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sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Octavio Paz / As palavras

Hirotoshi Ito




Octavio Paz
AS PALAVRAS
Tradução de Antonio Miranda


Dai-lhes a volta,
agarre-as pelo rabo (berrem, putas),
açoite-as,
dai-lhes açúcar na boca às nécias,
infle-as, balões, espete-as,
trague seu sangue e tutanos,
seque-as,
pise-as, galo galante,
torça-lhes a goela, cozinheiro,
depene-as ,
ampute-as, touro,
boi, arraste-as,
faça-as, poeta,
faz que traguem todas as palavras.








terça-feira, 9 de agosto de 2022

Octavio Paz / Todos os dias te descubro





Octavio Paz
Todos os dias te descubro
Segundo um poema de Fernando Pessoa

Todos os dias descubro
A espantosa realidade das coisas:
Cada coisa é o que é.
Que difícil é dizer isto e dizer
Quanto me alegra e como me basta
Para ser completo existir é suficiente.

Tenho escrito muitos poemas.
Claro, hei de escrever outros mais.
Cada poema meu diz o mesmo,
Cada poema meu é diferente,
Cada coisa é uma maneira distinta de dizer o mesmo.

Às vezes olho uma pedra.
Não penso que ela sente
Não me empenho em chamá-la irmã.
Gosto porque não sente,
Gosto porque não tem parentesco comigo.
Outras vezes ouço passar o vento:
Vale a pena haver nascido
Só por ouvir passar o vento.

Não sei que pensarão os outros ao lerem isto
Creio que há de ser bom porque o penso sem esforço;
O penso sem pensar que outros me ouvem pensar,
O penso sem pensamento,
O digo como o dizem minhas palavras.

Uma vez me chamaram poeta materialista.
E eu me surpreendi: nunca havia pensado
Que pudessem me dar este ou aquele nome.
Nem sequer sou poeta: vejo.
Se vale o que escrevo, não é valor meu.
O valor está aí, em meus versos.
Todo isto é absolutamente independente de minha vontade.



quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Octavio Paz / Epitáfio para um poeta

 


Octavio Paz
EPITÁFIO PARA UM POETA
Tradução de José Weis

Quis cantar, cantar
para não lembrar
sua vida verdadeira de mentiras
e recordar
sua mentirosa vida de verdades.



segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Octavio Paz / Espiral





Octavio Paz
ESPIRAL

Tradução de Haroldo de Campos


Como o cravo no seu talo,
como o cravo, eis o foguete,
que é um cravo de disparo.

É foguete o torvelinho:
sobe ao céu e se despluma,
canto de ave no pinho.

Como o cravo e como o vento
o caracol é foguete:
empedrado movimento.

E a espiral em cada coisa
seu vibrar difunde em giros:
um mover que não repousa.

O caracol foi corola,
eco de eco, luz, vento,
onda que se encaracola.



Octavio Paz
ESPIRAL

Como el clavel sobre su vara,
como el clavel, es el cohete:
es un clavel que se dispara.

Como el cohete el torbellino:
Sube hasta el cielo y se desgrana,
canto de pájaro en un pino.

Como el clavel y como el viento
el caracol es un cohete:
petrificado movimiento.

Y la espiral en cada cosa
su vibración difunde en giros:
el movimiento no reposa.

El caracol ayer fue ola,
mañana luz y viento, son,
eco del eco, caracola.

domingo, 24 de julho de 2022

Octavio Paz / Minha vida com a onda


Octavio Paz
Minha vida com a onda


Octavio Paz / Mi vida con la ola 


Quando deixei aquele mar, uma onda se adiantou entre todas. Era esbelta e ligeira. Apesar dos gritos das outras, que a seguravam pelo vestido flutuante, pendurou-se em meu braço e foi-se embora comigo pulando. Não quis dizer-lhe nada, porque me dava pena envergonhá-la diante das colegas. Além disso, os olhares de cólera das ondas maiores me paralisaram.

Quando chegamos à cidade, expliquei-lhe que não podia ser, que a vida ali não era o que ela pensava na sua ingenuidade de onda que nunca tinha saído do mar. Olhou para mim com seriedade: "Sua decisão estava tomada. Não podia voltar”. Tentei doçura, dureza, ironia. Ela chorou, gritou, acariciou, ameaçou. Tive que pedir-lhe perdão. No dia seguinte começaram meus problemas. Como subir no trem sem que nos vissem o condutor, os passageiros, a polícia? É verdade que os regulamentos não falam nada sobre o transporte de ondas nos trens, mas era justamente essa ressalva um indício da severidade com que se julgaria nossa atitude.

Depois de pensar muito, cheguei à estação uma hora antes da partida, ocupei meu assento e, quando ninguém olhava, esvaziei o depósito de água para os passageiros; em seguida, cuidadosamente, verti nele minha amiga.

O primeiro incidente aconteceu quando as crianças de um casal vizinho declararam sua ruidosa sede. Adiantei-me para prometer-lhes refrescos e limonadas. Justamente no momento em que iam aceitar, aproximou-se outra sedenta. Quis convidá-la também, mas o olhar de seu acompanhante me conteve. A senhora pegou um copinho de papel, aproximou-se do depósito e abriu a torneira. Tinha apenas enchido metade do copo quando, de um salto, me interpus entre ela e minha amiga. A senhora olhou para mim com assombro. Enquanto pedia desculpas, um dos garotos voltou a abrir o depósito. Fechei-o com violência.

A senhora levou o copo aos lábios:

— Ai, a água está salgada! — O menino fez eco. — Vários passageiros se levantaram. O marido chamou o condutor:

— Este indivíduo jogou sal na água? — O condutor chamou o inspetor:

— O senhor jogou substâncias na água? — O inspetor chamou o policial de plantão:

— O senhor jogou veneno na água? — O policial de plantão chamou o capitão:

— O senhor é o envenenador? — O capitão chamou três agentes. Os agentes me levaram para um vagão vazio, entre olhares e cochichos dos passageiros. Na primeira estação empurraram-me para fora do trem e arrastaram-me até a cadeia. Durante dias ninguém falou comigo, exceto durante os longos interrogatórios. Quando contava meu caso, ninguém acreditava, nem sequer o carcereiro, que mexia a cabeça, dizendo: "O assunto é grave, verdadeiramente grave. Não tinha tentado o senhor envenenar umas crianças?" Uma tarde, levaram-me ao procurador.

— O assunto é difícil — repetiu. — Vou remetê-la ao juiz criminal. Assim passou-se um ano. Finalmente me julgaram. Como não houve vítimas, minha punição foi leve. Pouco tempo depois, chegou o dia de minha liberdade. O chefe da prisão me chamou:

— Bom, já está livre. Teve sorte, graças a não terem acontecido desgraças. Mas que não volte a repetir-se, pois da próxima vez lhe custará caro... — E olhou para mim com a mesma expressão séria com que todos me olhavam.

Nessa mesma tarde peguei o trem e depois de algumas horas de incômoda viagem cheguei ao México. Peguei um táxi para minha casa. Ao chegar à porta do meu apartamento, ouvi risos e cantos. Senti uma dor no peito, como o golpe da onda da surpresa quando a surpresa nos golpeia em cheio no peito: minha amiga estava lá, cantando e rindo como sempre.

— Como você voltou?

— Muito fácil: no trem. Alguém, depois de certificar-se de que eu era apenas água salgada, me jogou na locomotiva. Foi uma viagem agitada: de repente era um tufo branco de vapor, de repente caía uma chuva fina sobre a máquina. Emagreci muito. Perdi muitas gotas.

Sua presença mudou minha vida. A casa de corredores escuros e móveis empoeirados se encheu de ar, de sol, de rumores e reflexos verdes e azuis, povoado de numerosos ecos e felizes reverberações.

Quantas ondas é uma onda ou como pode fazer praia ou rocha ou quebra-mar um muro, um peito, uma testa que coroa com espumas! Até os cantos abandonados, os abjetos cantos de poeira e os detritos foram tocados por suas mãos leves. Tudo começou a sorrir e por toda parte brilhavam dentes brancos, O sol entrava com gosto nos velhos quartos e ficava na casa por horas, quando já fazia muito tempo que havia abandonado as outras casas, o bairro, a cidade, o país. E várias noites, já bem tarde, as escandalizadas estrelas o viram sair de minha casa, escondido. O amor era um jogo, uma criação perpétua. Tudo era praia, areia, leito de lençóis sempre frescos. Se eu a abraçava, ela se erguia, incrivelmente esbelta, como talo líquido de um álamo; e de repente essa esbelteza florescia num jorro de penas brancas, num penacho de risos que caíam sobre minha cabeça e minhas costas e me cobriam de brancuras. Ou então estendia-se diante de mim, infinita como o horizonte, até que eu também me fazia horizonte e silêncio. Plena e sinuosa, envolvia-me como uma música ou uns lábios imensos. Sua presença era um ir-e-vir de carícias, de rumores, de beijos. Entrava em suas águas, quase me afogava e num fechar de olhos encontrava-me acima, no alto da vertigem, misteriosamente suspenso, para cair depois como uma pedra, e me sentir suavemente depositado no seco, como uma pena. Nada é comparável ao dormir embalado nas águas, a não ser acordar com os golpes de mil alegres chicotes ligeiros, por arremetidas que se retiram rindo.

Mas jamais cheguei ao centro de seu ser. Nunca toquei o nó do ai e da morte. Quiçá nas ondas não exista esse lugar secreto que faz a mulher vulnerável e mortal, esse pequeno botão elétrico onde tudo se enlaça, se crispa e se ergue, para logo desfalecer. Sua sensibilidade, como a das mulheres, se propagava em ondas, só que não eram ondas concêntricas, senão excêntricas, que se estendiam cada vez mais longe, até tocar outros astros. Amá-la era prolongar-se em contatos remotos, vibrar com estrelas distantes de que nem suspeitamos. Mas seu centro... não, não tinha centro, senão um vazio parecido com o dos torvelinhos, que me sugava e me asfixiava.

Estendidos um ao lado do outro, trocávamos confidências, cochichos, risadas. Feito um novelo, caía sobre meu peito e ali se desenrolava como uma vegetação de rumores. Cantava ao meu ouvido, caracol. Fazia-se humilde e transparente, jogada aos meus pés como um animalzinho, água mansa. Era tão límpida que podia ler todos os seus pensamentos. Certas noites sua pele se cobria de fosforescências e abraçá-la era abraçar um pedaço de noite tatuada de fogo. Mas também se fazia negra e amarga. Nas mais inesperadas horas mugia, suspirava, se contorcia. Seus gemidos acordavam os vizinhos. Quando a ouvia, o vento do mar arranhava a porta da casa ou delirava em voz alta pelos terraços. Os dias nublados a irritavam; quebrava móveis; falava palavrões, cobria-me de insultos e de uma espuma cinza e esverdeada. Cuspia, chorava, blasfemava, profetizava. Sujeita à lua, às estrelas, ao influxo da luz de outros mundos, mudava de humor e de fisionomia de uma maneira que me parecia fantástica, mas que era tal qual a maré.

Começou a queixar-se de solidão. Enchi a casa de caracóis e conchas, pequenos barcos veleiros, que em seus dias de fúria ela fazia naufragar (junto com os outros, carregados de imagens, que todas as noites saíam de minha frente e afundavam nos seus ferozes ou graciosos remoinhos). Quantos pequenos tesouros se perderam naquele tempo! Porém não eram suficientes meus barcos, nem o canto silencioso dos caracóis. Confesso que não sem ciúmes os via nadar na minha amiga, acariciar seus peitos, dormir entre suas pernas, enfeitar seu cabelo com leves relâmpagos de cores. Entre todos aqueles peixes havia uns particularmente repulsivos e ferozes, uns pequenos tigres de aquário, grandes olhos fixos e bocas fendidas e carnívoras. Não sei por que aberração minha amiga tinha prazer de brincar com eles, demonstrando por eles sem rubor uma preferência cujo significado prefiro ignorar. Passava longas horas fechada com aquelas horríveis criaturas.

Um dia não pude mais; derrubei a porta e me joguei sobre eles. Ágeis e fantasmagóricos, escapavam-se entre minhas mãos enquanto ela ria e me batia até me derrubar, Senti que me afogava. E quando estava a ponto de morrer, arroxeado, me depositou na beira e começou a beijar-me, humilhado. E ao mesmo tempo a voluptuosidade me fez fechar os olhos. Porque sua voz era doce e me falava da morte deliciosa dos afogados.

Quando voltei a mim, comecei a temê-la e a odiá-la. Tinha descuidado dos meus assuntos. Voltei a freqüentar os amigos e reatei velhas e queridas relações. Encontrei uma amiga da juventude. Pedindo-lhe que jurasse guardar segredo, contei-lhe minha vida com a onda. Nada comove tanto as mulheres quanto a possibilidade de salvar um homem. Minha redentora usou todas as suas artes, mas o que podia uma mulher, dona de um número limitado de almas e corpos, diante de minha amiga, sempre mutante - e sempre idêntica a si mesma na sua metamorfose incessante? Chegou o inverno. O céu se tornou cinza. O nevoeiro cobriu a cidade. Caía um chuvisco gelado. Minha amiga gritava todas as noites. Durante o dia isolava-se, quieta e sinistra, murmurando uma sílaba só, como uma velha rabugenta que reclama num canto. Ficou fria; dormir com ela era perder a noite e sentir como se gelasse paulatinamente o sangue, os ossos, os pensamentos. Tornou-se impenetrável, revolta. Eu saía com freqüência e minhas ausências eram cada vez mais prolongadas. Ela, no seu canto, uivava longamente. Com os dentes afiados e a língua corrosiva, roia os muros, desmoronava as paredes. Passava as noites acordada, queixando-se de mim. Tinha pesadelos, delirava com o sol, com um grande pedaço de gelo, navegando sob os céus negros nas compridas noites que pareciam meses. Injuriava-me. Amaldiçoava e ria; enchia a casa de gargalhadas e fantasmas. Chamava os monstros das profundidades, cegos, rápidos e obtusos. Carregada de eletricidade, carbonizava tudo o que a roçava. Seus doces braços se tornaram cordas ásperas que me estrangulavam. E seu corpo esverdeado e elástico era um chicote implacável, que batia, batia, batia.

Fugi. Os horríveis peixes riam com risadas ferozes. Lá nas montanhas, entre os altos pinheiros e os despenhadeiros, respirei o ar frio e fino como um pensamento de liberdade. Depois de um mês regressei. Estava decidido. Tinha feito tanto frio que encontrei sobre o mármore da lareira, junto do fogo extinto, uma estátua de gelo. Não me comoveu sua abominável beleza. Joguei-a num grande saco de lona e saí à rua, com a adormecida nas costas. Num restaurante da periferia vendi-a para um garçom amigo, que imediatamente a quebrou em pequenos pedaços, que depositou cuidadosamente nos baldes onde se esfriam as garrafas.


Octavio Paz, ensaísta e poeta mexicano, nasceu na capital de seu país em 1914. Passou sua infância nos Estados Unidos, acompanhando sua família, e sua vida adulta entre a França e a Índia, por fazer parte do quadro de diplomatas mexicanos. Em seu país, é o poeta mais considerado e controvertido da segunda metade do século XX.

Foi agraciado, entre outros, com os prêmios Cervantes, em 1979,  Alexis de Tocquerville, em 1989,  e com o Nobel de Literatura, em 1990.

Algumas obras do autor: "Luna silvestre" (1933), "Entre lapiedra y la flor" (1940), "el laberinto de la soledad" (1959), "La estación violenta" (1958), "El arco y la lira" (1956), "Topoemas" (1971), e "Hijos del aire" (1979).

O escritor faleceu na cidade do México no ano de 1998.

O texto acima foi publicado no livro "Arenas movedizas" (1949), e transcrito da antologia "Contos latino-americanos eternos", Editora Bom Texto - Rio de Janeiro, 2005, pág. 109, organização e tradução de Alicia Ramal.





sexta-feira, 22 de julho de 2022

Octavio Paz / Escrito en tinta verde


Octavio Paz
ESCRITO COM TINTA VERDE
Tradução de Gerson Valle

A tinta verde cria jardins, selvas, prados,
folhagens onde cantam as letras,
palavras que são árvores,
frases que são verdes constelações.

Deixa que minhas palavras, oh branca, desçam e te cubram
como uma chuva de folhas a um campo de neve,
como a hera à estátua,
como a tinta a esta página.

Braços, cintura, colo, seios,
a fronte pura como o mar,
a nuca de bosque no outono,
os dentes que mordem fibra de alguma planta.

Teu corpo se constela de signos verdes
como o corpo de um tronco após a copa.
Não te importe tanta pequena cicatriz luminosa:
olha o céu e sua verde tatuagem de estrelas.



quarta-feira, 20 de julho de 2022

Octavio Paz / Irmandade

 



Octavio Paz
Irmandade


Sou homem: duro pouco
e é enorme a noite.
Porém olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender compreendo:
também sou escritura
e neste mesmo instante
alguém me soletra.


sábado, 5 de dezembro de 2015

Octavio Paz / O inlelectual total e sua definição clara do idioma

100º aniversario del nacimiento de Octavio Paz
Octavio Paz no Google

Octavio Paz: o intelectual total 

e sua definição clara do idioma


No dia 31 de março se comemora o centenário do nascimento do escritor e prêmio Nobel mexicano

Poeta, ensaísta, tradutor e pensador, é uma das figuras chave da literatura em espanhol.

Seu grande instrumento foi a linguagem cotidiana. Repetidas vezes, ele renovou seu idioma no acervo popular



Octavio Paz na Residência de Estudantes de Madri, em 1989.

Borges gerou a ilusão de que havia lido todos os livros e examinado todas as bibliotecas. Sua erudição parecia tão absoluta que, no seu caso, o esquecimento era uma forma de proximidade e espontaneidade. Sua destreza literária nos fez sentir que era assim. O singular é que esse intrincado universo dependia de certezas e paixões cotidianas. Em seu último relato, A memória de Shakespeare, o protagonista herda as lembranças do tumultuoso autor inglês e descobre que são, assombrosamente, tão comuns como as de todos os homens. Já Beatriz Sarlo assinalou acertadamente que o Borges metafísico, tão discutido, se apóia no Borges suburbano, menos valorizado.
Uma coisa parecida acontece com Octavio Paz. A riqueza do seu pensamento suscita a impressão de que só se ocupou de temas complexos, fundamentais, altamente sofisticados. O inventário de seus interesses inclui as lutas sociais do século XX, os pré-socráticos, a arte tântrica, Sor Juana e o Século de Ouro de Oro, Marcel Duchamp, o mito na Meso-américa, o estruturalismo, as vanguardas, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), o erotismo, as drogas, o haiku (forma poética japonesa) e o expressionismo abstrato. Em livros como Blanco y Ladera Este sua poesia adquire elevada temperatura intelectual: versos que são ideias. Na opinião de Alejandro Rossi, foi um “apaixonado pela modernidade”. Não se recusou à experimentação nem ao diálogo com outras disciplinas. Enciclopédico e torrencial, parecia dedicado ao exagero de construir a civilização de um só homem.

Enciclopédico e torrencial, parecia dedicado ao exagero de construir a civilização de um só homem.
É fácil perceber a originalidade de Borges quando ele aborda a literatura fantástica como um ramo da filosofia. Mais complicado é perceber aí o eco de suas caminhadas pelo bairro. A imaginação é como a memória de Shakespeare: seu brilho distante depende de uma chispa que passa despercebida por ser demasiado próxima e que surge das asperezas diárias. A galáxia de interesses “pazianos” deriva de um mesmo estímulo: a linguagem que escutou com fervor crítico.
Quando criança, ouviu seu avô, o editor e político liberal Ireneo Paz, e se aproximou dos rumores da praça de Mixcoac, onde se misturavam os paroquianos da igreja, os vendedores ambulantes e os arautos da Revolução. Na Guerra Civil espanhola presenciou um confronto e descobriu uma lição de alteridade: inclusive o inimigo tem voz humana. Não foi por acaso que se interessou pela antropologia, desde os Tristes Trópicos de Claude Lévi-Strauss a A erva do diabo, de Carlos Castaneda.
Cazador de palavras, admirou a liberdade do surrealismo, mas, como Buñuel em Os esquecidos, quis devolvê-lo a uma realidade operada pelo inconsciente.
Seu grande instrumento foi a linguagem cotidiana. Não é por acaso que alguns de seus títulos provenham de refrãos ou de frases feitas: Las perras del olmoLibertad bajo palavra, . Águia ou sol? (outra forma de dizer “cara ou coroa?”). Sua maior realização nessa linha foi converter um termo de eletricistas numa opção intelectual: corrente alternada.
Em 1943 escreveu eloquentes artigos sobre a linguagem popular mexicana. Ali tratou do vacilón, a mexicaníssima maneira de brincar: “Ovacilón é uma espécie de espetada que murcha balões públicos e privados. É uma advertência contra a vaidade e a bazófia, contra as posturas excessivas e patéticas”. Ele dedicou outro texto ao ninguneo(“ninguenzisse”), exercício vernáculo que converte os outros em sombras, e antecipou as reflexões que, em O labirinto da solidão, dedicaria à chingada: “Os mexicanos, em vez de converter sua mãe em prostituta, a substituem por outra: o nada”.

Repetidas vezes renovou seu idioma no acervo popular, celebrando as “fantasias e delírios verbais dos mexicanos”
Uma notícia policial chamou a sua atenção: o suicida Juan Camacho tinha morrido exclamando: “que veneno saboroso”. Isso o levou a uma reflexão sobre os prazeres da morte, da mesma forma que o costume de vestir pulgas o levou a considerar que só um país de imensos vulcões poderia admirar tanto as miniaturas.
Repetidas vezes renovou seu idioma no acervo popular, celebrando as “fantasias e delírios verbais dos mexicanos”. Não por acaso escreveu o prólogo de Nueva picardia mexicana, de Armando Jiménez: “Aqui sim há linguagem em movimento, contínua rotação das palavras, insólitos jogos entre o sentido e o som, idioma em perpétua metamorfose”.
Alguns dos seus melhores textos representam um jogo de rotação entre o culto e o popular. No poema A palavras, escreve: “Vira-as,/ pega-lhes pelo rabo (chiem, putas),/açoita-as,/ adoça-lhes a boca às reguilas, […]/fá-las, poeta, faz que se traguem todas as tuas palavras”.
O lema aparece encarnado em outros textos: “Desta vez eu te esvazio a pança, te torço, te retorço, te viro e viro de cabeça para baixo, te arranco o pinto, te afundo o estero. Raivaraibabaca. Dona Campamochas come as sobras do membro cortado de don Campamocho”. (“Esta vez te vacío la panza, te tuerzo, te retuerzo, te volteo y voltibocabajeo, te arranco el pito, te hundo el esternón. Broncabroncabrón. Doña Campamocha se come en escamocho el miembro mocho de don Campamocho”). Afronta, riso, estrapolação: poesia de Octavio Paz.
Sua vasta obra foi, entre outras coisas, uma luz sobre o idioma. A profundidade e variedade das suas ideias provocaram que às vezes fosse percebido como um autor de gabinete, interessante apenas para um círculo de seletos especialistas, um espectador alheio ao fluxo da vida. Nada mais falso. Só alguém aberto aos mistérios da simplicidade poderia escrever este retrato de Miguel Hernández: “Eu o conheci cantando canções populares espanholas, em 1937. Possuía uma voz de baixo, um pouco selvagem, um pouco de animal inocente: soava a campo, a eco grave repetido pelos vales, a pedra caindo num barranco”.

Seu principal gesto poético foi capturar o momento como um lampejo carregado de outro tempo
Paz soube ouvir a queda das pedras, as vozes soltas, a onda do cotidiano. Em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel, se referiu à vigência do mundo indígena: “Ele nos fala na linguagem cifrada dos mitos, das lendas, das formas de convivência, das artes populares, dos costumes. Ser escritor mexicano significa ouvir o que nos diz seu presente – essa presença. Ouvi-la, falá-la, decifrá-la: dizê-la”.
Seu principal gesto poético foi o de capturar o momento como um lampejo carregado de outro tempo. Vivemos facilmente na lembrança do passado ou na antecipação do porvir. Onde está o presente? Otávio Paz buscou esse esquivo momento. Em seu aniversário, o idioma completa um século de presente.





segunda-feira, 31 de março de 2014

Octavio Paz / Um animal que imagina

Octavio Paz

Octavio Paz

Um animal que imagina

O Nobel mexicano, Octavio Paz, ditou em 1975 seis dissertações, nunca publicadas, nas quais analisou sua ideia sobre a literatura

Este é um trecho da que o Nobel mexicano dedicou à relação entre poesia e progresso



Octavio Paz retratado por Daniel Mordzinski.
Estas leituras retrospectivas provocaram em mim emoções e sentimentos contraditórios: simpatia e repulsão, por quem eu fui; aprovação e desgosto, pelo que escrevi. A confirmação e a negação convivem e batalham no meu interior. Assim, não posso nem sequer me julgar. Não me condeno nem tampouco me absolvo. Limito-me a me ver e, para dizer a verdade, a me suportar. Não obstante, na medida em que posso ser objetivo, que é muito pequena, advirto que mudança e continuidade são duas notas constantes nos meus trabalhos poéticos, dois polos, dois extremos contrários que me atraíram desde que comecei a escrever. Sempre me interessou e, mais, me apaixonou, a experimentação e a exploração de formas e territórios poéticos pouco conhecidos, novos. Desse ponto de vista minha poesia se inscreve dentro da tradição da literatura moderna, que é uma literatura de exploração e de invenção.
Procurei definir esta tradição em vários trabalhos críticos, especialmente em Os Filhos do Lodo, um livro que tem como subtítulo ‘Do Romantismo à Vanguarda’. Essa tradição pode ser caracterizada como uma série de rupturas com o passado e uma série de tentativas de criar uma arte nova, distinta e única. A antiga estética se fundava na limitação dos modelos da Antiguidade Clássica, a moderna, desde o século XVIII para cá, na busca de uma nova beleza. Mas talvez estejamos no final deste período e vivemos na decadência da vanguarda. De qualquer maneira, no meu caso, a exploração de formas poéticas, de novas formas, coincidiu sempre com o amor e o cultivo das formas tradicionais, do soneto e o hendecassílabo, o poema breve com métricas curtas. Mas a mudança e a continuidade não só se entrelaçam nas formas poéticas que frequentei mas também nos temas e na própria substância do que escrevi.

Octavio Paz / O escritor absoluto

Octavio Paz

O escritor absoluto


O México homenageia Octavio Paz, seu intelectual mais completo. Da poesia à política e da arte à antropologia, nada foi alheio ao autor de “O Labirinto da Solidão”

Para uns foi um grande emblema do poder, para outros, uma voz crítica contra a autoridade



Octavio Paz visto por Loredano.
Uma manhã de 22 anos atrás, por volta das nove horas, o poeta Antonio Deltoro, então colaborador de Vuelta, chamou seu diretor, Octavio Paz, para agradecer-lhe a publicação de um livro na editora da revista. Chamava com apreensão, porque Paz tinha uma vivacidade que em curta distância o fazia temível: examinava severamente seus interlocutores perguntando-lhes se haviam lido isto ou aquilo e se não podia respondê-lo de qualquer maneira. O interrogatório, no entanto, foi além do esperado. Como é que não havia lido a informação de certa revista mexicana barata e sensacionalista? Assombrado, porque considerava essa publicação totalmente alheia aos interesses de Paz, Deltoro o perguntou: “mas o senhor lê isso?”. E o escritor, que além do que a essa hora havia devorado tudo da imprensa do dia, respondeu: “Na barbearia, na barbearia”.