cristianismo. Após a tortura Santa Catarina foi decapitada tornando-se uma das maiores mártires do católicos. Ironicamente a santa é apresentada como a padroeira dos Torturadores, e Severian, assim como os sábios da lenda católica, acaba traindo sua Ordem ao mostrar misericórdia à uma exultante da nobreza geneticamente alterada de Urth. Essa “traição”, acaba levando à jornada do exílio de Severian.

Antes de ser expulso para o exílio na longínqua cidade de Thrax, ele recebe de seu mestre a espada Terminus Est, uma impressionante espada, com a ponta quadrada, guarda mão de prata com duas cabeças entalhadas, punho de onyx com fita de prata e uma opala na ponta. As palavras Terminus Est gravadas em sua lâmina significam Esta é a Linha de Divisão. No meio da lâmina existe um canal por onde corre um metal líquido chamado de hidrargiro, mais pesado que o ferro, e que ao erguer a espada acima da cabeça desloca-se para a próximo do punho, e ao descer a espada desloca-se para a ponta, auxiliando o executor a manter o equilíbrio caso seja necessário manter a espada erguida durante muito tempo até o término de uma oração ou a ordem de um inquiridor.

Abro um parênteses para comentar algo sobre o sub-gênero dessa história, o pouco conhecido Morte da Terra (tradução livre de Dying Earth) que difere do popular sub-gênero pós-apocalíptico por não tratar de uma destruição catastrófica, mas sim de uma exaustão entrópica da Terra. O primeiro livro desse gênero foi Le Dernier Homme (1805) que narra a história de Omegarus, o Último Homem na Terra, que mostra uma visão de futuro onde a Terra tornou-se completamente estéril. Outros autores modernos também escreveram excelentes livros nesse sub-gênero, como Arthur C. Clarke em A Cidade e as Estrelas (1956) e George R. R. Martin em Morte da Luz (1977).

A edição portuguesa, possui alguns erros de tradução e vários erros tipográficos, além de não possuir o apêndice que existe na edição em inglês: Social Relationships in Commonwealth. Esse apêndice apresenta, de forma sucinta, a curiosa divisão da sociedade de Urth (uma corruptela para Earth) em sete grupos básicos, entre eles: exultantes, armigers, optimates, religious, pelerines e cacogens. Mais tarde descobrimos que existem mais de 135 classes na complexa sociedade de Urth, algumas com números muito reduzidos como a dos Conservadores, responsáveis pela conservação dos livros da biblioteca de Nessus e manutenção do Jardim Botânico, uma espécie de museu vivo com ecossistemas há muito tempo extintos. Em meio à narrativa podemos entender melhor os papéis desses grupos e é fascinante como o autor consegue apresentar essa estranha sociedade de forma natural e convincente, utilizando-se da visão de Severian, agudamente sensível às impressões do mundo exterior, propiciando uma narrativa extraordinariamente enriquecida pelas reflexões do seu narrador.

É um livro extremamente difícil de encontrar no Brasil e em Portugal, pois existem poucas cópias no mercado de usados. Após buscas exaustivas localizei todos os livros da série: A Sombra do Torturador (Livraria Traça, R$23,27), A Garra do Conciliador (Estante Virtual, R$26,42), A Cidadela do Autarca (Estante Virtual, R$45,16), e o mais difícil de encontrar foi A Espada do Lictor (wook.pt, R$96,86 já incluindo o frete internacional).

Muito mais que uma simples fantasia épica, O Livro do Novo Sol é uma obra como poucas, escrita com qualidades estilísticas inquestionáveis que criaram um mundo cruel mas ao mesmo tempo fascinante e merecedor de nossa atenção. Se você tiver sorte de encontrar esse livro não pense duas vezes, é um livro obrigatório para qualquer estante de ficção!

LEITURAS PARALELAS


domingo, 25 de outubro de 2020

Louise Glück / Gratidão



Louise Glück

Gratidão

Não pense que não sou grata por tuas pequenas
gentilezas.
Gosto de pequenas gentilezas.
De fato as prefiro à gentileza mais
substancial, que está sempre a te cravar os olhos,
feito um grande animal sobre o tapete
até que tua vida inteira se reduza
a nada além de levantar manhã após manhã
embotada, e o sol luminoso rebrilhando em seus caninos.




segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Louise Glück / Itaca



Louise Gülck

⁠Ítaca

O ser amado não 
precisa viver. O ser amado
vive na cabeça. O tear
é para os pretendentes, suspenso
como uma harpa de brancos filamentos.
Ele era duas pessoas.
Era corpo e voz, o fácil
magnetismo de um homem vivo, e então
o sonho revelado ou a imagem
formada pela mulher manejando o tear,
ali sentada num salão cheio
de homens de mentes literais.
Se te causa pena
o mar enganado que tentou
levá-lo para sempre
e devolveu apenas o primeiro,
o verdadeiro marido, deverias
sentir pena desses homens: eles não sabem
para o que estão olhando;
eles não sabem que quando alguém ama dessa maneira
o manto se torna um vestido de casamento.


sábado, 17 de outubro de 2020

Louise Glück / Lamium

 


Louise Glück

Lamium


É assim que se vive com um coração frio. 
Como eu vivo: nas sombras, rastejando sobre pedras frias,
sob as grandes árvores de bordo.

O sol mal me toca. 
Às vezes o avisto no início da primavera, nascendo bem ao longe.
Folhas nascem a recobri-lo, ocultando-o por completo. Posso senti-lo
reluzir por entre as folhas, errático,
como quem que bate na lateral de um copo com uma colher metálica.

Nem tudo o que é vivo requer 
o mesmo nível de iluminação. Alguns de nós
produzimos nossa própria luz: uma folha dourada
como um caminho que ninguém pode trilhar, um raso
lago de prata na escuridão sob os grandes bordos.

Mas disso você já sabe. 
Você e os outros que pensam
que vivem pela verdade, e por isso, amam
tudo o que é frio.




quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Louise Glück / A íris selvagem

 


Louise Glück

A ÍRIS SELVAGEM

Louise Glück / El iris salvaje


No fim do meu sofrimento
havia uma saída.

Ouça-me: do que você chama de morte,
eu me lembro.

Acima, ruídos, ramos de pinheiros se movendo.
Depois, nada. O sol fraco
cintilou sobre a superfície seca.

É terrível sobreviver
como consciência
sepultada sob a terra escura.

E então acabou: aquilo que você mais teme, sendo
uma alma e impossibilitada
de falar, terminando abruptamente, a terra dura
cedendo um pouco. E o que me pareceu serem
pássaros se movendo por entre os arbustos rasteiros.

Você que não se lembra
da passagem do outro mundo
eu lhe digo o que poderia falar vezes sem conta: o que quer que
retorne do esquecimento retorna
para encontrar uma voz:

do centro da minha vida surgiu
uma grande fonte, profundas
sombras azuis na água azul do mar.





quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Louise Glück / Confissão



Louise Glück

Louise Glück

Confissão

Louise Glück / Confesión


Dizer eu não tenho medo – 
Não seria certo.
Tenho medo da enfermidade, da humilhação.
Como todos, tenho meus sonhos,
Mas aprendi as escondê-los
Para proteger-me
De toda a consumação: toda felicidade
Atrai a ira das Parcas.
São irmãs, selvagens –
No final, não tem
Outra emoção apenas inveja.




segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Louise Glück / O espelho

 


Louise Glück

O Espelho


Olhando-te no espelho eu pergunto
como é sentir-se tão belo
e porque em vez de amar-te a ti mesmo
te cortas, barbeando-te
como um cego. Creio que me deixas observar
de modo que possas voltar-te contra ti mesmo
com maior violência,
precisando mostrar-me como arranhar a carne
desdenhosamente e sem hesitação,
até que te vejo corretamente,
como um homem sangrando, não
o reflexo que eu desejo.





sábado, 10 de outubro de 2020

Louise Glück conquista o Nobel de Literatura 2020

 

Louise Glück


Louise Glück conquista o Nobel de Literatura 2020

Academia Sueca reconhece o trabalho da norte-americana, considerada uma das escritoras mais talentosas de sua geração. É a primeira mulher poeta a ganhar o Nobel desde a polonesa Wislawa Szymborska, em 1996


Juan Carlos Galindo

Madri, 8 oct 2020


A poeta norte-americana Louise Glück (Nova York, 77 anos) ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 2020 por sua “inconfundível voz poética, que, com uma beleza austera, torna universal a existência individual”. Glück é a primeira mulher poeta a receber o Nobel desde a polonesa Wislawa Szymborska, em 1996. “Em seus poemas, o eu ouve o que resta de seus sonhos e ilusões, e ninguém pode ser mais duro do que ela para enfrentar as ilusões do eu”, disse a Academia Sueca sobre Glück. Seus temas são a infância e a vida familiar, através da qual busca o universal. Os mitos e motivos clássicos são duas ferramentas presentes na maioria das suas obras para expressar essas sensações.

A escritora sucedeu os dois vencedores do ano passado, a polonesa Olga Tokarczuk (Nobel de Literatura 2018, ano em que não foi entregue o prêmio) e o dramaturgo e escritor austríaco Peter Handke (2019). Em 2017, a instituição que concede o prêmio Nobel se viu envolta num escândalo tão grande que a obrigou a suspender a premiação no ano seguinte. Em 2019, a entrega do prêmio a Handke, um autor cujas opiniões causaram repúdio na comunidade literária, envolveram novamente a academia em polêmicas.

Nascida na cidade de Nova York, a nova Nobel de Literatura cresceu em Long Island e se formou em 1961 na escola secundária George W. Hewlett. Posteriormente frequentou a faculdade Sarah Lawrence, em Yonkers (Estado de Nova York) e a Universidade Columbia. Ganhou o Prêmio Pulitzer de poesia em 1993 por sua coletânea The Wild Iris (“a íris selvagem”), e o Prêmio Nacional do Livro em 2014. “Virei uma velha. / Acolhi com gosto a escuridão / que tanto temia”, escreveu em Vita Nova.

A autora —inédita no Brasil— é considerada uma das poetas mais talentosas da sua geração, por sua “excepcional capacidade de fazer que a experiência seja assumida como própria por um leitor surpreso com a intensa percepção de poemas que iluminam acontecimentos absolutamente comuns”, como disse o crítico Andrés Ortega em uma resenha de The seven ages, publicada neste jornal. Sua primeira obra, Firstborn (1968), a fez ser aclamada como uma das poetas mais destacadas da literatura contemporânea do seu país. Com livros como The triumph of Achilles (1985) e Ararat (1990) ficou conhecida fora dos Estados Unidos. Averno (2006) é, na opinião da Academia Sueca, “uma coletânea magistral, uma interpretação visionária do mito da descida de Perséfone ao inferno no cativeiro de Hades, o deus da morte”. O júri ressalta também o valor da última coletânea de Louise Glück, Faithful and virtuous night (2014). Mas Glück não escreve só poesia. Segundo o secretário permanente da academia, Ander Olsson, em seus ensaios ela dialoga com outros poetas cruciais da língua inglesa, como T. S. Eliot e John Keats.

A escritora Louise Glück.THE POETRY FOUNDATION

Turbulências em Estocolmo

Os dois últimos anos foram turbulentos em Estocolmo. Em 2018, a Academia Sueca —envolvida num escândalo sexual e de vazamento dos nomes dos premiados, que desembocou na demissão de vários de seus membros— optou por não conceder o prêmio e se submeter a um processo de reflexão e mudanças. No ano passado, a concessão do Nobel a Handke, um autor que tinha estado em muitos bolões de aposta, mas que parecia impossível de ser premiado por seu apoio ao líder sérvio Slodoban Milosevic durante a guerra da Iugoslávia, desatou novas tormentas.

Todos esses antecedentes levaram muita gente a crer que em 2020 o prêmio seria dado a uma pessoa de reconhecido prestígio e que não gerasse polêmicas. Nas últimas semanas, não houve a tradicional chance de espalhar rumores e especulações nos corredores da Feira de Frankfurt, cancelada devido à pandemia de coronavírus, mas mesmo assim as apostas, bolões e palpites não desapareceram absolutamente. Na casa de apostas Ladbrokes, a escritora Maryse Condé (Guadalupe, Caribe, 83 anos) encabeçava a lista de favoritos, seguida muito de perto por Liudmila Ulitskaya (Rússia, 77 anos). Mas voltaram a errar.

Em 2015, o então presidente dos EUA, Barack Obama, condecorou a poetisa Louise Gluck por sua contribuição com a cultura norte-americana.Em 2015, o então presidente dos EUA, Barack Obama, condecorou a poetisa Louise Gluck por sua contribuição com a cultura norte-americana.ALEX WONG /


Prêmios desiguais


Até 2020 foram entregues 113 prêmios Nobel nesta categoria (apenas um deles concedido a um autor de língua portuguesa, José Saramago). Entre mais de uma centena de premiados, apenas 16 eram mulheres. A idade média dos vencedores é de 65 anos, sendo Ruyard Kipling o mais jovem (41 anos) e Doris Lessing a mais idosa (88 anos).

Entre os ganhadores recentes do Nobel de Literatura se encontram, além dos dois do ano passado, Kazuo Ishiguro (2017, Reino Unido), Bob Dylan (2016, Estados Unidos), Svetlana Aleksievich (2015, Belarus), Patrick Modiano (2014, França), Alice Munro (2013, Canadá), Mo Yan (2012, China), Tomas Tranströmer (2011, Suécia) e Mario Vargas Llosa (2010, Peru).

COMO É ESCOLHIDO O NOBEL DE LITERATURA

A Academia Sueca se ocupa da seleção dos candidatos ao Nobel de Literatura e conta com 18 membros. O comitê do Nobel de Literatura, composto por quatro ou cinco membros, é o órgão que avalia as indicações e faz suas recomendações à Academia. Nesse comitê, presidido pelo professor Anders Olsson, estão os escritores Per Wästberg e Jesper Svenbro, e se somaram três especialistas externos: Mikaela Blomqvist, Rebecka Kärde e Henrik Petersen. O prazo para apresentar as indicações, que podem ser feitas por outros premiados, outras academias e professores, começa em setembro e vai até 31 de janeiro. Em abril restam 15 a 20 candidatos, e em maio a lista é reduzida a cinco, selecionados pelo comitê. Junho, julho e agosto são usados na leitura da obra desses finalistas, e em setembro os membros da Academia deliberam e discutem. O prêmio é anunciado em outubro e entregue em dezembro.


EL PAÍS




FICCIONES
Casa de citas / Manuel Borrás / Louise Glück


MESTER DE BREVERÍA




sexta-feira, 9 de outubro de 2020

João de Mancelos / Há demasiada beleza em ti

 


Alex Colville


João de Mancelos 

Há demasiada beleza em ti

 

conheci-te, ainda tu desenhavas
corações de giz
nos muros da escola velha.

nesse tempo, deus existia ainda
e tudo quanto era frágil respirava
loucamente.

havia sempre música
para os cleptomaníacos do amor
cada menina, uma canção.

os rapazes cresciam
com olhos prateados
e totens erguidos nas dunas.

debaixo da saia das raparigas
havia flores rasgadas
e sonhos de cavalos livres.

tão jovem, só o vento
e a revolução
que, beijo a beijo, construíamos.

toda a beleza desse tempo adormece
em mim, a sua corola intacta,
num outono de pássaros mortos.

e é por essa beleza que hei de ir
ao encontro do vento
e de ti,

para te devolver a inocência,
a labareda, o perfume azul
do lilás,

e o olhar de todas as meninas
que erradamente amei
em vez de ti.