Mostrando postagens com marcador Jorge Amado. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Jorge Amado. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 11 de março de 2024

Foto / Veloso, Saramago y Amado

 



Veloso, Saramago e Jorge Amado

"José Saramago em visita a Salvador, em 1996, encontra Caetano Veloso e Jorge Amado e faz uma pausa na condição de ateu para ir a igrejas, participar de rituais do Candomblé e lançar flores a Iemanjá."

Semióticas – Olhar estrangeiro no Candomblé 

Por  José Antônio Orlando

FACEBOOK




sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Durante a Guerra Fria, intelectuais latino-americanos encontraram conforto na comunista Praga

 

O escritor brasileiro Jorge Amado e seu filho (quarto da esquerda para a direita) e o jornalista e dramaturgo tcheco Jan Drda (primeiro da esquerda para a direita), em Dobříš, castelo tcheco que serviu de residência para escritores tchecos e internacionais, em 1950. Foto do arquivo de Paloma Amado, usada sob permissão.


Durante a Guerra Fria, intelectuais latino-americanos encontraram conforto na comunista Praga

Antes da Covid-19, a cidade de Praga era visitada todos os anos por milhões de turistas em busca de cervejas baratas e arquiteturas espetaculares. Na década de 1950, por outro lado, a capital da então Tchecoslováquia atraiu uma multidão diferente de viajantes: intelectuais de esquerda de todo o mundo procurando ver como era a vida sob o regime socialista.

Muitos desses viajantes vieram da América Latina e dentre eles estavam gigantes da literatura, como Jorge Amado e Gabriel García Márquez. Há muito esquecida, esta história compartilhada vem sendo aos poucos redescoberta e reavaliada na República Tcheca. 

Com o desenrolar da Guerra Fria, tanto o Ocidente quanto a União Soviética engajaram-se em intensos esforços publicitários a fim de demonstrar a superioridade de seus sistemas políticos e socioeconômicos, de modo geral, visando ao público na Ásia, África, Oriente Médio, e América Latina. E ambos os lados enxergaram na arte uma forma eficaz de transmitir essa mensagem.   

Na União Soviética, a Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países Estrangeiros, ou VOKS na sigla em russo, tinha como missão convidar intelectuais e escritores de todo o mundo para os países da União Soviética e do Bloco Oriental, sobre o qual eles foram encorajados a escrever.

Tendo ingressado no Bloco Oriental em 1948, após seu partido comunista orquestrar um golpe, a Tchecoslováquia foi um desses destinos. Além de Jorge Amado e Gabriel García Márquez, o país recebeu escritores da Argentina (Raúl González Tuñón), do Brasil (Graciliano Ramos), do Chile (Ricardo Latcham, Pablo Neruda), de Cuba (Nicolás Guillén) e do México (Efraín Huerta, Luis Suárez). Alguns viajaram sozinhos, outros faziam parte de delegações maiores.  

Sendo assim, a partir dos anos 1950, Praga tornou-se um centro cultural da esquerda, reunindo escritores emergentes e estabelecidos nessa ideologia, como o turco Nazım Hikmet e o soviético Ilya Ehrenburg.

Na realidade, Pablo Neruda pode ter herdado seu nome artístico do escritor, poeta e jornalista tcheco do século 19, Jan Neruda (o poeta chileno nasceu Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto). Ele nunca admitiu essa suposição, contudo, fotos dele caminhando pela rua Neruda em Praga, ou posando diante de restaurantes e pubs sob o nome de “Neruda,” oferecem alguma base sólida para a especulação.

Michal Zourek, foto usada sob permissão.

A Global Voices conversou com Michal Zourek, acadêmico tcheco que enfoca os laços entre o Bloco Oriental e a América Latina. Zourek, autor do livro de 2018 “Československo očima latinskoamerických intelektuálů 1947-1959” (“Tchecoslováquia pelo olhar dos intelectuais latino-americanos de 1947 a 1959″, que também foi publicado em espanhol), explica o que motivou esses intelectuais a aceitarem tais convites:

Houve uma série de regimes autoritários na América Latina que, alegando a necessidade de suprimir forças subversivas de esquerda, reprimiram os direitos humanos de forma massiva. Essa é a razão pela qual artistas latino-americanos a favor da ideologia comunista conseguiriam apoio material e moral da Europa Oriental. A respeito dos testemunhos de suas viagens, os textos escritos nos anos de 1940 e 1950 são, em geral, cheios de entusiasmo. É claro que determinados aspectos das sociedades socialistas impressionaram bastante esses eruditos vindos de países em desenvolvimento, sobretudo, a posição da cena cultural no Leste Europeu. Há muitas referências à alta qualidade das peças teatrais, da infraestrutura das escolas e das bibliotecas públicas, e ao alto nível de escolaridade do povo.

Zourek segue explicando sobre como Praga e Moscou eram um porto seguro para que esses intelectuais fizessem contatos e se encontrassem. “Era comum de intelectuais latino-americanos encontrarem-se pela primeira vez na Europa Oriental”, disse. “Em seus países de origem não era possível, porque os governos anticomunistas e autoritários em vigor não permitiriam”.

A Europa Oriental, diz Zourek, desempenhou um papel crucial na literatura latino-americana, é possível que a lendária geração de escritores da década de 1960 não tivesse sido tão influente, se não fosse pelo movimento internacional comunista, inclusive no ocidente. “As obras de autores engajados saíram em impressões de grande formato (em tcheco, polonês ou russo), bem maiores do que as de suas línguas maternas, e tudo isso aconteceu por trás da Cortina de Ferro”, disse.

Busto de Pablo Neruda no centro de Praga. Foto de Kenyh da Wikipedia, usada sob a licença CC BY-SA  3.0.

Uma terra farta?

Ao visitarem Praga ou outros lugares da Tchecoslováquia, os intelectuais de esquerda, homens em sua maioria, eram tratados como VIPs: hospedavam-se em hotéis luxuosos, tinham as despesas pagas e acesso a guias bilíngues, recebiam honorários pela escrita, e eventualmente, tinham as obras traduzidas para o tcheco ou eslovaco.

Aqueles que receberam residência para escrever permaneceriam por longos períodos, de maneira notável no castelo de Dobříš, o reduto da união dos escritores tchecoslovacos dos anos de 1940 aos anos de 1990. Alguns permaneceram ainda por mais tempo, devido ao asilo político que obtiveram. 

Conforme explica Zourek:

Suas despesas de viagem eram pagas, e durante o programa de viagem, que foi elaborado de forma cuidadosa, receberam a proposta de observar apenas os aspectos mais ideais da vida local. Em troca, os hóspedes estrangeiros espalhariam impressões positivas via relatos de viagem, artigos e conferências. Esse fenômeno de ‘turismo político’ era o componente chave da propaganda soviética, uma estratégia bem planejada que teve início logo após a Revolução Russa de 1917. Um importante papel foi designado aos intelectuais os quais a União Soviética queria ao seu lado, a fim de usá-los mais tarde em sua luta ideológica com o Ocidente.

Jorge Amado (à esquerda) e Nicolás Guillén (à direita) em uma estação de trem da URSS, a caminho da China, janeiro de 1952. Foto do arquivo de Paloma Amado, usada sob permissão.

Uma exceção interessante nesta visão e descrição idealizada é o colombiano laureado com o Nobel da Literatura, Gabriel García Márques que visitou a Alemanha Oriental, a Tchecoslováquia, a Polônia, a Hungria e a União Soviética em 1955 e 1957. Viajou parcialmente por conta própria e, quando convidado de forma oficial, encontrou maneiras de escapar do programa oficial para averiguar por conta própria. Em seu livro, “De viaje por Europa del Este” (“Em viagem pela Europa de Leste”), suas descrições da Europa Oriental são muito mais diversificadas.

No primeiro capítulo, García Márquez descreve a Alemanha Oriental em termos nada lisonjeiros, como nesta cena em que o escritor entre em um restaurante para tomar café: “O que as pessoas tomam no café da manhã seria o equivalente a uma refeição completa no restante da Europa (Ocidental), e bem mais barato. Contudo, esses indivíduos aparentam estar destruídos e amargurados, comendo enormes porções de carne e ovos fritos sem nenhuma alegria”.

Em outro capítulo sobre Moscou, escreve sobre o tópico tabu do culto à personalidade de Stalin, citando seu guia russo que diz: “Se Stalin ainda estivesse vivo (estava morto desde 1953), teríamos um Terceiro Mundo. Stalin foi a figura mais sangrenta, mais rancorosa e mais egocêntrica da história russa”.

Gabriel García Márquez (primeiro da esquerda para a direita) na Praça Vermelha, em Moscou, em agosto de 1957. Foto do arquivo de Michal Zourek, usada sob permissão.

Para os tchecos, uma herança redescoberta

O comunismo terminou no outono de 1989 na Tchecoslováquia, e nos estados sucessores da Eslováquia e da República Tcheca, o passado socialista é, com frequência, considerado um período obscuro de violações dos direitos humanos, de restrições de viagens e de obediência forçada a Moscou.

Essa visão influencia a abordagem dos historiadores tchecos e eslovacos sobre os intelectuais de esquerda que visitaram o país durante aquele período. Segundo Zourek, que estudou na República Tcheca e Argentina, destaca:

Durante o tempo em que estudei na universidade, ouvi algumas menções a respeito da estadia de Pablo Neruda e Jorge Amado na Tchecoslováquia, mas não fazia ideia de que tratava-se de um grande fenômeno, de que ambas as regiões mantinham contato mesmo antes da Revolução Cubana, em 1959. É provável que isso tenha acontecido devido ao desprezo, pelo qual hoje esses autores são lembrados na República Tcheca e na Eslováquia: muitos os consideram idealistas ou idiotas inúteis que, ao visitarem o país, apoiaram regimes que incentivaram violências e perseguições. A questão é, sem dúvida, muito mais complexa do que isso.

Embora esses autores sejam celebrados há muito tempo em seus países de origem na América Latina, apenas agora seu legado ressurge no discurso histórico da República Tcheca. Os registros de viagens de García Márquez foi traduzido para o tcheco pela primeira vez em 2018 (“Devadesát dnů za železnou oponou“), enquanto os outros permanecem, em grande parte, desconhecidos.

Zourek compartilha sua experiência pessoal, a fim de explicar por que o processo de reavaliação é tão desafiador:

Visitei o Chile logo após o ensino médio, as universidades eram repletas de bandeiras soviéticas e retratos de Lenin, as livrarias vendiam as obras de Marx e Engels. Pensei que a ideologia estivesse morta, e não conseguia entender como alguém poderia admirar uma ideologia criminosa que impôs limites à liberdade de expressão, que impediu pessoas de entrarem nas universidades e realizarem seus sonhos. Essa posição antagônica de ambas as regiões acerca do comunismo deve-se, sobretudo, a experiências históricas bastante distintas. Por esse motivo, eu penso que, ao avaliar o comunismo, devemos nos distanciar da nossa experiência e história familiar, que muitas vezes nos impedem de enxergar esse fenômeno transnacional em toda a sua diversidade. Infelizmente, essa dissociação ainda não está ocorrendo para muitos historiadores tchecos. Não acho surpreendente que pessoas inseridas no mundo em desenvolvimento tenham mais interesse nas políticas da Tchecoslováquia comunista do que seus pares na República Tcheca. Houve alguma mudança nos últimos anos, e penso que isso se deve à gradual reavaliação do período comunista pela sociedade tcheca. Acredito que nos próximos anos veremos uma série de trabalhos mostrando como a Tchecoslováquia comunista realizou empreendimentos notáveis no mundo em desenvolvimento, os quais foram, em sua maior parte, abandonados após 1989, por exemplo na área da cultura.

GLOBAL VOICES


domingo, 30 de julho de 2017

Jorge Amado / Um dia, um autógrafo



Jorge Amado

Um dia, um autógrafo

Por Menalton Braff
Em 18/04/2012 ÀS 10:36 PM


Eu não sabia o que era ser adolescente, naquele tempo. E era um. Também não sabia que o Brasil era o país do carnaval nem onde ficava a Bahia, da qual sabia apenas o nome da capital, Salvador, e seu adjetivo gentílico — soteropolitano. Coisas que a escola nos obrigava a decorar e que o tempo vai preenchendo com significados. No já extinto Colégio Ruy Barbosa, de Porto Alegre, vivíamos de sonhos, cerveja e literatura. Foi o tempo em que me tornei frequentador renitente da Livraria Globo, na rua da Praia. Sentava num dos corredores que havia entre as altas estantes de livros e lia orelhas e contracapas com zelo e método de um beneditino. Um dia uma daquelas estantes me jogou nas mãos uma capa estranha, de Clóvis Graciano, e me fez ler uma orelha mais estranha ainda, falando de um Brasil diferente do meu (paradisíaco, naquela idade), enfim, dizendo umas coisas que a princípio me assustaram. Não consegui sair da livraria, naquela distante manhã, sem levar comigo “O País do Carnaval”, da Editora Martins. 


Depois do primeiro, tive de ler todos. Com a voracidade de quem acaba de descobrir as cores do mundo. Eu estava tomado, confuso, assustado, perplexo. Mas então é assim, a gente pode escrever estas coisas todas, sobre gente com a nossa cara, sobre cidade com a cara da nossa, sobre um Brasil muito mais real do que aquele com que nos entopem nas escolas? Na medida em que devorava os livros de Jorge Amado, aumentava o deslumbramento, a paixão, que por fim explodiram numa certeza: —  Eu vou ser escritor, foi o que disse quando um dia cheguei em casa. Ninguém riu, nem talvez tenha acreditado. Era tido então, senão até hoje, como um tipo meio desajustado, desses que não devem ser levados muito a sério. 
Velho conhecido de Machado de Assis, José de Alencar, e outros autores do passado, aquele baiano ainda vivo que me deslumbrava me abriu as portas para Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outras paixões que fui tendo no correr da vida. Ele, o Jorge Amado, a quem tomei por segundo pai inteiramente à traição, jamais soube de minha existência. 


Jamais talvez seja exagero. Um dia, um colega chegou ao Ruy com a notícia: O Jorge Amado acaba de desembarcar no aeroporto. Veio dar uma palestra no salão da Rádio Farroupilha. Juntei da carteira o material, esperei a primeira troca de professores e, com cinco passos, estava pulando o muro. Naquele tempo eu tinha pernas com diversas habilidades que hoje só existem na memória. 
Foi uma das grandes emoções de minha vida. Eu estava ali sentado (e me beliscava para ter certeza de que não era sonho) e lá, sobre o palco, um escritor de verdade, vivinho da silva como um ser humano. Enquanto ele dizia “nóish”, sotaque inteiramente desconhecido para um porto-alegrense, enquanto ele falava manso e mole, como ele falava, eu não conseguia conter a baba, que escorria dos dois lados. 


No fim da palestra/entrevista, ele desceu do palco e veio pelo corredor, na direção em que eu estava, que era a direção da saída. Quando se aproximou, não tive dúvida, saltei em sua frente com o livro de latim aberto (o único que trouxera) e pedi um autógrafo. Foi a única vez em que tietei dessa maneira desavergonhada na vida. Foi o único autógrafo que o adolescente guardou por muitos anos. A vida me roubou o livro de latim, mas não me roubou o prazer de ter apertado  a mão de meu ídolo. Nunca mais nos cruzamos. 
Hoje, mais uma vez, esta sensação dolorida da orfandade.   




terça-feira, 12 de julho de 2016

Pilar del Río / “Saramago dizia que o primeiro Nobel em português deveria ser para Jorge Amado”

José Saramago

PILAR DEL RÍO, 
PRESIDENTA DA FUNDAÇÃO SARAMAGO

“Saramago dizia que o primeiro Nobel em português deveria ser para Jorge Amado”

Viúva de José Saramago veio ao Brasil defender sua causa mais recente: a Declaração dos Deveres Humanos


MARÍA MARTÍN
Rio de Janeiro 9 JUL 2016 - 11:51 COT

Pilar del Río, presidenta da Fundação Saramago. EDUARDO ZAPPIA
Pilar del Río não tem papas na língua. Fala com os olhos cravados no interlocutor e tem resposta para quase tudo, ainda mais se o assunto é machismo, religião ou política. A viúva de José Saramago, único Prêmio Nobel de Literatura em português, e presidenta da Fundação que leva o nome dele, participou da programação alternativa da última edição da Flip, em Paraty, e defendeu sua causa mais recente: a Declaração dos Deveres Humanos.
O projeto nasceu do discurso de Saramago, que ao receber o Nobel em 1998 denunciou a falta de cumprimento dos direitos humanos, já passado meio século de sua declaração. Del Río, com a Universidade Autônoma do México e um bom número de juristas e ativistas, está por trás da elaboração do documento que pretende levar à ONU, mas, “sobretudo, às pessoas”.
Em sua enésima viagem ao Brasil --não sabe quantas foram suas visitas, mas já encontra pessoas conhecidas pela rua--, Del Río fez escala no Rio de Janeiro. Tentaram assaltá-la duas vezes na porta de seu hotel em Copacabana, onde recebe EL PAÍS. Com 66 anos e um corpo miúdo, Del Río se livrou do ladrão.
Pergunta: Foi sua primeira vez na Flip. Que impressão teve da edição deste ano?
Resposta: Fui convidada pela Casa Cais e Luana Carvalho [filha de Beth Carvalho]. Não era convidada oficial. Achei maravilhoso que houvesse instituições privadas, como esta Casa Cais, para promover a cultura fora do programa oficial. Um dos pontos fortes foram os humoristas porque partiram de que o humor é revolucionário e contesta as religiões, que nos querem tristes e amedrontados, enquanto o humor nos torna livres e desinibidos. Achei magnífico que se convocassem pessoas grandes e minha admiração total e profunda foi pela Prêmio Nobel deste ano [a bielorrussa Svetlana Alexievich], com quem tive um encontro breve, mas emocionante.
P. A Flip deste ano esteve carregada de reivindicações relativas à atualidade política do país. Que impressão você levou do momento que o Brasil vive?
R. O Brasil não é a Flip. A Flip é uma elite e a elite cultural não está com este Governo. Isso é óbvio. A elite cultural deste país, como não podia ser de outra maneira, se manifesta a favor da igualdade do homem e da mulher, a favor do casamento homossexual, da liberdade para abortar. O Brasil é um país que necessita de muito mais tempo de um governo de esquerda porque as desigualdades continuam sendo muito grandes. Acredito que o PT, com todos os desacertos, é o Governo que fez mais pela imensa maioria deste país, inclusive pelos que não votam nele. De números fizeram cidadãos.
P. José Saramago foi o único Prêmio Nobel em língua portuguesa, enquanto em castelhano há mais de uma dezena. Por que a literatura brasileira não tem tanto alcance como sua música?
R. É difícil responder. Talvez porque as editoras não tenham sido suficientemente atrevidas para lançar campanhas, faltou trabalho conjunto. As ditaduras, por um lado, a do Brasil, por outro, a de Portugal, foram más com seus autores. Evitou-se que houvesse orgulho da literatura. A música era mais difícil de ocultar. As multinacionais foram muito mais inteligentes e fortes que as editoras locais. A música brasileira é que nos salvou da mediocridade. José Saramago dizia que o primeiro Prêmio Nobel de Literatura em português teria de ser para Jorge Amado. Os dois fizeram um pacto: compartilhar o prêmio. O que acontece é que quando deram o prêmio a José, Jorge Amado estava muito mal e não pôde ir.
P. Você é ateia, comunista, feminista e de esquerda. Como seria para você viver no Brasil?
R. Viver no Brasil com estas ideias não deve ser fácil. No caso de gente extraordinária que amo, como Chico Buarque, temos visto o quanto se tornou difícil para ele. Imagino que seria uma ativista e teria muitíssimos problemas porque estaria pedindo direitos para pessoas que renunciam a eles. O problema é que estão fazendo dos homens escravos. Homens que em vez de reivindicar melhorias para sua vida estão esperando morrer para que Deus lhes dê sopa quente todos os dias. O poder das igrejas evangélicas vai fazer esta sociedade retroceder muito. As pessoas não vão filiar-se a partidos, a sindicatos, vão confiar em que Deus lhes resolva os problemas.
P. O PT foi um dos responsáveis por permitir que partidos evangélicos se infiltrem no poder. Não só pactuou com eles, como também evitou entrar em reformas importantes, como a do aborto, que confrontam os interesses moralistas.
R. Se há algo que não perdoo ao PT foi precisamente pactuar não com quem votou nele em razão de seu programa, mas com os outros. Não ter imposto leis para garantir a laicidade do Estado. Ser gay não é obrigatório, abortar não é obrigatório, mas deveriam ter defendido a liberdade de quem quer fazer isso.
P. Uma vez você comentou que se sentia agredida se sentia que alguém te desejava sem ser algo mútuo. No Brasil está crescendo um forte movimento feminista, que começou contra as cantadas na rua e continua com a luta contra a cultura do estupro.
R. É impossível explicar a um homem que não queremos que nos chame de bonita se ele abre um jornal e encontra uma mulher nua para vender um carro. Não quero que me olhem com cobiça, com descaramento, mas estou disposta a dividir todo o tipo de sorrisos, de olhares. Agora, não permito que me violem. E a primeira violação é que não me chamem por meu nome, que não reconheçam minha função. Se queremos enfrentar essa questão horrível da cultura do estupro alguém tem que dar o primeiro passo e creio que deveriam ser os meios de comunicação.
P. O caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro revelou que não é um episódio isolado em pleno século XXI. Não parece forte para você esse choque de realidade?
R. O pior é que a sociedade se sinta chocada em um dia e não sejam tomadas medidas no dia seguinte. Houve alguma proposta corretiva na legislação na educação, nos livros escolares, nos meios de comunicação?
P. Qual é a sua relação com a saudade?
R. Procuro não tê-la. Estou tão plena do presente que é preciso administrar e do futuro que é preciso mudar que não tenho tempo para isso.
P. Acredita que seja incompatível um governo de centro-direita, de ideias liberais, que combata a desigualdade?
R. É incompatível com a igualdade um Governo como o atual que faz as declarações que faz. Por um lado, responde não a critérios liberais, pelo amor de Deus!, mas a critérios econômicos em benefício próprio , por outro, está dominado pelo obscurantismo da religião.
P. Por que obscurantismo?
R. Ouvi as declarações dos deputados que apoiam e sustentam o Governo. São pessoas que estão dispostas a abdicar do máximo que um ser humano tem, que é a razão, em função do dogma. É voltar à inquisição.
P. O que achou do processo e da forma como se destituiu Dilma Rousseff e do Governo Temer? Como você explicaria a situação a alguém que não esteja familiarizado com o Brasil?
R. No Brasil houve um governo de esquerda que fez projetos muito interessantes, mas com atitudes inadmissíveis e que causaram muitos danos à causa, com comportamentos individuais, mas não me esqueço dos diferentes programas sociais que estão em andamento. Não podemos nos esquecer disso, embora reconheçamos os casos de corrupção. Não vejo Dilma como uma corrupta. A corrupção tem muitos anos no Brasil. O que acredito é que ela abriu a caixa de Pandora e nesse dia assinou sua liquidação. Lamentavelmente algumas pessoas de seu partido que deveriam ter se colocado na primeira fila não fizeram isso.
P. A quem você se refere?
R. A algumas pessoas que passaram por diferentes governos e que estavam limpas e, provavelmente, Lula. Lula tinha que ter sido muitíssimo mais corajoso e muitíssimo mais claro. E não aparecer à última hora, quando não se sabia se era para salvar ou para salvar-se. Dilma foi durante o processo vítima do machismo e de uma sociedade patriarcal, e não consigo entender que uma das primeiras decisões de Temer fosse suprimir [da EBC] o feminino de presidente e que não haja ninguém que tenha protestado. São pequenas histórias, mas dão o tom.
P. Precisamente, você já deu uma boa bronca em um jornalista empenhado em te chamar de presidente [da Fundação José Saramago]. No Brasil até essa discussão acaba sendo política. Por que você acha importante reivindicar o termo presidenta?
R. Não podemos aceitar agora a masculinização. Nenhum dos altos cargos do mundo está feminizado: no sínodo dos bispos são todos homens, o Papa é homem, os cardeais são homens, na Espanha, na monarquia, o rei é o terceiro na linha de sucessão porque as mulheres não podiam ser rainhas... O poder não quer feminizar-se porque considera que eles perderão privilégios.