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segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Franco contra Faulkner



Franco contra Faulkner

O hiperativo ator norte-americano dirige uma adaptação simplificada de 'O Som e a Fúria', apresentada fora de competição em Veneza


ÁLEX VICENTE
Veneza 8 SET 2014 - 06:27 COT





James Franco, de costas e com a cabeça raspada, concede autógrafos no festival de Veneza.Ampliar foto
James Franco, de costas e com a cabeça raspada, concede autógrafos no festival de Veneza. MANUEL SILVESTRI (REUTERS)

Há alguns anos, James Franco advertiu que, apesar de ter tudo na vida, sentia um vazio interior. "Tinha atuado nos maiores super sucessos e tinham me indicado ao Oscar, mas precisava de algo mais. Queria me expressar de outra maneira", explicou ao apresentar seu novo filme como diretor, uma adaptação de O Som e a Fúria, de William Faulkner, que foi apresentado fora de competição na Mostra de Veneza. "Por exemplo, meu sonho era interpretar um poeta, mas um dia entendi que ninguém me ofereceria esses papeis. Compreendi que teria que fazer eu mesmo", acrescentou.


O romance escolhido pelo ator, filho de uma professora de literatura e autora de livros infantis, não era o mais simples que podia adaptar. Sem ir longe, O Som e a Fúria é célebre por sua dificuldade entre os estudantes norte-americanos, que quebram a cabeça para entender seu primeiro capítulo, narrado em estilo indireto livre por Benjy, o filho com deficiência dos Compson, família aristocrata do sul em declínio. O próprio Faulkner, consciente do desafio que apresentava ao leitor, propôs a sua editora que imprimisse o livro com tintas de cores diferentes para distinguir os distintos lugares e momentos aos quais se refere o primeiro narrador. Em 1929, as impressoras não estavam avanças o bastante para permitir algo assim. Somente em 2012 uma editora norte-americana decidiu tornar realidade a versão sonhada pelo ganhador do prêmio Nobel de Literatura.
Franco, que reservou para ele mesmo o papel de Benjy em uma autêntica festa de histrionismo interpretativo, apostou numa simplificação do romance nesta adaptação. Para começar, se desprendeu do último capítulo, relatado por um narrador onisciente, e apostou em concentrar-se nas passagens que mais o interessavam para comprimir as 350 páginas do romance em um filme de 110 minutos. "Um livro pode ser lido ao ritmo que cada um quiser. Você pode ler cinco páginas por dia e depois deixar correr. Um filme, por outro lado, você vê de uma só vez. Tivemos que imaginar uma solução para contar a história com este condicionante de tempo", explicou Franco, que se valeu de uma abordagem em cena mais clássica. Em especial, se a comparamos com a tela dividida que utilizou em sua outra adaptação do mesmo autor, Enquanto Agonizo, apresentada em Cannes em 2013.


Meus filmes como diretor nunca serão blockbusters, nem quero que sejam", diz Franco

Sabe-se que Faulkner pegou o título emprestado de um texto shakespeariano. "A vida é um conto narrado por um idiota, cheio de som e de fúria, que não significa nada", dizia Macbeth em um de seus monólogos mais célebres. Na adaptação assinada por Franco não se observam problemas maiores, a não ser essa mesma irrelevância a que se referia o bardo. Pode-se tachar ao filme um convencionalismo excessivo, ainda que às vezes se agradeça à sua falta de pretensões, inabitual em sua filmografia recente.


Até o momento, só havia outra adaptação do livro, assinada em 1959 por Martin Ritt (o diretor de O Mercador de Almas e A Grande Esperança Branca) com duas estrelas da época, Yul Brynner e Joanne Woodward. Por outro lado, James Franco preferiu contar com sua habitual trupe de atores semi desconhecidos, começando por Scott Haze, que interpreta Jason, o mais mal-humorado e materialista dos irmãos Compson, e sua ex-parceira Ahna O’Reilly, vista em outra recente saga sulista de índole distinta, Histórias Cruzadas. Também contou com um amigo íntimo, o humorista Seth Rogen, que interpreta o telegrafista do condado fictício de Yoknapatawpha, com sotaque do Mississippi incluído. "Um dia entendi que preferia rodar um filme com este pessoal do que ir de férias com eles para o Havaí. Isso é o que me faz feliz", disse Franco. No entanto, o ator Jon Hamm, protagonista da série Mad Men, que foi anunciado no ano passado como parte do elenco, sumiu da versão final.
"Meus filmes como diretor nunca serão blockbusters, nem quero que sejam. O cinema também pode ser arte pura e não só entretenimento para ganhar dinheiro." A frase é de 2011, quando James Franco lançou sua estreia como diretor, um biografia cinematográfica de Sal Mineo com pretensões experimentais, em uma exibição paralela da Mostra. Três anos mais tarde, Franco dirigiu seis longas e tem mais dois no gatilho. Entre eles, uma biografia de Charles Bukowski com Shannen Doherty, de Barrados no Baile, e também Zeroville, história ambientada na Hollywood dos anos 1970, para a qual o ator mudou de aspecto físico, como demonstrou ontem em Veneza: Franco raspou a cabeça e tatuou os rostos de Elizabeth Taylor e Montgomery Clift na parte de trás do crânio.
Questões de look à parte, o ator e diretor -além de estrela convidada em programas de televisão, professor de literatura em Yale, integrante do grupo musical Daddy e autor de um livro de relatos, Palo Alto, inspirado em sua adolescência- não pôde evitar montar outro de seus espetáculos metarreferenciais. Aproveitou a cerimônia prévia à projeção de seu filme, quando o festival entregou-lhe o prêmio Glory to the Filmmaker, para filmar uma das cenas de Zeroville, na qual seu personagem recebe um prêmio de honra deste mesmo festival. Franco prometeu lançá-lo na próxima edição da Mostra.


sábado, 6 de setembro de 2014

Abel Ferrara e a 'via crucis' de Pasolini

Abel Ferrara e a 'via crucis' de Pasolini

O diretor norte-americano apresenta na Mostra uma crônica evocativa sobre as obsessões e os últimos momentos de vida do cineasta italiano assassinado em 1975


Willem Dafoe e Abel Ferrara, ontem em Veneza. / ANDREW MEDICHI
Como aqueles personagens que costumam experimentar a redenção em seus filmes, Abel Ferrara retornou ontem ao festival que o exaltou durante os anos noventa para expiar pecados cinematográficos mais recentes. Seu estudo biográfico sobre Pier Paolo Pasolini, esperado com ansiedade, mas também com maus presságios, foi recebido entre aplausos no Festival de Cinema de Veneza. Fontes mal informadas tinham dito que o filme seria focado em teorias da conspiração sobre o assassinato do escritor e cineasta, o que fez esperar algo muito diferente do que acabou sendo projetado ontem: uma estimulante cinebiografia que percorre as últimas 48 horas de vida de um Pasolini mergulhado em suas obsessões e desenha um retrato multifacetado da personagem.
Pier Paolo Pasolini


“Foi um homem de outro tempo, habitou em Saló todos os dias de sua vida”, diz Ferrara
“Nunca declarei isso. Nunca disse saber quem o matou. Quem de vocês me citou mal?”, respondeu Ferrara ontem, algo incomodado. “A intenção sempre foi a de retratar sua vida, seu trabalho e sua paixão”. O protagonista guarda alguma semelhança com o diretor do filme, intitulado simplesmente  Pasolini. Um cresceu no Friuli italiano, outro no Bronx, mas ambos demonstram uma obsessão semelhante pelo submundo, pelo erotismo da marginalidade e pela provocação como estilo de vida, muitas vezes a partir do imaginário católico. Ferrara minimizou ontem as semelhanças: “Foi um homem de outro tempo, que conviveu com o fascismo em um país que queria destruí-lo. Pasolini habitou em Salò todos os dias de sua vida. Mas fazia parte da geração do meu pai, que acreditou cegamente na personalidade própria”.
Seu longa-metragem se distancia das convenções deste desgastado subgênero, cada vez mais aparentado às vidas dos santos. O cineasta traduz em imagens o universo de seu protagonista por meio de uma narrativa não-linear e ligeiramente onírica, que alterna fragmentos de seus filmes, dramatizações das últimas entrevistas que concedeu, imagens da intimidade familiar na casa de sua famosa mamma e sequências extraídas de seu roteiro inacabado, Porno-Teo-Colosal, em que participaram Ninetto Davoli, um de seus atores fetiche, e Riccardo Scamarcio, sex symbol do cinema italiano atual. Este conglomerado permite fazer rever o fascínio de Pasolini pelas classes populares e pela marginalidade, a sua visão do sexo homossexual como um ato de resistência e seu fanatismo confesso pelo futebol, “última representação sagrada de nosso tempo” na definição de Pasolini e seu terceiro prazer favorito, “depois da literatura e do eros”.


O triunfo não é só do diretor e de sua montagem meticulosa, mas também de um roteiro extremamente documentado, obra de Maurizio Braucci, escritor e poeta napolitano, além de impulsionador de laboratórios de criação artística em prisões e escolas em bairros marginalizados, o que o aproxima do tema em questão. “O cinema não é só uma experiência lingüística, mas também filosófica”, escreveu Pasolini em Poeta das Cinzas. Colaborador habitual de Matteo Garrone, o roteirista parece ter seguido o mesmo conselho.
O Pasolini de Ferrara usa os mesmos óculos escuros que o Pasolini de verdade e tem um rosto anguloso quase idêntico, mas fala com um sotaque de Wisconsin, o que desagradou a uma parte dos críticos italianos ontem. “Precisei justificar-me mil vezes por causa disso”, protestou Ferrara. “Somos norte-americanos e o inglês é a nossa língua materna. Quando vejo Willem Dafoe atuando, não vejo o Pasolini de 1975, mas um homem que leva um certo tipo de vida, seja em Roma, em Manhattan ou numa favela do Rio de Janeiro. Para mim, é tudo a mesma coisa. Mudar de idioma foi a nossa maneira de fazer o filme”. Talvez não tenha reencontrado o vigor distante de Bad Lieutenant ou The Funeral, mas encontrou uma fórmula acertada e pessoal para aproximar-se de uma personagem quase impossível de decifrar.