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terça-feira, 11 de junho de 2024

Antón Tchekhov / O ódio

 

Anton Tchekhov



Anton TCHEKHOV


"Nada une tão fortemente como o ódio - nem o amor, nem a amizade, nem a admiração." ---(Anton Tchekhov)  


Um avô escravo. Um pai alcoólica e déspota. Uma infância de chicote e ralhos. Uma adolescência doentia e triste. 

Não aceitou entrar para uma Academia que tinha rejeitado Máximo Gorki. 

Escreveu alguns contos universais e belos. 

"Onde não estamos é que estamos bem. Já não estamos no passado, e então ele parece-nos belíssimo."

Como dramaturgo criou obras clássicas e seus contos têm sidos aclamados por escritores e críticos, tanto que ele é considerado um dos mestres do conto moderno. Suas peças  A Gaivota , As Três irmãs fazem parte do repertório teatral mundial.  

Tchekhov foi médico durante a maior parte de sua carreira literária, e em uma de suas cartas ele escreve a respeito: "A medicina é a minha legítima esposa; a literatura é apenas minha amante."


Damata Costa



quinta-feira, 11 de julho de 2019

Obsessão russa por literatura está diminuindo





Obsessão russa 

por literatura 

está diminuindo

Ainda assim, 59% dos russos leem livros todos os dias - a segunda posição no ranking mundial, atrás apenas da China. Foi na era soviética russos se alfabetizaram em massa e hábito da leitura se difundiu, mas, conquanto os leitores quisessem abrir novos horizontes com literatura que não era publicada na URSS, após sua queda e abertura do mercado a leitura vem diminuindo.

Um estudo global sobre a leitura de livros realizado pela empresa GfK em 2017 mostra que  59% dos russos leem todos os dias - ou pelo menos uma vez por semana. Assim, o país ocupa segundo lugar no ranking mundial da leitura de livros, atrás apenas da China.
Ainda pode gerar dúvidas o fato de que o estudo é baseado apenas nas respostas das pessoas. Mas, se estiver correto, ele dificilmente surpreenderá alguém na Rússia: o país, historicamente, sempre foi “literaturacêntrico”. Na Rússia, como escreveu o poeta Evguêni Ievtuchenko, “um poeta é mais do que um poeta”. E o mesmo é verdadeiro sobre quem escreve em prosa.
Tomemos Lev Tolstói, por exemplo. Nos anos 1900, ele era tão grande quanto os Beatles na década de 1960 ou a Beyoncé hoje. Quiçá ele tenha sido ainda mais popular que o próprio imperador!

Depois que o escritor passou a bater de frente com a Igreja Ortodoxa e o jovem tsar Nikolai 2° em 1901, exigindo igualdade e direitos humanos para os camponeses, o editor Aleksêi Suvôrin escreveu: “Temos dois tsares: Nikolai 2° e Lev Tolstói. Quem é mais forte? Nikolai 2° não pode fazer nada sobre Tolstói, não pode abalar seu trono - mas Tolstói, sim, balança o trono da dinastia do outro”.
É claro que o caso de Tolstói foi muito peculiar: desde a década de 1880, ele virou algo mais próximo de filósofo e figura pública do que escritor de ficção. Mas outros gigantes da literatura do século 19 e 20 - como Fiódor Dostoiévski, Ivan Turguênev, Antôn Tchékhov, Maksím Górki e outros - também tiveram impacto sobre a opinião pública russa com seus romances humanísticos, o que certamente eram mais influente do que qualquer ministro tsarista e suas ordens. Foi aí que se iniciou a obsessão da Rússia pela literatura.
Literatura no lugar de política

“Entre os séculos 18 e 20, a vida pública na Rússia estava toda voltada à literatura”, explica Lev Oborin, poeta e crítico literário. Enquanto, no Ocidente, os monarcas cediam aos poucos o poder aos sistemas parlamentares, o tsar gozava de monopólio sobre todas as formas de poder. Por isso, o único lugar onde criticar os poderes constituídos estava nas páginas dos romances.
"Devido à ausência de políticas reais, os escritores se tornaram defensores da liberdade e iluministas", escreve Oborin. Eles não tinham outra escolha, senão escrever sobre o estado de espírito dos russos comuns, os males da servidão, a estranha natureza da alma russa que balançava entre o Ocidente e o Oriente etc. Para tanto, usavam metáforas e alegorias para escapar à censura.
Infelizmente, porém, a grande maioria dos russos não sabia nada sobre a luta intelectual de seus escritores – já que não sabia ler. De acordo com um censo nacional do final do século 19 e início do século 20, pelo menos 60% dos russos adultos ainda eram analfabetos em 1913. Somente o governo soviético foi capaz de educar seu povo e fazê-lo ler os grandes escritores da era imperial.
Os soviéticos abraçam os clássicos

Apesar de brutal ao destruir seus rivais políticos (e depois, seus próprios aliados), foram os bolcheviques que melhoraram o nível de educação russa: em 1939, 87% dos cidadãos soviéticos sabiam ler e escrever, e o sempre controlador Estado fez seu melhor para fornecer ao povo toda a literatura de que ele precisava - contanto que ela estivesse de acordo com os ideais marxistas.
Foi durante o período soviético que se formou o cânone literário do programa escolar. Assim, o que os russos leem hoje na escola é uma leve variação do que os soviéticos instituíram: Aleksandr Púchkin, Lev Tolstói, Antôn Tchékhov etc.
"Esses escritores eram todos dissidentes do regime tsarista... A ideologia soviética se beneficiava de tomar como seus aliados os chamados 'democratas revolucionários'... Apesar de nem todos terem sido socialistas", explica Lev Oborin.
O desonesto império das publicações
É claro que o Estado decidia o que publicar. Clássicos russos? Obviamente! Uma prosa estrangeira não provocativa demais (Hemingway, Remarque, Salinger)? Tudo bem! Mas não se esqueça das obras completas de Lênin, Marx e Engels. E, por exemplo, memórias de Leoníd Brêjnev sobre sua experiência na Segunda Guerra Mundial – que ganharam 20 milhões de cópias em 1978.
A URSS não poupava papel em tiragens: na década de 1980, vendiam-se bilhões de cópias. "Havia quase 50 bilhões de cópias em bibliotecas pessoais [por toda a URSS]", escreve o historiador Aleksandr Govorov em seu “A História do Livro”. Esta foi a base para a URSS ser chamada "a nação que mais lê" - uma fórmula que ainda é muito popular e surge toda vez que alguém se regozija com a nostalgia dos grandes tempos soviéticos.
O único problema era a total ausência de escolha. “As tiragens aumentavam, mas a demanda pública continuava insatisfeita”, explica Govorov. As pessoas queriam literatura de ficção e entretenimento, mas o Estado continuava fornecendo livros marxistas, espalhados aos montes em livrarias sem vender.
"Eles publicavam livros suficientes em termos de quantidade, mas o que publicavam ditando ideologia e economia não refletia o que os clientes queriam ler", diz Govorov.
Atualmente

Durante a Perestroika, no final da década de 1980, que foi seguida pela queda da URSS, os leitores finalmente tiveram sua chance. É uma história longa e bastante peculiar a de como o mercado de livros emergiu e se desenvolveu na Rússia contemporânea. Mas, mesmo que os russos tenham sido a nação que mais lia, eles já não o são mais.
Segundo a pesquisa de 2017 da GfK supramencionada, a Rússia estaria em segundo lugar mundial no ranking da leitura de livros. Mas os profissionais da indústria editorial russa duvidam de uma classificação tão otimista.
"Acompanhamos as vendas no mercado de livros e, atualmente, elas não crescem na Rússia", diz a editora-chefe da revista Indústria do Livro, Elena Solovióva.
Realmente, as tiragens vêm caindo paulatinamente nos últimos 10 anos: de 760 bilhões de cópias impressas, em 2008, para 432 bilhões, em 2018. Mas a questão é muito complexa para a pesquisa devido ao aumento das vendas de livros eletrônicos e ao mercado da pirataria.
De qualquer forma, o interesse atual da Rússia em relação à literatura é estável, mas as perspectivas futuras não são encorajadoras - não há nenhum Lev Tolstói no horizonte e os anos de impressão megalomaníaca soviética terminaram.
Hoje, os russos preferem outros tipos de entretenimento: o esforço e resistência da literatura têm que competir com o Netflix, o YouTube e zilhões de páginas da Web. Assim, as chances de vitória não são muito boas. Mas a  tendência é global.
“Em todo o mundo, o interesse pela leitura está em declínio, e a Rússia, infelizmente, segue a mesma tendência. Mas, nos últimos anos, ficou absolutamente claro: a leitura tem um público estável e central que nunca trocará o livro por outros tipos de entretenimento”, afirma a crítica literária Galina Iuzefovitch.
Assim, a Rússia pode estar lendo menos do que antes. Mas é muito pouco provável que ela desista para sempre de fazê-lo


terça-feira, 18 de junho de 2019

Anton Tchekhov / A esposa

Anton Tchekhov

A ESPOSA

Trad. Tatiana Belinky

Eu já lhe pedi que não arrumasse a minha mesa - dizia Nicolai Ievgráfitch. - Depois das suas arrumações nunca mais se pode encon­trar nada. Onde está o telegrama? Onde foi que o jogou? Queira procu­rá-lo. É de Kazan, marcado com a data de ontem.
A arrumadeira, pálida, muito magra, de rosto indiferente, encon­trou na cesta debaixo da mesa alguns telegramas e entregou-os em silêncio ao doutor, mas eram todos telegramas urbanos, de pacientes. Depois, procuraram na sala de visitas e no dormitório de Olga Dmitriev­na.
Já passava da meia-noite. Nicolai Ievgráfitch sabia que sua mulher não voltaria para casa tão cedo, no mínimo lá pelas cinco horas. Ele não confiava nela, e quando ela demorava a voltar, não dormia, sofria, e ao mesmo tempo detestava a mulher, e a sua cama, e o espelho, e as "bombonières", e essas campainhas e jacintos que alguém lhe mandava todos os dias, e que espalhavam pela casa inteira um perfume adocicado de loja de florista. Em tais noites ele se tornava mesquinho, enjoado, implicante, e agora lhe parecia que precisava muito do tele­grama recebido ontem do irmão, se bem que este telegrama não contivesse nada além de cumprimentos de festas.
No quarto da mulher, na mesa, sob a caixa de papel de cartas, ele encontrou um telegrama qualquer e lançou-lhe um olhar de passa­gem. Estava endereçado ao nome da sogra, para ser entregue a Olga Dmitrievna, era de Monte Carlo, e assinado: "Michel"... Do texto, o doutor não entendeu uma só palavra, porque estava em língua estran­geira, inglês, ao que parecia.
Quem é esse Michel! Por que de Monte-Carlo? Por que em nome da sogra?
No decorrer de sete anos de vida matrimonial, ele se acostumara a desconfiar, a procurar provas, e mais de uma ver lhe passou pela cabeça que, graças a esta prática doméstica, ele hoje já poderia ser um ótimo investigador. Voltando ao escritório e pondo-se a raciocinar, ele se lembrou imediatamente que seis meses atrás, estivera com a mulher em Petersburgo e almoçara no "Cubas" com um companheiro de escola, engenheiro de vias de comunicação, e que este engenheiro apresentara, a ele e à sua mulher, um jovem de uns vinte e dois, vinte e três anos, chamado Micail lvánitch; o sobrenome era curto, um tanto estranho: Ris. Dois meses depois, o doutor viu no álbum da sua mulher uma fotografia deste jovem, com uma dedicatória em francês: "Em recordação do presente e na esperança do futuro." Mais tarde, ele o encontrara um par de vezes em casa da sua sogra... E foi justamente naquela época em que sua mulher começou a se ausentar com freqüência e a voltar para casa às quatro e cinco horas da madrugada, e a viver lhe pedindo um passaporte para o estrangeiro que ele recusava; e na sua casa, o dia inteiro, havia tamanha guerra, que dava vergonha diante da criada.
Seis meses atrás, os colegas médicos decidiram que ele estava com um principio de tuberculose e aconselharam-no a largar tudo e ir para a Criméia. Ao saber disso, Olga Dmitrievna fingiu que ficara muito assustada; começou a ficar carinhosa com o marido, e sempre insistia que na Criméia era frio e aborrecido, e que seria melhor ir para Nice, e que ela o acompanharia e lá se ocuparia dele, trataria, cuidaria...
E agora ele compreendia porque a sua mulher tinha tanta vontade de ir para Nice: o seu "Michel" mora em Monte-Carlo.
Ele apanhou o dicionário inglês-russo e, traduzindo as palavras e adivinhando-lhes o sentido, pouco a pouco construiu uma frase assim: “Bebo saúde minha bem-amada mil vezes beijo pezinho pequeni­no. Impaciente espero chegada”. Ele imaginou que papel ridículo e lamentável teria feito, se tivesse concordado em viajar para Nice com a mulher, por pouco não chorou com o sentimento de humilhação, e, presa de forte agitação, pôs-se a andar por todos os quartos. Dentro dele revoltou-se o seu orgulho, os seus melindres plebeus. Crispando os punhos, o rosto contraído de asco, ele se perguntava como é que ele, filho de um cura de aldeia, educado no seminário, homem reto e rude, cirurgião de profissão — como é que ele pôde entregar-se à escravidão, submeter-se tão ignominiosamente a esta criatura fraca, insignificante, venal e baixa?
— Pezinho pequenino — balbuciava ele, amarrotando o telegra­ma. — Pezinho pequenino!
Daquele tempo, quando ele se apaixonara e fizera o pedido, e depois vivera sete anos, ficou apenas a lembrança da longa cabeleira perfumada, da massa de rendas macias e do pezinho pequenino, realmente muito pequeno e bonito; e ainda agora, parecia que dos ample­xos passados permanecia nas mãos e no rosto a sensação da seda e das rendas — e nada mais. Nada mais, se não se contarem as crises histéricas, os guinchos, os reproches, as ameaças e as mentiras, menti­ras cínicas e traiçoeiras... Ele se lembrava como, em casa do seu pai na aldeia, acontecia por vezes um pássaro entrar voando, sem querer, pela janela, e começar a debater-se freneticamente contra as vidraças e a derrubar os objetos; assim também essa mulher, de um meio totalmente estranho, invadiu a sua vida e estabeleceu nela verdadeira des­truição. Os melhores anos da vida passaram como num inferno, as esperanças de felicidade desbaratadas e escarnecidas, a saúde perdida, nos quartos e salas um ambiente vulgar de "cocotte", e dos dez mil que ganha por ano, ele nunca consegue enviar a sua mãe, viúva do cura, nem ao menos dez rublos, e já deve uns quinze mil em letras de câmbio. Parecia que, se em sua casa vivesse um bando de salteado­res, mesmo assim sua vida não estaria tão desesperada, tão irremedia­velmente destruída, como com essa mulher.
Ele começou a tossir e a ofegar. Seria preciso deitar-se na cama e aquecer-se, mas ele não podia e só andava pelos quartos ou se senta­va à mesa, e riscava, nervoso, o papel com o lápis, e escrevia maquinal­mente:
"Prova da pena... pezinho pequenino..."
Pelas cinco horas ele enfraqueceu e já se culpava de tudo a si mesmo, e lhe parecia agora que, se Olga Dmitrievna tivesse casado com outro, que pudesse ter sobre ela uma boa influência, então — quem sabe? no fim de tudo, talvez ela se tornasse uma mulher boa e honesta; mas ele é mau psicólogo e não conhece a alma feminina, e ainda por cima é desinteressante, rude...
“Eu já tenho pouco tempo de vida — pensava ele — sou um cadáver e não devo atrapalhar os vivos. No fundo, agora seria estranho e tolo reivindicar não sei que direitos próprios. Terei uma explicação com ela; que se vá para o homem amado... Dar-lhe-ei o divórcio, toma­rei a culpa sobre mim...”
Olga Dmitrievna chegou afinal, e como estava de “rotondeau” branco, chapéu e galochas entrou no gabinete e deixou-se cair na pol­trona.
— Moleque gordo e repugnante — disse ela, respirando penosa­mente, e soluçou. — Isto é até desonesto, é horroroso. — Ela bateu o pé. — Eu não posso, não posso, não posso!
Olga Dmitrievna chegou afinal, e como estava de “rotondeau” branco, chapéu e galochas entrou no gabinete e deixou-se cair na pol­trona.
— Moleque gordo e repugnante — disse ela, respirando penosa­mente, e soluçou. — Isto é até desonesto, é horroroso. — Ela bateu o pé. — Eu não posso, não posso, não posso!
Ela chorava a sério mesmo, como uma menina, e não só o lenço, mas até suas luvas estavam molhadas de lágrimas.
— Que se há de fazer! — suspirou o doutor. — Se perdeu, está perdido, e que vá com Deus. Acalma-te, eu preciso conversar contigo.
—  Não sou milionária, para não me importar assim com dinheiro. Ele diz que vai devolver, mas eu não acredito, ele é pobre...
O marido pedia-lhe que se acalmasse e o escutasse, mas ela só falava do estudante e dos seus quinze rublos perdidos.
— Ora, eu te darei vinte e cinco amanhã, mas cala-te, por favor — disse ele com irritação.
— Eu tenho de trocar de roupa! — chorava ela. — Não conversar seriamente, de casaco de peles! Que coisa estranha!
Ele tirou seu casaco e galochas, e, neste momento, sentiu cheiro de vinho branco, aquele mesmo que ela gostava de tomar quando comia ostras (apesar de toda a sua vaporosidade, ela comia muito e bebia bastante). Ela foi para o seu quarto e pouco depois voltou, com outra roupa, o rosto empoado, os olhos inflamados de chorar, sentou-se e sumiu toda no seu leve penteador rendado, e na  massa de ondas róseas o marido só distinguia a cabeleira solta e o pequenino chinelo.
— De que é que tu queres falar? — perguntou ela, balançando-se na poltrona.
— Eu, sem querer, vi isto aqui... — disse o doutor e estendeu-lhe o telegrama.
Ela leu e deu de ombros.
E que tem isso? — disse ela, balançando-se com mais força.
É um simples telegrama de Ano Novo e nada mais. Aqui não há segredos.
— Tu contas com o fato de eu não saber inglês. Sim, mas tenho um dicionário. E um telegrama do Ris, ele brinda de à saúde de sua amada e beija-a mil vezes. Mas deixemos, deixemos continuou o doutor, apressado. — Eu não quero em absoluto recriminar-te ou fazer uma cena. Já tivemos suficientes cenas e recriminações, é tempo de acabar... Aqui está o que eu quero te dizei: tu és livre e podes viver como quiseres.
Fez-se um silêncio. Ela começou a chorar baixinho.
Eu te liberto da necessidade de fingir e de mentir — continuou Nicolai Ievgráfitch. — Se amas aquele moço, podes amá-lo; se queres ir ter com ele no estrangeiro, vai. Tu és jovem, forte, e eu já sou ruína, sobra-me pouco tempo de vida. Numa palavra... tu me compreendes.
Ele estava emocionado e não podia prosseguir. Olqa Dmitrievna, chorando e com voz de quem tem pena de si mesma confessou que amava Ris, que saíra a passear       ele fora da cidade, que estivera no seu apartamento, e que, de fato, agora ela tinha muita vontade de ir para o estrangeiro.           
  — Esta vendo, eu não te oculto nada — disse ela com um suspiro.
— Abro-te toda a alma. E  novamente te suplico, sê generoso, dá-me o passaporte!
Repito: és livre.
Ela mudou de lugar, para mais perto dele, a fim de poder ver-lhe a expressão do rosto. Não acreditava nele, e agora tentava adivinhar os seus pensamentos ocultos. Ela nunca confiava em ninguém, e por mais nobre que fossem as intenções, sempre suspeitava nelas motivos mesquinhos ou baixos e fins egoístas. E quando ela lhe fitava o rosto com ar perscrutador, pareceu-lhe que nos seus olhos, como nos olhos de uma gata, brilhara uma faísca verde.
Mas quando é que eu receberei o passaporte? — perguntou ela em voz baixa.
Ele teve vontade, de repente, de responder “nunca”, mas se conteve e disse:
Quando quiseres.
Eu vou só por um mês.
Tu vais ter com Ris para sempre. Eu te darei o divórcio, tomarei a mim a culpa, e Ris poderá casar-se contigo.
Mas eu não quero o divórcio! — disse Olga Dmitrievna vivamente, fazendo uma cara admirada. — Não te peço divórcio! Dá-me o passaporte, e é só.
Mas porque tu não queres o divórcio? — perguntou o doutor, começando a ficar irritado.  És uma mulher estranha. Como és estranha! Se estás seriamente enamorada, e ele também te ama, na vossa situação ambos não podereis inventar nada melhor que o matrimônio. Ou será que tu ainda preferes escolher entre o matrimônio e o adultério?
Eu já compreendi o senhor — disse ela, afastando-se dele, e o seu rosto assumiu uma expressão maldosa e vingativa. — Eu o compreendo perfeitamente. O senhor está cansado de mim, e o senhor quer simplesmente livrar-se de mim, impingir-me este divórcio. Agradeço, mas não sou tão tola como o senhor imagina. Não aceitarei o divórcio e não o deixarei, não deixarei, não deixarei! Em primeiro lugar, não desejo perder a minha posição social — continuou ela, depressa, como que receando que ele a impedisse de falar, — em segundo lugar, já estou com vinte e sete anos, e Ris tem vinte e três; daqui a um ano ele se cansará de mim e me abandonará. E em terceiro lugar, se deseja saber, eu não garanto que esta minha paixão possa durar muito tempo... Está aí! E eu não deixarei o senhor.
Neste caso vou expulsá-la da minha casa! — gritou Nicolai Ievgráfitch, batendo os pés. — Toco-te para a rua, mulher baixa e ignóbil.
Veremos! — disse ela e saiu.
Lá fora já clareava o dia, mas o doutor continuava sentado à mesa riscando o papel com lápis e escrevendo maquinalmente:
“Prezado senhor... Pezinho pequenino...”
Ou então punha-se a andar e parava na sala de visitas diante de uma fotografia, tirada havia sete anos, pouco após o casamento, e fitava-a longamente. Era um grupo familiar: o sogro, a sogra, sua mulher Olga Dmitrievna quando tinha vinte anos, e ele mesmo, na qualidade de marido jovem e feliz. O sogro, escanhoado e rechonchudo conselheiro secreto, astuto e ávido por dinheiro; a sogra, senhora opu­lenta de feições miúdas e rapaces como de uma doninha, que amava a filha loucamente e a ajudava em tudo; se a filha estivesse estrangulan­do um ente humano, ela não lhe diria uma palavra, mas apenas a esconderia atrás da sua saia. Olga Dmitrievna também tem traços fisio­nômicos miúdos e rapaces, mas mais expressivos e atrevidos do que os da mãe; esta já não é uma doninha, mas uma fera bem mais graúda! Já próprio Nicolai Ievgráfitch parece nesta fotografia um homem tão simples, bom rapaz, sujeito sem maldade; um sorriso bonachão de se­minarista espalhou-se pela cara toda, e ele crê ingenuamente que este bando de rapinantes, no meio do qual ele caiu por um capricho do destino, lhe dará a poesia e a felicidade e tudo aquilo com que ele sonhava quando, ainda estudante, cantava a canção: "Não amar e perder a vida tão jovem..."
E de novo, perplexo, ele se perguntava como foi que ele, filho de um cura de aldeia, educado no seminário, homem simples, rude e reto, pôde entregar-se tão desamparadamente às mãos desta criatura insignificante, falsa, vulgar, mesquinha, e, pela própria natureza, para ele totalmente estranha.
Quando, às onze horas, ele vestia o paletó para ir ao hospital, a criada entrou no escritório.
— Que deseja? — perguntou ele.
— A patroa levantou-se e pede os vinte e cinco rublos que o senhor lhe prometeu.

1895.


sexta-feira, 26 de maio de 2017

Anton Tchekhov / O inimigo


Anton Tchekhov

A noite desceu há muito sobre a paisa-gem de neve, uma noite escura e pro-funda, que envolve seres e coisas no silêncio e na paz. Àquela hora, talvez somente Varka esteja ainda acordada, debruçada sobre o berço onde o menino não quer dormir. Varka tem apenas treze anos, é pouco mais que menina, e seus olhos sonolentos são tristes e vagos. Agora impulsiona suavemente o berço e canta baixinho, com voz branda, uma canção de ninar. “Dorme, menino bonito, que o bicho vem pegar…” Uma lamparina verde, acesa junto ao ícone, enche o quarto com sua luz fraca e incerta; peças de roupa, pendidas de uma corda que atravessa o compartimento, flutuam de leve. A luz projeta no teto um grande círculo verde, as sombras das peças de roupa se agitam como se fossem sacudidas pelo vento, e tremem inquietas so-bre a estufa, sobre Varka e sobre o berço.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Anton Tchekhov / Varka

Niña dormida
Camilo Minero
Anton Tchekhov
VARKA


ANTON CHEJOV / DÉJAME DORMIR (De otros mundos)
Anoitece. Varka balança com o pé um berço onde chora uma criança, cantarolando monotonamente:
— Bain bainscki bain…
Uma lâmpada verde brilha diante de uma imagem de santo. Um par de grandes calças negras pende de uma corda. A lâmpada projeta uma mancha verde sobre as coisas e as calças fazem dançar sombras na parede e no berço. A chama vacila como tocada pelo vendo. O ar é sufocante, impregnado de um odor de sapatos, de couro, de tinta.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Anton Tchekhov / Pamonha

Gabrielle, 1895
Renoir
Anton Tchekhov
PAMONHA
Trad. Boris Schnaiderman



Convidei há dias para o meu escritório a governanta de meus filhos, Iúlia Vassílievna. Era preciso acertar as contas.
- Sente-se, Iúlia Vassílievna! - disse - Vamos fazer as contas. Com certeza, está precisando de dinheiro e a senhora‚ tão cerimoniosa que não pede sozinha... Bem... ficou ajustado entre nós que seriam trinta rublos por mês...
- Quarenta...
- Não, Trinta... Eu tenho anotado... Sempre paguei trinta rublos às governantas...Bem, a senhora residiu aqui durante dois meses...
- Dois meses e cinco dias...
- Dois meses exatos... Anotei assim. Quer dizer que tem a receber sessenta rublos... Descontando nove domingos... a senhora, realmente, não deu aula ao Kólia nos domingos, mas apenas passeou com ele... E mais três feriados...
Iúlia Vassílievna ficou vermelha e pôs-se a puxar uma franja do vestido, mas... não disse palavra!...
- Três feriados... quer dizer que temos a descontar doze rublos... Kólia esteve doente quatro dias e, por isso, não estudou... A senhora, então, deu aula apenas a Vária... Durante três dias, a senhora teve dor de dente e minha mulher dispensou-a das aulas da tarde... Doze e sete são dezenove. Descontando... ficam... hum... quarenta e um rublos... Certo?
O olho esquerdo de Iúlia Vassílievna ficou congestionado e nublou-se. Começou a tremer-lhe o queixo. Tossiu nervosa, assoou-se, mas... sem dizer palavra!
- Na noite de Ano Bom, a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. São menos dois rublos... A xícara é uma relíquia, custa mais caro, mas... vá lá, Deus que a perdoe! Nossas coisas já se têm estragado em tantas ocasiões! Depois, devido a uma falta de atenção por parte da senhora, Kólia trepou numa árvore e rasgou o paletozinho... São menos dez... A arrumadeira, em consequência igualmente de uma distração sua, roubou os sapatos de Vária. A senhora deve cuidar de tudo. Está  contratada e recebe ordenado. Quer dizer que devemos tirar mais cinco... No dia dez de janeiro, a senhora levou emprestados de mim dez rublos...
- Eu não levei! - murmurou Iúlia Vassílievna.
- Mas está anotado aqui!
- Está bem...seja.
- De quarenta e um, tira-se vinte e sete, sobram quatorze...
Os olhos da governanta encheram-se de lágrimas... O suor apareceu sobre seu narizinho comprido e gracioso. Pobre menina!
- Eu só levei uma vez - disse ela, a voz trêmula. - Levei três rublos de sua senhora... Não levei mais nada...
- E agora? Imagine, eu nem anotei isso! Tirando três de quatorze, fica onze... Aqui está o seu dinheiro, minha cara! Três... tres, três... um e um... Queira receber!
Dei-lhe os onze rublos... ela os tomou e enfiou-os no bolso, com dedos trêmulos.
- Merci - murmurou.
Levantei-me de um salto e pus-me a andar pelo quarto. O furor apossou-se de mim.
- Mas, por que este merci? - perguntei.
- Pelo dinheiro...
- Mas eu a assaltei, diabos, eu lhe roubei dinheiro! Por que
merci?
- Noutras casas, cheguei a não receber nada...
- Não recebeu nada! Compreende-se! Eu caçoei da senhora, dei-lhe uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os seus oitenta rublos! Estão preparados para a senhora, neste envelope! Mas, como é que se pode ser moleirona assim? Porque não protesta? Por que fica quieta? Pensa que, neste mundo, pode-se não ser audacioso? Pensa que se pode ser tão pamonha?
Ela esboçou um sorriso azedo e eu li em seu rosto: "Pode-se sim!".
Pedi-lhe perdão por aquela lição cruel e dei-lhe, para seu grande espanto, os oitenta rublos. Pôs-se a balbuciar merci com timidez e saiu do escritório. Acompanhei-a com o olhar e pensei:
- É fácil ser forte neste mundo!

1883.


Anton Tchekhov
A Dama do Cachorrinho e outros contos
Trad. Boris Schnaiderman
ED. Max Limonad, 1986.


quinta-feira, 27 de março de 2014

Anton Tchekhov / A obra de arte

Picasso

Anton Tchekhov
A OBRA DE ARTE
Carregando sob o braço um objeto embrulhado no número 223 do Mensageiro da Bolsa, Sacha Smirnoff, filhinho de mamãe, assumiu uma expressão de tristeza e entrou no consultório do doutor Kochelkoff.
— Ah! meu grande jovem! — exclamou o médico. — Como vamos? O que há de novo?
Fechando as pálpebras, Sacha pôs a mão no coração e, comovido, falou:
— Mamãe lhe manda seus cumprimentos, Ivan Nicolaìevitch, e me encarregou de lhe agradecer… Mamãe só tem a mim no mundo, e o senhor me salvou a vida… curando-me de grave enfermidade e… não sabemos como lhe agradecer.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Anton Tchekhov / Brincadeira


Anton Tchekhov

Brincadeira

Trad. Tatiana Belinky



Um claro dia de inverno... O frio é forte e seco de estalar, e Nádenka, que eu levo pelo braço, fica com os cachos das fontes e o buço no lábio superior orvalhados de prata cintilante. Estamos no cume de um morro alto. Diante dos nossos pés, até a planície, lá embaixo, estende-se um declive escorregadio e brilhante na qual o sol se mira como um espelho. Ao nosso lado está um trenó pequenino, forrado de pano vermelho-vivo.
- Deslizemos até embaixo,  Nadêjda Petrovna! - imploro eu. - Só uma vez! Garanto-lhe, ficaremos sãos e salvos!
Mas Nádenka tem medo. Toda essa extensão, desde as suas pequeninas galochas até o fim da montanha de gelo, se lhe afigura como um terrível abismo de profundidade imensurável. Ela fica tonta e perde o fôlego. Só de olhar lá para baixo, quando eu apenas lhe proponho sentar-se no trenó - que terá então se ela arriscar despenhar-se no precipício? Ela morrerá, enlouquecerá!

terça-feira, 25 de março de 2014

Olga Knipper / A morte de Tchekhov

Anton Tchekhov e Olga Knipper
1901
Olga Knipper
A MORTE DE TCHEKHOV



Anton sentou-se extraordinariamente ereto e disse em voz alta e clara (embora ele não soubesse quase nada de alemão): Ich sterbe ("Estou morrendo"). O médico acalmou-o, pegou uma seringa, deu-lhe uma injeção de cânfora, e pediu champanhe. Anton tomou um copo cheio, examinou-o, sorriu para mim e disse: 'Fazia um bom tempo que não bebia um copo de champanhe.' Ele bebeu, e inclinou-se suavemente para esquerda, e eu só tive tempo de correr em sua direção e de colocá-lo na cama e chamá-lo, mas ele tinha parado de respirar e estava dormindo tranquilamente como uma criança…





Anton Tchekhov / Um clássico contemporâneo da literatura russa


Anton Tchekhov
Um clássico contemporâneo 
da literatura russa

Elena Vássina
Revista Cult

Entre o estrelado áureo dos escritores russos do século 19, Anton Tchekhov (1860-1904) ficou consagrado como o mais ousado transgressor da tradição literária clássica e um importante precursor das formas e da linguagem artística contemporânea. O escritor de múltiplas faces, Tchekhov, antes de tudo, é um reconhecido mestre de narrativas curtas: em cada um de seus contos ele conseguiu recriar o microcosmo literário que abrange o infinito e a imensidão do ser humano e do mundo. Essa preciosa descoberta artística do gênio tchekhoviano fez a literatura do século 20 reconhecer o gênero conto como um dos mais importantes da narrativa contemporânea e transformou o contista, segundo a bela definição de Alfredo Bosi, em “um pescador de momentos singulares cheios de significação”. Ao mesmo tempo, Tchekhov é um grande renovador da arte dramática, criador de um novo paradigma estético do drama contemporâneo. Fora das obras de ficção, este autor russo deixou-nos uma valiosa herança dos escritos documentais: ensaios jornalísticos, cartas, diários e cadernos de anotações. Por isso, não é de estranhar que as obras completas do escritor, cujo credo literário era “a brevidade é irmã do talento”, incluem 30 volumes.