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Gabriel García Márquez |
Gabriel García Márquez
O escritor das rosas amarelas
Por María del Pilar RodriguezO Globo, 7.12.2013

Jornalista relembra o encontro mágico com García Márquez numa das mais recentes sessões de fotos do autor colombiano
María del Pilar Rodríguez*
O fotógrafo Mauricio Vélez já não se lembra do dia em que sua cabeça se encheu da cor de Macondo, a mesma que, transformada em borboletas, perseguia seu xará, Mauricio Babilônia, em “Cem anos de solidão”. Foi o amarelo que o uniu — a princípio sem que ele mesmo soubesse — a um dos mais belos momentos de amor, respeito e fidelidade ocorridos no lar de Gabriel García Márquez.
Rosas amarelas, espécie de flores que Mercedes Barcha punha todos os dias, sem falta, na mesa de trabalho do grande escritor, era um amuleto macondiano por excelência, uma espécie de testemunha das linhas mais brilhantes que nossa terra já viu.
Numa certa manhã, Vélez viu uma imagem clara à sua frente: Gabo carregando um buquê de rosas amarelas para homenagear sua esposa. E a oportunidade apareceu. Germán Santamaría, diretor da revista “Diners”, determinou que fosse elaborada uma edição em homenagem ao Nobel e pediu que Vélez se encarregasse da foto da capa. A sorte parecia estar a seu favor... Mas o dia do fechamento da revista chegou, e a foto acabou não sendo feita. A decepção, no entanto, levou à determinação, e Vélez continuou perseguindo seu sonho amarelo — desta vez, para seu livro.
Faltavam poucos dias para que a obra “Retratos de Sociedad” (publicada este mês) fosse enviada para impressão. Conseguir fazer aquela foto já parecia algo impossível. Aparentemente, todos os caminhos tinham se esgotado, mas a força dos sonhos é capaz de fazer milagres. O telefone tocou. Era Dona Yolanda Pupo de Mogollón, diretora do Museu de Arte Moderna de Cartagena — a última pessoa a quem eu e Vélez havíamos solicitado mediação. E ela, em nome da arte e com voz de quem traz boas notícias, disse:
— Anota aí o número da Mercedes. Ela está esperando o telefonema do fotógrafo. Aceitou recebê-lo.
Euforia! Era isso que gritavam as rosas amarelas que chegaram às minhas mãos com destino marcado: ser parte do retrato sonhado, da imagem perseguida, da fotografia de Gabriel García Márquez. O olhar de Vélez antecipava um milagre. Cartagena brilhava em seu maior esplendor. Tudo parecia maravilhoso até que Dona Yolanda nos contou sobre “A polaca”.
Doçura de um menino
Um calafrio percorreu nosso corpo, e eu me enchi de angustia só de pensar que, graças à ousadia de uma polaca silenciosa que se apresentava sempre às portas do escritor — estivesse ele no México ou em Cartagena — com um buquê igual ao que eu levava, teria problemas.
Mas o bálsamo do sorriso diáfano de uma mulata bonachona nos abriu a porta, emitindo a seguinte frase:
— Passem e escolham o lugar onde querem fazer a foto.
Com dois passos largos quase imprudentes, Mauricio Vélez venceu os degraus da escada à sua frente, enquanto eu me acomodava no banco de madeira onde repousava um guarda-chuva preto que servia para confirmar as chuvas recentes. A poucos metros de distância, estava o pai de Florentino Ariza.
A mulata cândida me guiou até a locação escolhida por Vélez. O frio na barriga atingiu seu ápice. Entrei na sala, e meus sentidos foram premiados como uma visão inesperada, o talento de Obregón (o artista plástico colombiano Alejandro Obregón, que morreu em 1992) se manifestou diante dos meus olhos no mural branco e azul escuro que havia sido retirado de uma casa no centro histórico e levado àquela edificação.
Escolhi ficar na esquina mais longe da porta, de pé, abraçada às rosas amarelas como se elas fossem a única razão por eu estar ali. E aconteceu o que esperávamos. Sentimos os passos de quem já cumpriu sua tarefa com a Humanidade e, de repente, vimos a figura do criador de Macondo.

Mauricio Vélez o cumprimentou. Ele respondeu e inspecionou a cena ao seu redor, movendo a cabeça. Deu de cara comigo e perguntou:
— Quem é ela?
O frio na barriga atingiu o ápice, mas eu resisti e não lhe disse nada. Mauricio respondeu por mim.
— Ela veio trazer essas rosas amarelas para o senhor.
Meus pés se mexeram na direção dele. Entreguei as rosas ao neto de Papa Lelo e Mina, ao sobrinho de Tia Pa e aquele que, com a mesma doçura de um menino, seguiu as instruções do fotógrafo. Vélez, em meio a um êxtase criativo, capturou a imagem que hoje comove milhares de pessoas que folheiam o livro “Retratos de Sociedad”.
Gabriel José, como foi chamado em homenagem ao patrono de sua cidade natal, Aracataca, ou Gabito, como seu irmão Jaime me instruiu a chamá-lo, convidou-me para sentar ao seu lado e disse:
— Melhor assim.
— O senhor prefere falar com as mulheres?
— Sim. É que com as mulheres dá para saber se elas estão bem ou mal. Com os homens, a gente nunca sabe...
Encontro de velhos amigos
O humor rápido e único de Gabo se manifestou diante de nós, e um mar de gargalhadas povoou o local. Vélez me chama para posar ao lado de nosso interlocutor para que ele pudesse capturar uma imagem, e eu me perco na ternura de um olhar que me diz muito mais do que jamais poderia ter esperado...
Passam-se alguns minutos, e é o fotógrafo que pede para ser fotografado. O assistente prepara tudo, e aquele encontro de almas fica imortalizado. A cumplicidade salta aos olhos na imagem. Nem parece que haviam passado apenas 105 minutos desde que os dois se conheceram. Aquilo lembrava um encontro de velhos amigos.
Entrou, então, Dona Mercedes, investida com a doce voz da autoridade. Disse ao marido que, no cômodo ao lado, seus sobrinhos o esperavam. Ele fica de pé, mostrando a elegância do Caribe que nunca perdeu. Usa mocassins brancos que lembram Barranquilla e uma guayabera perfeitamente engomada, confirmando que tem quem o cuide, admire e ame.
Saímos daquele lugar com a alma cheia de borboletas amarelas. Eram 12h45m do sábado 25 de maio de 2013. “A polaca” não estava perto, e nós havíamos compartilhado mais de uma hora com um ser de outro mundo, uma alma de Aracataca que, nos anais da História, é e será conhecido como o Nobel de Literatura de 1982, mas que, graças à imagem de Mauricio Vélez, também será lembrado como Gabito, o escritor das rosas amarelas.
*María del Pilar Rodríguez é curadora de arte e escritora, e escreveu este texto especialmente para o jornal “El Tiempo”, da Colômbia, membro do GDA (Grupo de Diários América)