quinta-feira, 30 de julho de 2020

Frankenstein / 200 anos moderno

Boris Karloff as Frankenstein Painting by Paul Meijering

Frankenstein, 200 anos moderno

Em 1 de janeiro de 1818 foi publicada uma modesta edição do mítico romance em que uma precoce Mary W. Shelley moldou os dilemas e avanços de sua época


TEREIXA CONSTENLA
01 de janeiro de 2018 - 15:04 COT

Frankenstein nasceu de algo mais do que o desafio de Lord Byron ao lado de uma chaminé com vista para o lago Léman no verão mais frio do século XIX. Tudo o que foi depositado por Mary Wollstonecraft Shelley na narração que deu à luz um mito universal – inspirador de quase mil obras entre o cinema, o teatro e os quadrinhos – tem relação com as circunstâncias extraordinárias que a cercaram desde que nasceu em 30 de agosto de 1797 em Londres. Ao seu redor o velho mundo havia se fragmentado após várias revoluções. A industrial se encontrava em plena excitação graças ao aperfeiçoamento da máquina a vapor de James Watt. A política digeria a overdose de guilhotina de Robespierre e companhia abraçando a volta da ordem. As ideias e a ciência (ainda chamada filosofia natural) estavam igualmente agitadas, com as teorias de Lavoisier que inauguram a química moderna e as expedições aos polos para se aprofundar no magnetismo. E todas aquelas revoluções tomavam chá em sua casa atraídas por seu pai, o romancista e filósofo radical William Godwin (1756-1836), partidário da abolição da propriedade e contrário a toda forma de governo. O primeiro anarquista.

O próprio entorno doméstico é forjado contrário à convenção. Godwin vivia com sua segunda esposa, Mary Jane Clairmont, e cinco filhos de diferentes origens biológicas no que hoje seria uma moderna família reconstituída. Mary W. Shelley cresce marcada pelo pensamento de sua mãe, a escritora e filósofa Mary Wollstonecraft (1759-1797), que a convida a formar-se como uma cidadã consciente em vez de uma esposa submissa. Uma mãe ausente, cujo túmulo era um local frequente de leitura. A autora transportará sua experiência de orfandade à criatura literária, que espalha dor e morte porque não tem quem a queira.

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Em 1792, após o sucesso de um ensaio em defesa da Revolução Francesa, Mary Wollstonecraft publicou Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher, onde exigia a educação às meninas: “Para fazer o contrato social verdadeiramente equitativo, e com a finalidade de estender aqueles princípios esclarecedores que só podem melhorar o destino do homem, deve permitir-se às mulheres encontrar sua virtude no conhecimento, o que é praticamente impossível a menos que sejam educadas mediante as mesmas atividades que os homens”. É considerado o primeiro tratado feminista, paralelamente à Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã escrita pela francesa Olympe de Gouges, decapitada em Paris por querer levar os direitos humanos longe demais.

Se o pensamento de Mary Wollstonecraft era transgressor em si mesmo, sua vida encarnou vários mitos românticos por seus desamores e suas duas tentativas de suicídio. Entre o episódio do láudano e o do rio Tâmisa viajou pela Escandinávia com sua primeira filha, Fanny, e uma babá. Da experiência sairia um livro de viagens que entusiasmou William Godwin: “Se alguma vez foi escrita uma obra com a intenção de que um homem se apaixonasse pelo autor, acho que é essa”. Os dois escritores se tornam amigos, amantes e, por último, cônjuges entre chacotas da imprensa conservadora (Godwin havia se manifestado contra o casamento em escritos públicos). Na quarta-feira 30 de agosto de 1797 nasce a única filha do casal, Mary. A filósofa passou as contrações lendo em voz alta Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, com seu marido. O mesmo livro que no futuro será apreciado por uma criatura de dois metros e meio de altura e lábios negros.
Filha de dois filósofos radicais, os biógrafos sugerem que cresceu com mais pensadores do que afetos


Mary talvez não tenha sido educada como teria desejado sua mãe, que faleceu 11 dias após o parto, mas seu pai estimulou seu intelecto desde o começo. Os biógrafos sugerem que cresceu com mais pensadores do que afetos. “Ela frequentemente sentia-se sozinha e carente de um sentimento de identidade familiar”, diz James Lynn, “as relações com a segunda esposa de seu pai eram pobres, e mesmo que Godwin tenha lhe dado uma boa educação, não deu atenção às suas necessidades emocionais”.

Mary podia ouvir em sua casa o poete Samuel Taylor Coleridge, o inventor William Nicholson e o químico Humphry Davy. Seu pai a levava em conferências sobre eletricidade e para tomar chá com o divulgador do vegetarianismo John Frank Newton. Todo esse magma individual e criativo deixou marcas em Frankenstein: o capitão Walton faz referência a um poema de Coleridge (‘A Balada do Velho Marinheiro’) e o gigante mata, mas é vegetariano. Um velho amigo de Godwin é apresentado no começo do romance: “Na opinião do doutor Darwin, e de alguns fisiologistas da Alemanha, os acontecimentos em que a presente ficção é baseada não são inteiramente impossíveis”

Frankenstein (1994) - IMDb


O médico e naturalista Erasmus Darwin, defensor de uma teoria sobre a origem única da vida e avô do autor de A Origem das Espécies, também será evocado em Villa Diodati no frio verão de 1816. Horas antes de Mary ter a visão que alimenta Frankenstein, os poetas Lord Byron e Shelley recordam um de seus supostos testes, como relata a própria escritora: “Ao que parece havia conservado um pouco de massa em um pote de vidro, até que, por algum extraordinário processo, aquilo começou a se agitar com um movimento autônomo. (...) Talvez um cadáver pudesse reviver, o galvanismo deu provas de coisas semelhantes: talvez as partes que compõem uma criatura possam ser construídas, e depois possam ser reunidas e dotadas de calor vital”. A grande pergunta que se faz Victor Frankenstein – “Onde estará o princípio da vida?” – era a grande pergunta da época.

Diante da falta de respostas precisas, os substitutos triunfam. A eletricidade vive seu momento de glória desde meados do século XVIII. As descobertas científicas de Benjamin Franklin, Luigi Galvani e Alessandro Volta convivem com a prestidigitação ambulante. Em seu ensaio Mulheres e Livros, o editor Stefan Bollman recria um popular espetáculo de “aparelhos elétricos”: “Colocavam em funcionamento as rodas de suas máquinas eletrostáticas e enviavam descargas elétricas através das mãos de uma cadeia humana. Suspendiam uma pessoa de tal forma que levitava e faziam com que sua cabeça brilhasse”.

Frankenstein", 200 años como referente de terror

Até mesmo Percy Bysshe Shelley entrou na onda da eletricidade em Oxford, como detalha Charles E. Robinson, principal especialista na obra de Mary W. Shelley, em sua introdução a uma edição anotada para cientistas e inventores publicada em comemoração ao bicentenário da criação da obra: “Construiu sua própria pipa elétrica, fez faíscas saltarem de um aparelho elétrico e até armazenou o fluido da eletricidade em garrafas de Leyden: esses testes servem de base às experiências elétricas do pai de Victor, Alphonse, em Frankenstein”.

Quando é publicado anonimamente em 1818 especula-se com a autoria do poeta Percy B. Shelley


O poeta Shelley também acabaria frequentando a ágora doméstica de William Godwin, atraído pelo pensamento de um filósofo quase mais célebre por controvérsias públicas como a que manteve com Malthus do que por seus densos tratados políticos. Percy também era especialista em controvérsias: casou-se apesar da oposição de sua influente família e acabava de ser expulso de Oxford por fazer propaganda do ateísmo. Mary tinha 16 anos quando foge com ele, mas voltam logo por falta de dinheiro. A partir daí suas biografias alimentam o mito do casal perfeito do romantismo, com uma sucessão de sucessos literários e cadáveres jovens: só um de seus quatro filhos sobrevive e, aos 29 anos, Percy B. Shelley se afoga na Itália. No futuro a escritora se afastará da condição de maldita e se preocupará em obter a aprovação social para ela, seu único filho e o poeta morto.

Mas quando Mary W. Shelley escreve seu relato em 1816 para a competição sobre histórias de fantasmas, convocada por Lord Byron no verão mais frio do século, tem somente 18 anos, um bebê vivo e outro morto, e uma relação escandalosa que acabará com o suicídio da primeira esposa de Shelley. Ignora que está forjando um mito universal e que, naquela família onde só contavam os que tinham méritos literários, ultrapassará a popularidade de todos eles.

Por qué Frank Darabont la repudia y otras curiosidades de ...
Robert de Niro em 'Frankenstein de Mary Shelley', dirigido por Kenneth Branagh




Em 1 de janeiro de 1818, quase dois anos depois da estadia no lago Léman, é publicado Frankenstein ou o Prometeu Moderno com uma tiragem de 500 exemplares. Não tem assinatura. A mão de Percy B. Shelley (que fornece correções ao manuscrito) chega a ser especulada. Mas se algum incrédulo sobreviveu nesses 200 anos, perdeu a última esperança em 2013. Nesse ano foi leiloado por 477.422 euros (1,9 milhão de reais) um exemplar da primeira edição dedicada a Lord Byron “pelo autor”. A letra foi autentificada como a de Mary W. Shelley.

Na segunda edição de 1823 (de tiragem semelhante à anterior), a escritora se identifica. Em apenas três anos são feitas 10 adaptações teatrais diferentes, incluindo finais paródicos sobre a morte da criatura, que irá se afastando-se de seu cultivado espírito original – lia Plutarco, Milton e Goethe – para transformar-se no imaginário coletivo em um monstro de parafuso na cabeça e um tanto bobalhão. A obra se emancipa da autora. Seus leitores encontram em Frankenstein o que precisam: terror gótico, antecipação da ficção científica e um dilema ético sobre os limites da ciência.

No dia de Halloween de 1831 é lançada uma terceira edição de 4.020 exemplares. A escritora introduz mudanças e cala os céticos: “Certamente, não devo ao meu marido a sugestão de nenhum episódio, nem sequer de um guia nas emoções e, entretanto, se não fosse por seu estímulo, essa história nunca teria adquirido o formato com o qual se apresentou ao mundo”. Assina sua introdução como M.W.S., mas a história da literatura prescindirá do sobrenome materno.

Mas somente rastreando suas origens familiares e as circunstâncias dos primeiros anos de sua vida pode-se responder à pergunta que tantas vezes fizeram a Mary W. Shelley: “Como é possível que eu, à época uma jovenzinha, pudesse conceber e desenvolver uma ideia tão horrorosa?”


Frankenstein. Mary W. Shelley. Edição de 1818, revisada e corrigida por Charles E. Robinson. Anotada para cientistas, inventores e curiosos em geral. Tradução de José C. Vales e Vicente Campos. Ariel, 2017. 344 páginas. 20,90 euros (83 reais)

EL PAÍS



segunda-feira, 27 de julho de 2020

Morre Olivia de Havilland, última sobrevivente da Hollywood clássica

Olivia de Havilland (1940).
Olivia de Havilland, 1940

Morre Olivia de Havilland, última sobrevivente da Hollywood clássica

Atriz de 'E o Vento Levou', que vivia em Paris desde os anos 1960, morreu aos 104 anos


26 Jul 2020


Só ela ficou, a última sobrevivente do cinema clássico de Hollywood. Neste domingo, faleceu aos 104 anos Olivia de Havilland, atriz britânica-americana que participou de memoráveis filmes das décadas de 1930 e 1940, como E o Vento Levou, no qual ela interpretou o papel de Malania. Irmã da também atriz Joan Fontaine, que morreu em 2013, com quem passou grande parte de sua vida em desacordo, De Havilland residia discretamente em Paris desde os anos 1960. Ao longo de sua carreira, a intérprete participou de títulos icônicos como As aventuras de Robin HoodNinho de Víboras e Tarde Demais. A notícia de sua morte foi confirmada por sua ex-advogada Suzelle M. Smith à revista Variety. “Ontem à noite, o mundo perdeu um tesouro internacional e eu perdi uma amiga e cliente querida. Ela morreu pacificamente em Paris”.

Nascida em Tóquio em 1º de julho de 1916, De Havilland era filha de um advogado britânico residente no Japão e Lilian Fontaine, também britânica, atriz como suas duas filhas. A intérprete morreu na capital da França, “o único país em que realmente me sinto em casa”, como costumava dizer. Por ocasião do seu 104º aniversário, em 1º de julho, a revista Paris Match lembrou que a estrela de Hollywood se casou em 1955 com um de seus repórteres, Pierre Galante, com quem teve sua filha Gisèle, também jornalista da revista. Parisiense. Uma década depois, em 1965, ela se tornou a primeira mulher a presidir o festival de Cannes.

O casal se separou em 1962, mas não se divorciou até 1979. Mesmo assim, lembrou o Paris Match, eles permaneceram muito próximos até a morte do jornalista em 1998, aos 88 anos. De Havilland continuou morando em um apartamento de luxo na rua Benouville, no centro de Paris.

No auge de sua fama, na década de 1940, de Havilland ganhou dois Oscars, o primeiro em 1946 por Só resta uma Lágrima e três anos depois por seu papel em Tarde Demais. Atualmente, ela foi a última sobrevivente do elenco de E o Vento Levou e também a última representante do cinema clássico de Hollywood após a morte de Kirk Douglas, aos 102 anos em fevereiro passado. Durante sua carreira de atriz, ela colocou os grandes estúdios de Hollywood em cheque, levando Warner ao tribunal para lutar pelo direito dos atores de negociar melhores contratos.




quarta-feira, 22 de julho de 2020

Morre Juan Marsé / O grande romancista do século XX


2020-07-20 | 6 : Cultura | A(9K3QUBRA)
Juan Marsé

Morre Juan Marsé, o grande romancista do século XX

O escritor, de 87 anos, alcançou a fama com a publicação de ‘Últimas Tardes com Teresa’. Prêmio Cervantes, seus livros retrataram uma sociedade em evolução do franquismo até a democracia




A fórmula era saber de algum acontecimento real do bairro e, sentado no meio-fio, agregar toda a imaginação possível alimentada por filmes e quadrinhos da região, até transformar o episódio numa narração fascinante, que os demais seguiam em silêncio absoluto. As histórias eram contadas pelas crianças do bairro de Juan Marsé, numa infância marcada pelo frio e o mercado negro de uma Barcelona cinzenta, delimitada pelas zonas de El Carmelo, Guinardó e Gràcia. Eram chamadas de aventis, e a partir delas —e com um dom para a descrição e o retrato como poucos escritores— Marsé se transformou num dos grandes nomes da literatura espanhola atual, memória literária da infância do pós-guerra, que partiu na noite de sábado no Hospital de Sant Pau de Barcelona, aos 87 anos, após complicações decorrentes da insuficiência renal que sofria havia tempo.

A vida do autor de icônicos clássicos contemporâneos como Últimas Tardes com Teresa (Alfaguara Brasil), que confirmou sua vocação literária, Si te Dicen Que Caí e Un Día Volveré foi, no fundo, uma aventi (aventura) em si mesma. “Tornei-me escritor porque tenho um desajuste com a realidade que me rodeia, meu país, minha cidade, minha época... Isso me leva a encontrar na literatura um mundo de experiências que não tive, mas que sonhei”, disse ele após ganhar o prêmio Cervantes, em 2008, que coroou sua carreira. Um dos desajustes é que sua mãe morreu pouco depois do parto e seu pai o deu em adoção a um casal de amigos, Pep Marsé e Alberta Carbó, que acabavam de perder um filho. É mais provável que os homens se conhecessem por sua passagem pelo independentista Estat Català antes da Guerra Civil, um dos muitos acenos irônicos que a vida reservou para Marsé, ácido como poucos com a educação e a Igreja Católica (“Sou um anticlerical militante”, dizia, fruto de uma herança paterna) e com a política espanhola e catalã, em particular a nacionalista. “Sou um fronteiriço e um franco-atirador, a situação ideal”, definia-se sempre.

Última tarde con Juan Marsé


Suas primeiras lembranças foram os bombardeios de Barcelona e a imagem bem nítida dele e do pai chorando juntos, na varanda da casa, quando as tropas fascistas entraram em Barcelona em 26 de janeiro de 1939. Depois já tudo seria o pós-guerra, quase eterno. “Em meus romances, continuo transitando em meu mundo do pós-guerra; acontece que ele se tornou tão longo que me parece atual”, dizia, sempre brincando.

Marsé preencheu o pós-guerra oficial com os quadrinhos que sua mãe lhe dava (El Coyote, El Guerrero del Antifaz…) e os escritos de Verne, Wallace e Salgari, e muitos mergulhos nas piscinas da terraconense Sant Jaume dels Domenys, de onde era sua progenitora. Lá jogava futebol, premonitoriamente, na posição de goleiro (como Nabokov e Camus) e matou um pardal com uma espingarda de chumbinho, imagem da qual nunca mais se livrou. Também gostava de cinema, claro (“foi meu aprendizado no ofício de narrar; sempre gostei mais de trabalhar com imagens que com ideias”), talvez sua melhor escola porque teve que deixar os estudos aos 13 anos para ajudar em casa. Entrou na oficina de uma joalheria, ofício árduo mas de precisão, técnica que acabou aplicando à sua adjetivação, digna de ourives, e que já aparecia em seu primeiro relato, feito a lápis num caderno, aos 15 anos, sobre as lembranças de uns ciganos da cidade.



Logo ficou claro quem seria sua fada madrinha literária. Uma aventi dentro da aventi: sua mãe cuidava de uma idosa que tinha uma filha escritora. E sugeriu que o jovem escrevesse para ela. Era Paulina Crusat. “O senhor nasceu com o instinto de como se escreve, o de criar uma atmosfera (...) o dom da expressão é seu de nascimento”, ela lhe diria logo depois, numa das dezenas de cartas que ambos trocaram desde janeiro de 1957 até os anos setenta. As missivas ajudariam tanto o escritor como a pessoa: o Marsé que leu Dom Quixote aos 17 anos na solidão do vizinho Parque Güell, e Zweig, e o Hemingway contista e seu predileto Pío Baroja, que durante o serviço militar em Ceuta (onde obteria a história do impagável Tenente Bravo), que redigiu 130 páginas de um romance (o embrião de sua estreia: Encerrados Con Un Solo Juguete) e que ficaria estremecido com o filme A Morte de Um Ciclista, com os anos se abriria mais nas cartas, definindo-se como “bastante preguiçoso” e com “pouca capacidade de afeto externo”.

Os textos que Marsé vai trabalhando e que chegarão, por indicação de Crusat, a revistas como Ínsula, e ganharão o prêmio Sésamo de contos (Nada para Morir) estão impregnados de um realismo social em voga. Além disso, ele era um escritor operário, máximo mérito para o grupo de escritores e refinados de esquerda que seu próprio líder, Carlos Barral, batizou como Escola de Barcelona, nomes que seriam também amigos: Gil de Biedma, García Hortelano, Vázquez Montalbán, Terenci Moix, Eduardo Mendoza e, com o passar do tempo, Joan de Sagarra e Enrique Vila-Matas, entre outros.

Joalheiro até as três da tarde, romancista das três às nove, Marsé legendou a entrevista que outro juveníssimo Vázquez Montalbán lhe fez em dezembro de 1960 no falangista Solidaridad Nacional após ser finalista do Biblioteca Breve com Encerrados Con Un Solo Juguete, a mais autobiográfica de suas obras junto com o já tardio Caligrafia dos Sonhos (Alfaguara Brasil). Ali começaria uma nova vida, “estando mais que sendo” nesse grupo e em seu rumo social natural, o movimento Gauche Divine [”A Esquerda Divina, em francês] e sua emblemática sala Bocaccio, de cuja revista acabaria sendo redator-chefe, como também seria da revista Por Favor, um dos atores-chave da Transição.

Gil de Biedma seria seu melhor amigo e Pigmaleão: sugeriu que ele fosse a Paris (onde arranjaria emprego num laboratório do Instituto Pasteur e abandonaria oficialmente seu nome de nascimento, Juan Faneca Roca), fez a correção do manuscrito e lhe deu de presente as citações literárias que abrem os capítulos de Últimas Tardes com Teresa (1966), o mais icônico dos romances de Marsé, e as peripécias de Pijoaparte, um pequeno marginal, para impressionar uma jovem rica da burguesia catalã. Também lhe sugeriu o título de Si Te Dicen Que Caí (1973), com o qual obteve o Prêmio México de Romance após ter problemas de censura na Espanha.

A carreira de romancista de Marsé, que acabaria com 13 títulos e cerca de 30 livros no total, logo seria aclamada pela crítica e causaria sensação entre o público com La Muchacha de Las Bragas de Oro, prêmio Planeta 1978, obra que teve seu contraponto literário com uma de suas obras maiores, Un Día VolveréRonda del Guinardó (1984, prêmio Cidade de Barcelona), El Amante Bilingüe (1990, prêmio Ateneo de Sevilla), El Embrujo de Shanghai (1993) e Rabos de Lagartija (2000, prêmios da Crítica e Nacional de Narrativa) foram alguns dos grandes títulos de um trabalhador incansável, que se levantava às 8:30 da manhã, tomava café e começava a escrever, revisando uma e outra vez os manuscritos, que corrigia numa mesa repleta de esferográficas e canetas-tinteiro (“cada vez sou mais detalhista e chato com o que escrevo”, dizia), que em 1962 publicou Esta Cara de la Luna, que nunca mais quis editar, buscando em sua escrita de ressaibo impressionista uma fluidez e uma naturalidade infinitamente trabalhadas. Depois, pausa para ler as notícias, com as quais afiava sua proverbial capacidade crítica, de uma acidez exemplar, como ficou demonstrado na maioria de seus retratos de Señoras y Señores: um prodígio literário, uma chuva de dardos.
Cela (“sua prosa é empolada demais”), Umbral, Baltasar Porcel (”a melhor escrita catalã depois de Carmen de Lirio), Juan e Luis Goytisolo (pela polêmica da concessão do Biblioteca Breve a Últimas Tardes com Teresa) e muitos diretores de cinema (nunca gostaram das adaptações de suas obras) foram algumas de suas vítimas em duelos literários que nunca recusou, independente que era até o extremo de abandonar um júri do Prêmio Planeta 2005 devido à baixa qualidade das obras apresentadas. Tinha ainda menos papas na língua com os políticos, sobretudo os nacionalistas, o que lhe deixou —“felizmente” segundo dizia— à margem da cultura catalã oficial. Uma das batalhas veio da guerra pela língua e o bilinguismo. “Acho [o castelhano] mais confortável e, claro, me expresso melhor com ele. Não conheço o catalão o suficiente para escrever”, confessou a Crusat já em 1960, quando recebeu ofertas para traduzir alguns de seus contos ao catalão. Até Montserrat Roig quis encontrá-lo para saber “com certeza a que cultura” pertencia.
Mas Marsé foi sempre muito crítico em relação à burguesia catalã (“ele a despiu”, diz a escritora e amiga Maruja Torres no Twitter) e ao nacionalismo, como refletiu em artigos, mas também em sua obra (no próprio Últimas Tardes com Teresa, em La Oscura Historia de La Prima Montse, El Amante Bilingüe… ). Um desencontro que teve seu apogeu em 2007, quando a literatura catalã foi a convidada de honra na Feira de Frankfurt e o Governo regional pediu aos grandes autores catalães em língua castelhana que estivessem presentes para apoiar as letras em catalão. “Ir lá só para abrir o show me parece o cúmulo”, respondeu.
Mas quem dizia isso era alguém que sempre foi bilíngue com naturalidade extrema: com Gil de Biedma falava em castelhano, e também com sua mulher, Joaquina, e sua filha, Berta, do mesmo modo que conversava em catalão com Barral Barral, Gabriel Ferrater e com seu filho Sacha. “A língua que se impõe é a dos sonhos e das aventis”, declarou em seu discurso do Cervantes. Para não escrever em catalão, também havia uma questão prática. “Não quero jogar fora meus instrumentos em castelhano.” Em qualquer caso, nunca levantou bandeira de nenhum idioma.
Duas pontes de safena, em 1985 e 1999, e uma posterior insuficiência renal ajudaram a serenar o ardor combativo de um escritor que desmentia seu suposto desapego pela atualidade e sua falsa preguiça (“sinto que está muito próximo o fim dos meus neurônios”, se desculpava) publicando em 2011 seu décimo-terceiro romance, Caligrafia dos Sonhos (Alfaguara Brasil). E não faz nem cinco anos, veio a nouvelle Noticias Felices em Aviones de Papel, fragmento de um romance no qual trabalhou minuciosamente como sempre, e que dedicou, claro, a Crusat. “Desejo o sucesso por causa da minha família. Sou adotado e não desejo decepcioná-los em nada”, escreveu no final dos anos cinquenta para sua fada madrinha literária. Nem ele, nem suas aventis, jamais decepcionaram.
EL PAÍS


domingo, 19 de julho de 2020

As últimas notícias sobre o coronavírus e a crise política no Brasi

Coronavirus minuto a minuto: Brasil supera los 2 millones de casos ...

A CRISE DO CORONAVÍRUS

As últimas notícias sobre o coronavírus e a crise política no Brasil

Brasil registra 78.772 óbitos por covid-19 e 2.074.860 casos da doença. Cacique Raoni, que estava internado, é transferido de avião para UTI em Sinop, no Mato Grosso



São Paulo / Brasília - 18 JUL 2020 - 20:35 COT

O Brasil acumula 2.074.860 de infecções pelo novo coronavírus e 78.772 mortes confirmadas pela covid-19, de acordo com o Ministério da Saúde nesta sexta-feira, mantendo-se como o segundo país no mundo em número de óbitos e casos, atrás apenas dos Estados Unidos. Neste sábado, o estado de São Paulo registrou 19,6 mil óbitos e 412 mil casos de infecções pelo novo coronavírus. A Rússia se aproxima de 800.000 contaminados, enquanto a Alemanha tem conseguido reduzir o número de novas infecções. Na Espanha, novos surtos preocupam as autoridades, que estudam restringir novamente a circulação de pessoas.

O Estado de São Paulo registra 19,6 mil óbitos e 412 mil casos de coronavírus

O Estado de São Paulo registra, neste sábado, 19.647 óbitos por covid-19 e 412.027 mil casos confirmados do novo coronavírus. A taxa de ocupação das UTIs (unidades de terapia intensiva) é de 67% em todo o estado e de 65,3% na capital e região metropolitana.
O governo informa que 261.733 pessoas já se recuperaram da doença no estado, onde 636 dos 645 munícipios registraram pelo menos uma infecção e 428 cidades tiveram um ou mais óbitos provocados pela covid-19. 
Entre as vítimas fatais estão 11.354 homens e 8293 mulheres. Os óbitos continuam concentrados em pacientes com 60 anos ou mais, totalizando 74,6% das mortes, mas a mortalidade é maior entre 70 e 79 anos (4.841 óbitos). 

EL PAÍS



sexta-feira, 17 de julho de 2020

Morre Kelly Preston, atriz e esposa de John Travolta, aos 57 anos


Muere la actriz Kelly Preston - San Diego Union-Tribune en Español
Kelly Preston

Morre Kelly Preston, atriz e esposa de John Travolta, aos 57 anos

Atriz passou os últimos dois anos lutando em silêncio contra um câncer de mama. Deixa dois filhos, além do marido e familiares


13 JUL 2020



A atriz norte-americana Kelly Preston, de 57 anos, esposa do ator John Travolta, morreu neste domingo em decorrência de um câncer de mama que enfrentava há dois anos. “Na manhã de 12 de julho de 2020, Kelly Preston, adorada esposa e mãe, faleceu depois de uma batalha de dois anos contra o câncer de mama”, disse um representante da família à revista People. “Optando por manter sua luta de forma privada, ela recebeu tratamento médico por algum tempo, com o apoio de sua família e amigos mais próximos”, informou o assessor. “Era uma alma brilhante, bela e amorosa, que se preocupava profundamente com os outros e dava vida a tudo que tocava. Sua família pede que compreendam sua necessidade de privacidade neste momento.”


Kelly Preston deixa os filhos com o ator: Ella, de 20 anos, e Benjamin, de 9. Ela e Travolta também Jett, que morreu aos 16 anos, em janeiro de 2009.

Preston nasceu com o nome de Kelly Kamalelehua Smith em 13 de outubro de 1962, em Honolulu, Havaí. Estudou atuação na Universidade do Sul da Califórnia e conseguiu seu primeiro papel importante em 1985, na comédia A Primeira Transa de Jonathan, depois de vários papéis menores em programas de televisão, incluindo Por Amor e Honra.

Nos anos seguintes, protagonizou filmes como Space Camp – Aventuras no Espaço (1986), Irmãos Gêmeos (1988), Jerry Maguire (1996) e Por Amor (1999). Também se destaca sua participação em Gotti, de 2018, interpretando Victoria Gotti, a esposa do chefe mafioso John Gotti. Foi seu último papel.

Na véspera de Ano Novo de 1991, Travolta lhe propôs casamento no restaurante do Palace Hotel de Gstaad, na Suíça, com uma aliança de diamantes amarelos e brancos de seis quilates. Quando se casaram, em 5 de setembro de 1991, Preston estava grávida de dois meses de seu filho Jett. O casal depois se casou pela segunda vez em território norte-americano, em Daytona Beach, na Flórida.

Os atores se conheceram nos testes de elenco para o filme The Experts, em 1987. Naquela época, Kelly Preston acabava de se divorciar de seu primeiro marido, o ator Kevin Gage, e ainda não tinha uma carreira destacada. Já Travolta, sem relacionamento amoroso conhecido, e apesar de ter títulos e personagens célebres em seu currículo, passava por um de seus momentos mais baixos. “De repente o vi surgir, do outro lado da sala, andando na minha direção com aquela atitude, com seus dois cachorros… e pensei: ‘Pronto’”. Assim Kelly Preston descreveu aquela paixão à primeira vista, sentada num quarto de hotel em Cannes, numa entrevista a este jornal.


Em setembro passado, Travolta e Preston comemoraram 28 anos de casados. “Feliz aniversário para minha maravilhosa esposa ♥ @therealkellypreston”, escreveu no Instagram o ator.

Preston também deixou um recado público para o marido: “Para meu querido Johnny, o homem mais maravilhoso que conheço. Você me deu esperança quando me senti perdida, me amou com paciência e incondicionalmente... Fez-me rir mais forte que qualquer outro ser humano. É um sonho, Daddio, e você torna a vida muito divertida! Confio no meu amor com você para sempre... Com você sei que sempre estarei bem, aconteça o que acontecer... Adoro você sempre e para sempre. Feliz 28º aniversário, @johntravolta”.EL PAÍS


terça-feira, 14 de julho de 2020

A feminista Susan Sontag contra Norman Mailer


Susan Sontag em sua casa em 1979
Susan Sontag em sua casa em 1979LYNN GILBERT

A feminista Susan Sontag contra Norman Mailer

A carreira da intelectual decolou quando estourava o movimento de libertação das mulheres É o que o mostra trecho do livro 'Afiadas. As mulheres que fizeram da opinião uma arte'



Michelle Dean
11 mar 2019



É difícil exagerar quanto do que foi escrito sobre Sontag concerne à sua aparência. Mesmo nos ensaios mais consistentes aparece algum comentário a respeito. Os rios de tinta gastos nessa questão podem ser resumidos da seguinte forma: Sontag era extremamente bonita. No entanto, acho que ela tinha uma relação com a beleza mais complicada do que o deslumbre de seu público e a elegância de suas fotos sugeriam. Suas anotações são cheias de exortações a tomar mais banho; alguns contemporâneos diziam que com frequência estava despenteada, em geral com o cabelo puxado para o lado de modo desleixado, sem estilo. Isso acontecia também em aparições na mídia: em uma entrevista, seu cabelo descuidado e a falta de maquiagem contrastavam fortemente com o penteado impecável da cineasta Agnès Varda.

Sontag se vestia apenas de preto, estratégia-padrão daqueles que não querem ter de pensar em roupas. Já com certa idade, era sabido que ela levantava a blusa e mostrava para as pessoas as cicatrizes de suas cirurgias. Embora pessoas atraentes muitas vezes tenham o privilégio de não ter de pensar em sua própria aparência, havia algo de genuíno e espontâneo na indiferença de Sontag. Embora apreciasse que sua aparência lhe abrisse espaços, para ela a questão não ia além disso.

Desde o começo Sontag se preocupava com a imagem que seus editores estavam tentando projetar. As fotos começaram a eclipsar a autora. Uma editora inglesa ofereceu lançar uma edição limitada de Contra a interpretação apresentando reproduções de fotos de Rauschenberg. Sontag vetou a ideia: "Será esse o tipo de ocasião ultrachique — eu e Rauschenberg — que tende a ser publicado na LIFE e na TIME + que vai confirmar minha imagem como a garota “que tem tudo”, a nova Mary McCarthy, rainha do McLuhanismo + camp que estou tentando eliminar?"

Afortunada ou desafortunadamente, a resistência de Sontag ao seu status não prevaleceu. Suas entrevistas reafirmavam os comentários sarcásticos de que teria se tornado “a Natalie Wood da vanguarda dos Estados Unidos”. (...)


A intelectualidade de Nova York olhava para a fervilhante e caótica energia do movimento com repulsa


De súbito, Sontag também começou a falar mais livremente sobre feminismo e o movimento das mulheres. Sua carreira estava decolando quando os expoentes da segunda geração feminista começaram a aparecer, no fim dos anos 1960. Como movimento organizado, o feminismo estivera dormente por quase quarenta anos. A energia das sufragistas havia sido esmagada pelo novo comportamento hedonista das mulheres, como veriam os historiadores: uma vez que o voto feminino estava assegurado, as jovens em particular tinham dificuldades em se relacionar com as lutas de suas predecessoras. Isso significava que não perguntavam a uma escritora — como é comum hoje — se ela era ou não “feminista”. Parker e West haviam ambas declarado sua simpatia pelo movimento sufragista, mas as feministas exigiram pouco delas. Para McCarthy e Arendt, não havia maiores questionamentos sobre seu envolvimento, como escritoras, em qualquer tipo de movimento feminista organizado, porque eles não existiam durante a maior parte de suas carreiras.

Mas no início dos anos 1970, quando Sontag ascendia como a mais proeminente intelectual, o movimento feminista estava explodindo, com marchas, comícios e coletivos despontando por toda parte, especialmente na cidade de Nova York. O Mulheres Radicais de Nova York, um coletivo formado, entre outras, pela crítica e jornalista Ellen Willis, se destacava. Círculos de conscientização estavam em voga e, gradualmente, com o debate começando a dominar a mídia, era esperado que Sontag declarasse algum tipo de fidelidade.

A intelectualidade de Nova York olhava para a fervilhante e caótica energia do movimento com repulsa. Não conseguia entendê-lo. Consideravam-no no máximo vulgar. Foi então que Sontag começou a demonstrar sua contrariedade, não muito distinta daquela demonstrada pela escritora que “nunca foi importante para ela”, Mary McCarthy. Ela abraçou o movimento plenamente e com mais liberdade que qualquer outro membro dos quadros da Partisan Review e da New York Review of Books.



Sontag falou abertamente como simpatizante feminista em 1971. Ela compareceu a um painel feminista organizado na prefeitura em desagravo ao artigo desdenhoso ao movimento publicado por Norman Mailer na Harper’s, intitulado “O prisioneiro do sexo”. Como um garoto de escola, mesmo que aos 48 anos, Mailer ainda tentava atrair a atenção das mulheres desferindo insultos contra elas. O ensaio o lançou em uma contenda com as principais figuras do movimento feminista, cujo nível de atratividade ele nunca deixou de avaliar enquanto as ofendia e proferia suas ideias. Durante suas viagens, chamou Kate Millett — uma proeminente crítica feminista e autora do polêmico Política sexual — de “vaca enfadonha”. E chamou Bella Abzug, advogada e futuramente deputada, de “machado de guerra”.

Sontag estava assistindo ao painel aquela noite. Ela se levantou com uma questão para Mailer. “Norman, é verdade que você fala com as mulheres de uma forma que, com a maior boa vontade, elas consideram paternalista”, disse calmamente, sem nenhum tom autoritário. “Uma das coisas é seu uso de ‘mulher’ como adjetivo. Não gosto de ser chamada de ‘escritora mulher’, Norman. Sei que parece uma cortesia para você, mas não parece certo para nós. É um pouco melhor ser chamada apenas de escritora. Não sei por quê, mas você entende que as palavras importam. Somos escritores, entendemos isso.”

Mais tarde, Sontag deu uma longa entrevista à Vogue em que insistiu que havia sentido os efeitos da discriminação em sua vida de escritora. O entrevistador tentou dizer que tinha a impressão, até aquela noite, de que ela “compartilhava do desdém de Mailer por intelectuais mulheres”. "De onde tirou essa ideia? Metade das pessoas inteligentes que conheci são mulheres. Eu não poderia ser mais simpática aos problemas das mulheres ou ficar mais irritada com sua condição. Mas essa raiva é tão antiga que no dia a dia não a sinto. Me parece a história mais antiga do mundo."

Para reforçar sua posição, Sontag publicou de imediato um ensaio na Partisan Review, originalmente destinado à incipiente iniciativa da revista Ms. Mas o novo empreendimento de Gloria Steinem — a revista — achou o ensaio muito didático, de modo que ele foi direcionado aos “rapazes” e publicado com o título “O terceiro mundo das mulheres”. Entre as recomendações no ensaio estava a de que elas deveriam se engajar em revolta direta contra o patriarcado: “Devem assobiar para os homens na rua, invadir concursos de beleza, fazer piquetes contra fabricantes de brinquedos sexistas, se converter em grandes números ao lesbianismo militante, providenciar aconselhamento feminista ao divórcio, criar centros de remoção de maquiagem, adotar o sobrenome de suas mães”. No ensaio, ela parecia fazer um desabafo; foi a única vez em que abraçaria diretamente o feminismo em sua produção intelectual.



Michelle Dean é crítica e jornalista. Este extrato é parte de seu livro Afiadas. As mulheres que fizeram da opinião uma arte, publicado em português pela editora Todavia em 2018. Tradução de Bernardo Ajzenberg

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Gabriel García Márquez / O segredo de uma boa velhice

Gabriel García Márquez, el realismo mágico y la literatura ...

Gabriel García Márquez
O SEGREDO DE UMA BOA VELHICE


O segredo de uma boa velhice nada mais é do que um pacto honesto com a solidão.


Gabriel García Márquez
Cem Anos de Solidão

quinta-feira, 9 de julho de 2020

A entrevista póstuma de George Steiner / “Faltou-me coragem para criar”



George Steiner na porta de sua casa em Cambridge, em 2016.
George Steiner na porta de sua casa em Cambridge, em 2016.ANTONIO OLMOS

A entrevista póstuma de George Steiner

“Faltou-me coragem para criar”

O grande crítico literário, que morreu na segunda-feira, conversou ao longo dos anos com o ensaísta italiano sob a condição de que as confissões viessem à luz no dia seguinte à sua morte



Nuccio Ordine
6 FEB 2020



“O segredo de uma boa velhice nada mais é do que um pacto honesto com a solidão”; não pude deixar de pensar nessa maravilhosa reflexão de Gabriel García Márquez quando soube do desaparecimento de George Steiner. Morreu na segunda-feira, às 14h, por complicações de uma febre aguda em sua casa em Barrow Road, em Cambridge. A última vez que falamos foi no sábado passado, por telefone, e ele me confidenciou com uma voz muito rouca: “Não aguento mais o cansaço da fraqueza e da doença”.

Assim, Steiner, um dos críticos literários mais agudos e importantes do século XX, viveu os últimos anos de sua vida longe do foco de atenção, dos meios de comunicação, dos congressos e conferências, de qualquer evento público. Tive o privilégio de estar com ele também nesta última fase de isolamento voluntário.

Depois de mais de vinte anos de encontros em Paris, na Itália e em outras cidades europeias, os telefonemas mensais e a visita anual a Cambridge tornaram-se um ritual. Mas o último encontro, marcado para 14 de junho de 2018, não foi sucedido por nenhum outro: um dia antes George o cancelou porque não estava bem e não queria se mostrar cansado e desanimado. Foi em uma dessas reuniões (em 21 de janeiro de 2014, há exatamente seis anos) que ocorreu a Steiner conceder-me uma entrevista póstuma: reunir algumas de suas reflexões e não publicá-las até o dia seguinte ao seu desaparecimento. Uma maneira discreta de romper o silêncio e se despedir dos amigos, alunos e numerosos leitores.

Voltou a este texto no ano passado, modificando algumas palavras aqui e ali e me pedindo para reescrever algumas frases. Quem sabe quantos aspectos desconhecidos de sua vida e seu pensamento virão à luz em 2050, quando for possível estudar as centenas de “cartas autobiográficas” agora lacradas nos arquivos do Churchill College de Cambridge.

Agora que ele se foi ―seu filho David me deu a notícia―, além da profunda dor pela perda de um amigo querido e de um verdadeiro mestre, nem quatro meses depois do desaparecimento de Harold Bloom, noto mais claramente as consequências desse silêncio forçado e o vazio intransponível que deixa entre os defensores dos clássicos e da literatura. Penso em seus livros, em seu conhecimento enciclopédico incentivado por uma curiosidade surpreendente. E penso, principalmente, em sua paixão pelo ensino, em sua capacidade de compartilhar o amor pela literatura e pelo conhecimento com os alunos e o público.

George não se destacou somente na palavra escrita. Também foi um grande orador: sua eloquência elegante foi capaz de inflamar alunos e colegas.

Pergunta. Qual é o segredo mais importante que deseja revelar nesta entrevista póstuma?

Resposta. Posso dizer que durante 36 anos enviei a uma interlocutora (seu nome deve permanecer em segredo) centenas de cartas que representam meu “diário”, nas quais contei a parte mais representativa da minha vida e os eventos que marcaram meu cotidiano. Nessa correspondência falei sobre os encontros que tive, as viagens, os livros que li e escrevi, as conferências e também os episódios normais e comuns. É um “diário compartilhado” com minha destinatária, no qual é possível encontrar inclusive meus sentimentos mais íntimos e minhas reflexões estéticas e políticas. Será conservado em Cambridge, em um arquivo do Churchill College, juntamente com outras cartas e documentos que testemunham as etapas de uma vida talvez demasiado longa. Essas cartas-diário, em particular, serão lacradas e só poderão ser consultadas depois de 2050, ou seja, depois da morte de minha esposa e (talvez) de meus filhos. Em resumo, serão tornadas públicas somente quando muitas pessoas próximas a mim já não estiverem aqui. Alguém vai lê-las depois de tanto tempo? Não sei. Mas eu não poderia fazê-lo de outra maneira...

P. Por que uma entrevista póstuma?

R. A ideia sempre me fascinou. Algo que será tornado público precisamente quando eu não puder mais ler sobre isso nos jornais. Uma mensagem para aqueles que ficam e uma maneira de me despedir deixando que ouçam minhas últimas palavras. Uma ocasião para refletir e fazer um balanço. Cheguei a uma idade em que cada dia mais ou menos normal deve ser considerado um valor agregado, um presente que a vida te dá.

Nesta fase as lembranças do passado se tornam o único e verdadeiro futuro interior. É uma viagem para trás baseada na memória, o que nos permite alimentar algumas esperanças. Não dispomos das palavras exatas para definir a lembrança que o amanhã encerra em si. Estou em um momento da minha vida em que o passado, os lugares que frequentei, as amizades que tive, a impossibilidade de ver as pessoas que amei e que continuo amando e até a relação com você constituem o horizonte do meu futuro mais do que pode ser o futuro real.
P. Você se recrimina por algo em particular?

R. Claro. Por mais de uma coisa. Escrevi um pequeno livro, Errata, no qual falo dos erros que cometi. Não consegui captar alguns fenômenos essenciais da modernidade. Minha educação clássica, meu temperamento e minha carreira acadêmica não me permitiram compreender completamente a importância de certos grandes movimentos modernos. Não entendi, por exemplo, que o cinema, como nova forma de expressão, poderia revelar talentos criativos e novas visões melhor do que outras formas mais antigas, como a literatura e o teatro. Não compreendi o movimento contra a razão, o grande irracionalismo da desconstrução e, em alguns aspectos, do pós-estruturalismo. Deveria ter percebido que o movimento feminista, que apoiei em Cambridge com grande convicção ao reconhecer a importância do papel da mulher, mais tarde assumiria, na luta para ocupar um lugar dominante em nossa cultura, uma função política e humana extraordinária.

P. No âmbito pessoal, que erros cometeu?

R. Essencialmente, deveria ter tido a coragem de me provar na literatura “criativa”. Quando jovem, escrevi histórias e também versos. Mas não quis assumir o risco transcendente de experimentar algo novo nessa área, que me apaixona. Crítico, leitor, erudito, professor, são profissões que amo profundamente e que vale a pena exercer bem. Mas é completamente diferente da grande aventura da “criação”, da poesia, de produzir novas formas. E, provavelmente, é melhor fracassar na tentativa de criar do que ter algum sucesso no papel de “parasita”, como gosto de definir o crítico que vive de costas para a literatura. É claro que os críticos (já enfatizei isso várias vezes) também têm uma função importante; tentei lançar, às vezes com sucesso, alguns trabalhos e defendi os autores que acreditava que mereciam meu apoio. Mas não é a mesma coisa. A distância entre aqueles que criam literatura e aqueles que a comentam é enorme; uma distância ontológica (para usar uma palavra pomposa), uma distância do ser. Meus colegas universitários nunca me perdoaram que eu apoiasse essas teses; muitos barões e certa crítica estritamente acadêmica não aceitaram que eu zombasse de sua presunção de serem, às vezes, mais importantes do que os autores dos quais estavam falando...

P. A quem deseja enviar uma mensagem?

R. Penso em alguns alunos, mais brilhantes que eu, que estão concluindo trabalhos importantes; o sucesso deles é uma grande recompensa para mim. Penso com profunda gratidão em alguns dos meus colegas que me acompanharam no caminho acadêmico. E penso, principalmente, em pessoas mais íntimas, como você, que entenderam o que tentei fazer e graças a elas pude viver uma intensa aventura intelectual e emocional. Mas, neste momento, sobretudo, tento entender por que a distância que me separa do irracionalismo moderno e, ouso dizer, da crescente barbárie dos meios de comunicação, da vulgaridade dominante, é cada vez maior. Acredito que estamos atravessando um período cada vez mais difícil...

P. O que mais te fez sofrer?

R. Me fez sofrer o fato de ser consciente de ter publicado ensaios que teria gostado de escrever melhor. É claro que há páginas do meu trabalho que defendi e defendo com convicção, e também com amargura. Mas sei que provavelmente não era isso o que teria gostado de escrever. E muitas vezes penso na injustiça do grande talento: ninguém entende como surgem esses dons supremos e como são distribuídos. Penso em um garoto de cinco anos e meio que desenha um aqueduto romano perto de Berna e então, de repente, representa um pilar com sapatos; desde então, graças a Paul Klee, esse é o nome dele, os aquedutos caminham por todo o mundo. Ninguém pode explicar as sinapses neurológicas que podem desencadear em um garoto essa “paixão” pela metamorfose, essa brilhante intuição que muda a realidade. Pensei que era uma injustiça que pudéssemos tentar, tentar novamente, nos esforçarmos de novo, só para podermos permanecer na esteira dos adultos, mas sem alcançá-los, porque são diferentes de nós.

P. E o que te fez mais feliz?

R. A felicidade de ter ensinado e vivido em muitos idiomas. A felicidade que tentei cultivar todos os dias, até o fim, tirando da minha biblioteca um poema para traduzi-lo nos meus quatro idiomas (francês, inglês, alemão e italiano). E, embora não tenha traduzido bem, tenho a impressão de ter deixado entrar um raio de sol no meu cotidiano.

P. Que desejos não pôde cumprir?

R. Muitíssimos: viagens que não ousei fazer, livros que queria escrever e que não escrevi, principalmente encontros cruciais que evitei por falta de coragem, disponibilidade ou energia. Poderia ter conhecido, por exemplo, Martin Heidegger, mas não me atrevi. E acredito que tinha razão. Sempre respeitei um princípio: não há necessidade de importunar os adultos, eles têm outras coisas para fazer. Além disso, nunca suportei aqueles que se consideram importantes porque colecionam encontros com grandes nomes. As pessoas excelentes têm o direito de escolher com quais interlocutores querem “perder” seu tempo. Então acontece que um dia, ao abrir livros de memória, se leem frases como: “Me importunou o senhor X, que insistiu em se reunir comigo, mas não tinha nada interessante a dizer”. Sempre tive medo de cair no erro grosseiro. Penso em Jean-Paul Sartre, por exemplo, especialista em revelar circunstâncias ligadas a “chatos” famosos. E tive dificuldade em renunciar, nos últimos tempos, à companhia de um cachorro. Depois da morte de Muz, percebi que, na minha idade, era muito arriscado ter outro. Adoro esses animais, mas no limiar dos 90 anos parece terrível oferecer-lhe uma casa para deixá-lo sozinho.

P. Qual é a vitória mais bela?

R. Insistir na ideia de que a Europa continua sendo uma necessidade importantíssima e que, apesar das ameaças e dos muros que se constroem, não devemos abandonar o sonho europeu. Sou antissionista (postura que me custou muito, a ponto de não poder imaginar a possibilidade de viver em Israel) e detesto o nacionalismo militante. Mas agora que minha vida está chegando ao fim, há momentos em que penso: talvez me equivoquei? Não teria sido melhor lutar contra o chauvinismo e o militarismo vivendo em Jerusalém? Eu tinha o direito de criticar, confortavelmente sentado no sofá da minha bela casa de Cambridge? Fui arrogante quando, do estrangeiro, tentei explicar às pessoas em perigo de morte como deveriam ter se comportado?

P. Você se lembra de ter chorado em sua vida?

R. Claro. Nos últimos tempos, muitas vezes me lembro de circunstâncias particulares. Penso, por exemplo, em grandes experiências humanas que terminaram sem que eu tivesse previsto o final. O desaparecimento repentino de algumas pessoas que você nunca mais verá. Ou lugares que você não visitou e que já não poderá visitar. E também penso em mais coisas, simples, talvez banais: peixe e alimentos que você já não poderá experimentar. E, às vezes, encontrar na esquina de uma rua ou em um jardim a sombra de uma pessoa que você ama e de que precisa enormemente, mas que sabe que já nunca poderá alcançar.

P. Qual a importância que a amizade teve em sua vida?

R. Uma importância enorme. Ninguém sabe melhor que você. Eu teria vivido muito mal minhas últimas décadas sem você e sem outros dois ou três amigos com quem troquei uma correspondência abundante, interlocutores notáveis com os quais compartilhei uma profunda intimidade afetiva. Talvez a amizade seja mais valiosa que o amor. Defendo esta tese porque a amizade não tem nada do egoísmo do desejo carnal. A amizade, a autêntica amizade, se baseia em um princípio que Montaigne, em uma tentativa de explicar sua relação com Etienne de la Boétie, condensou em uma frase belíssima: “Porque era ele; porque era eu”.


P. E o amor?

R. O amor teve muitíssima importância, talvez demasiada. Em primeiro lugar, a felicidade que meu casamento me deu e que não posso explicar com palavras, racionalmente. E depois um ou dois encontros que foram decisivos na minha vida. Acredito que, potencialmente, as mulheres têm uma sensibilidade superior à dos homens. Tive o enorme privilégio de ter relações amorosas em diferentes línguas (escrevi bastante sobre esse assunto). O donjuanismo poliglota foi uma enorme recompensa para mim, uma oportunidade de viver múltiplas vidas. E é curioso que nem a psicologia nem a linguística nunca tenham se ocupado desse fenômeno apaixonante. Por isso, em Depois de Babel cunhei uma definição original da tradução simultânea como um bom orgasmo. Sempre considerei como assunto capital o fenômeno das palavras e dos silêncios em relação com o erotismo.

P. Pensa alguma vez na morte?

R. Continuamente. Mas não só agora; também quando era jovem. Cresci à sombra da ameaça hitleriana e lembro perfeitamente que os únicos sobreviventes da minha turma na escola foram um colega e eu. Meu pai e a vida me prepararam para enfrentar a perda e o perigo da morte. Agora penso que o encontro com a morte talvez seja interessante; talvez se revele como uma maneira de entender melhor muitas coisas.

P. Acredita que existe algo depois da morte?

R. Não. Estou convencido de que não haverá nada. Mas o momento da passagem pode ser muito interessante. Acho infantil a reação daqueles que, depois de ter pensado sempre no nada, na fase final da vida mudam e imaginam um “mundo” ultraterreno. Penso que não ter medo é uma questão de dignidade; não se deve perder o respeito pela razão, é preciso chamar as coisas claramente pelo nome. É verdade que se pode mudar a maneira de pensar. Tive a felicidade de viver sempre em contato com grandes cientistas e sei que todos os dias se aprendem coisas novas e se corrigem outras. Na ciência, isso é normal. Agora, acreditar em uma vida além é algo muito diferente.

P. Nesta entrevista póstuma você gostaria de pedir desculpas a alguém com quem brigou?

R. Sim, gostaria de me desculpar com uma pessoa cujo nome não posso dizer. Acredito que ele também preferiria permanecer no anonimato. Trata-se de um homem eminente, durante muito tempo amigo íntimo, com quem discuti por causa de um assunto estúpido. Uma frase mal escrita em uma carta fez explodir pelos ares nossa relação de anos. Aprendi muito com essa experiência; como às vezes um instante insignificante pode se transformar em um fato decisivo na vida. É um risco que corremos frequentemente. Um gesto sem importância, uma simples palavra, em um único segundo, pode causar verdadeiras tragédias. E agora, depois de tantos anos, gostaria de dizer ao meu amigo: “Venha, vamos comer juntos e rir do que aconteceu”. Mas, com muita dor, percebo que já não há mais tempo. É demasiado tarde.

P. No entanto, você é famoso por sua irascibilidade. Sempre foi um ponto fraco do seu caráter?

R. Sim, é verdade, mas não só na idade adulta. Lembro-me de que quando era criança me alterava por coisas pequenas, às vezes sem uma verdadeira razão. Essa maneira de me comportar criou muitas inimizades. Depois, com os anos, tive de aprender a me moderar. Mas também paguei um preço pela minha ironia, frequentemente muito mordaz e nem sempre bem recebida. E talvez a tristeza, resultado da consciência da minha mediocridade, tenha incomodado não poucas vezes meus interlocutores. Infelizmente, ao longo de tantos anos, colecionei muitas hostilidades e rompi muitas amizades. É triste reconhecer isso, mas é assim.

P. Você recebeu algum conselho que mudou sua vida?

R. É claro. Especialmente aqueles que minha mãe me deu com todo o seu amor. Devo a ela ter me incentivado a viver de maneira frutífera com minha deficiência. Quando era criança, para me fazer reagir em momentos de desespero, ela me dizia que a “dificuldade” era um “dom” divino. Além de me livrar do serviço militar, meu defeito me deu a oportunidade de aprender a melhorar, de tentar entender que, sem esforço, não se consegue nada na vida. Lembrei-me disso em diferentes circunstâncias. Uma das conquistas mais bonitas da minha existência foi quando consegui amarrar meus sapatos pela primeira vez com a mão paralisada.

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