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sábado, 23 de janeiro de 2021

De duplos e únicos / Criação e tradução em Beckett

Samuel Beckett
Mathieu Laca

 

De duplos e únicos: criação e tradução em Beckett 


Ana Helena Souza
QORPUS
Edição N. 029


Este artigo foi reelaborado a partir da palestra apresentada no dia 3 de outubro de 2018 no evento Samuel Beckett e tradução: teatro, prosa, música, corpo e performance, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC. Foi um grande prazer participar dessa jornada, na qual foram compartilhados diversos modos de experimentar a obra beckettiana por meio da tradução, seja ela linguística, performática, musical ou interpretativa. Foi como tradutora de cinco livros de Beckett – MolloyMalone morreO inominávelComo é e Companhia e outros textos – que dei a minha contribuição em outubro e que a retomo aqui.

Tratarei mais da tradução da prosa tardia incluída em Companhia e outros textos e analisarei também um pouco de traduções anteriores de Malone morre, que foi minha última tradução de Beckett a ser publicada, em 2014. Vou usar Malone para abordar o momento em que o escritor começa sua carreira de autor-tradutor, que depois se tornará uma marca de sua escrita, quando finalmente se transforma num autor bilíngue. Empregarei algumas considerações do escritor Milan Kundera para comentar a autotradução beckettiana. Depois, farei observações sobre um dos textos do volume Companhia e outros textos, chamado Worstward Ho, que traduzi como Pra frente o pior. Este texto, Beckett não traduziu. Para uma aproximação a como se coloca a questão da criação e da tradução nesse que é um dos últimos textos beckettianos, recorrerei aos ensaios de Paul Ricoeur, publicados no pequeno volume Sobre a tradução.

Textos duplos, textos únicos

O romancista, autor bilíngue e autotradutor Milan Kundera demonstra, numa análise das traduções francesas de O Castelo de Kafka, que o “bom estilo” dos tradutores de prosa de ficção muitas vezes apaga o que é mais característico na prosa do autor traduzido. Da análise de Kundera, três pontos serão destacados para servir de baliza aos comentários sobre um trecho de tradução de Beckett. O primeiro pode ser citado integralmente: “Nada exige mais exatidão, da parte do tradutor, que uma metáfora. É através dela que se toca o coração da originalidade poética de um autor.” (Kundera, 1994, p. 93) O segundo resume-se a apontar a inclinação dos tradutores de prosa a enriquecer o vocabulário, empregando a sinonímia no texto de chegada como meio de evitar a repetição de palavras presente no original. Esse uso da sinonímia para apagar as repetições presentes no original seria visto pelos tradutores como uma forma de afirmarem sua destreza tradutória (idem, p. 97). Além disso, ao constatar que “os tradutores (…) têm tendência a limitar as repetições”, Kundera chama a atenção para o sentido semântico de uma repetição como noção-chave e também para a sua importância melódica (idem, p. 101). No terceiro e último ponto a ser destacado, Kundera enfatiza o papel do “fôlego” na prosa, que pode ser entendido tanto no sentido da pontuação, bastante reduzida em Kafka, como no da “imagem tipográfica” do texto, às vezes um só parágrafo (idem, p. 105-106).