sábado, 29 de janeiro de 2022

Idea Vilariño / Tudo é muito simples

 



Idea Vilariño
Tudo é muito simples

 

Tudo é muito simples muito
mais simples e ainda 
mesmo assim há momentos 
em que é muito para mim
em que não entendo
e não sei se rio às gargalhadas
ou se choro de medo
ou fico aqui sem choro
sem riso
em silêncio
assumindo minha vida
meu trânsito
meu tempo.





Idea Vilariño
Todo es muy simple

Todo es muy simple mucho
más simple y sin embargo
aun así hay momentos
en que es demasiado para mí
en que no entiendo
y no sé si reírme a carcajadas
o si llorar de miedo
o estarme aquí sin llanto
sin risas
en silencio
asumiendo mi vida
mi tránsito
mi tiempo.




sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

O enigma de Milan Kundera, o clássico fugidio

Milan Kundera


O enigma de Milan Kundera, o clássico fugidio

Dois livros investigam os mistérios do mestre tcheco, afastado da vida pública há décadas, e a relação que mantém com seu país, que esta semana concedeu-lhe sua maior glória literária, o Prêmio Kafka


Marc Bassets
Paris, 12 Jun 2021

Milan Kundera mora no centro de Paris, em um dos bairros da cidade, e talvez do mundo, com a maior concentração de jornalistas, editores e pessoas vinculadas ao mundo das letras. Aos 92 anos, sua saúde piorou, mas até pouco tempo tinha vida social. Era visto na rua e em restaurantes, e cultivava um amplo círculo de amigos e conhecidos.


O autor de A brincadeira, A insustentável leveza do ser e outros romances e ensaios que são clássicos da literatura contemporânea tinha tudo para estar sob os holofotes na rive gauche parisiense, onde vive há décadas com sua inseparável Vera. E ainda assim, por anos e anos, conseguiu escapar da exposição pública. Existem poucas fotos recentes dele. Mantém um controle rígido sobre suas obras publicadas e traduzidas. Resume sua biografia em duas frases: “Milan Kundera nasceu na antiga Tchecoslováquia. Em 1975, instalou-se na França”. O resto não importa: o que conta são os textos. Não dá entrevistas nem participa de eventos com câmeras e fotógrafos. 

Tampouco compareceu à Embaixada da França em Praga na quinta-feira, quando foi agraciado com o prestigioso Prêmio Franz Kafka, que antes tinham merecido Philip Roth, Margaret Atwood, Peter Handke e Eduardo Mendoza, entre outros. O prêmio foi recebido, em nome do escritor, pela tradutora de sua obra francesa para o tcheco, Anna Kareninova.


Um quarteto interpretou obras de Pavel Haas, professor de composição do jovem Kundera em sua cidade natal, Brno, que morreu em Auschwitz em 1944. Haas era o pai de sua primeira esposa, Olga Haas, “apagada do romance oficial”, escreve a jornalista francesa Ariane Chemin em À la recherche de Milan Kundera (Em busca de Milan Kundera), um dos livros recentes que investiga a vida de um autor que sempre considerou que sua biografia não tinha nenhum interesse.


A cerimônia não poderia ser mais kunderiana. Lá estava seu idolatrado Kafka, “o menos compreendido de todos os grandes escritores do século passado” que, como ele mesmo escreveu, “mistura o grave e o ligeiro, o cômico e o triste, o sentido e o absurdo”. Lá estava a ausência de Kundera, um dos últimos gigantes vivos das letras do século XX, um clássico fugidio. E lá estava também sua complexa relação com seu país natal —então Tchecoslováquia, agora República Tcheca, em seus romances a Boêmia e a Morávia estão presentes– uma relação um pouco mais distendida, mas não totalmente apaziguada.


A nostalgia impregna as últimas páginas do livro de Ariane Chemin, baseado em uma série de reportagens publicadas no Le Monde. “Em seu espírito”, escreve, “os Kundera estão em Brno, na Morávia”, embora continuem em Paris.


“As recordações voltam, talvez seja nostalgia, um movimento natural ao envelhecer”, diz o ensaísta Christian Salmon. Antes de ser autor de livros festejados como Storytelling: bewitching the modern mind (algo como enfeitiçando a mente moderna, em tradução livre), Salmon foi o braço direito de Kundera no legendário seminário de literatura que deu nos anos oitenta na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e é um bom amigo da família.


O momento para a reconciliação poderia ser propício, depois de décadas de desencontros. O regime comunista proibiu seus livros, expulsou-o do partido e espionou-o depois da Primavera de Praga, em 1968. Auxiliados por seus amigos intelectuais franceses, Milan e Vera foram para a França, primeiro para Rennes, na Bretanha e depois para a capital.


Após a Revolução de Veludo, em 1989, e a queda do bloco comunista, as coisas não se resolveram imediatamente. Kundera, cuja nacionalidade havia sido retirada pelo antigo regime, já era cidadão da França e adotou o francês como língua literária. Faltava-lhe o pedigree resistente do dramaturgo e pai da nova nação Vaclav Havel: tampouco ele o havia buscado, pois, uma vez na França, sentiu-se incomodado com o rótulo de dissidente e dedicou-se ao romance. Fugia dos holofotes e da imagem do intelectual midiático que dá opinião sobre tudo sem saber de nada. Se era um escritor comprometido, o era com sua arte.


“No fundo, Kundera pensa que a arte do romancista é antagônica ao lirismo, ou seja, a uma certa forma de se mostrar, que hoje se tornou dominante entre os autores que se vendem na imprensa ou nas redes sociais”, explica Salmon. “Ele pensa que o trabalho tem precedência em relação ao autor, porque o autor acaba reduzindo e simplificando a obra. Não é uma postura de eremita, mas de afastamento da vida pública e, sobretudo, da mídia. É uma espécie de afirmação de uma escolha: o romancista deve eclipsar-se por trás da obra”.

Com o tempo, os gestos entre Kundera e a República Tcheca se multiplicaram. Em 2007, ganhou o Prêmio Nacional de Literatura. Em 2018, o primeiro-ministro Andrej Babiš visitou-o em seu apartamento no VII distrito de Paris e alguns meses depois o embaixador restituiu-lhe a nacionalidade. Os Kundera doaram sua biblioteca e seus arquivos à cidade de Brno.


A normalização, no entanto, não foi concluída. A percepção de Kundera na República Tcheca e em outros países não é idêntica, segundo Jan Novák, autor de Kundera: Český život a doba (Kundera: sua vida e seus tempos tchecos), uma biografia de 900 páginas publicada em 2020. “Aqui as pessoas conhecem seu passado. No exterior ele pôde reescrever sua biografia”, diz Novák. “Acredito que é um grande escritor, mas é um personagem problemático.”


No prólogo do livro Novák põe em dúvida que a famosa alergia de Kundera ao gênero biográfico —e sua insistência em que o importante é a obra, não o autor— obedeça “a um postulado estético ou filosófico”. Afirma que “parece muito mais algo estritamente defensivo e calculado: Kundera não gosta de rever sua vida”. Segundo ele, esconde algo. O quê?


O passado stalinista

“Seu passado stalinista”, responde Novák. “No início dos anos cinquenta, era um poeta totalmente stalinista. Era um poderoso funcionário literário. E deixou a Tchecoslováquia com a bênção do Governo, com parte de sua biblioteca e em seu carro, ao contrário das pessoas expulsas depois da invasão russa de 1968. Em seus primeiros anos na França, comportava-se como um bom cidadão socialista tchecoslovaco”.


Novák aborda no livro o episódio que sempre ressurge quando se discute o passado de Kundera na Tchecoslováquia do pós-guerra. Em 2008, a revista Respekt revelou, depois de investigar nos arquivos da segurança do Estado, um documento que dava a entender que, em 1950, o jovem Kundera denunciou um opositor que acabou condenado a 22 anos de prisão. Kundera rompeu seu silêncio para negar a acusação.


Tudo isso pode ter esfriado a reconciliação. Ariane Chemin, que manteve contatos frequentes com a esposa do escritor para preparar suas reportagens e o livro, explica por telefone que há alguns anos os Kundera tinham o projeto de retornar ao seu país, “mas aconteceu essa história do arquivo e o artigo da Respekt, e isso impediu o retorno”. E é assim que Milan e Vera continuam em Paris, mas com a mente em outro lugar, sua velha pátria. “Estão em lugar nenhum”, diz Chemin. “É o lado trágico desta história.”


EL PAÍS


quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Cinco poemas para lembrar Maria Lúcia Alvim

A poeta Maria Lúcia Alvim, em imagem do seu último livro, 'Batendo passo'.
SEBASTIÃO ROCHA REIS 

Cinco poemas para lembrar Maria Lúcia Alvim

Poeta mineira, que lançou livros de inéditos em 2020 após hiato de 40 anos, morreu de covid-19 aos 88 anos

 

EL PAÍS

3 FEB 2021


A poeta mineira Maria Lúcia Alvim morreu nesta quarta-feira por complicações da covid-19 em Juiz de Fora, Minas Gerais. A autora tinha 88 anos e lançou, no ano passado, um livro de poemas inéditos após quatro décadas de hiato. Batendo Pasto (Relicário, 2020) foi planejado por Maria Lúcia Alvim como uma obra póstuma, mas Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck a convenceram a publicá-lo. Mineira de Araxá (1932), a poeta é irmã de outros dois nomes da poesia contemporânea e brasileira Francisco Alvim e Maria Ângela Alvim. “Estou adorando que os jovens se aproximem de mim e de minhas coisas. Quero que cheguem cada vez mais perto, a um palmo de distância de mim, para a gente poder se entender um pouquinho”, disse ela em entrevista à Tribuna de Minas sobre o lançamento do novo livro. “Estou adorando. Depois que você fica velho, fica se odiando. É horrível.” A seguir, Lígia Gonçalves Diniz, professora de literatura na UFMG e autora de Imaginação com presença: o corpo e seus afetos na experiência literária (UFPR, 2020), indica 5 poemas para lembrar a autora.


XIV

Quisera tanto que durasse

qualquer desejo em qualquer dia

que mesmo sendo em demasia

eu deles nunca me fartasse;

assim enquanto não houvesse

nada mais que vos sugerisse

então que a vida ressurgisse

e só desejos refizesse;

porque deixei vossa verdade

ó coisas já feitas de espera

quando sempre tudo soubera

tão cheio de realidade;

pois bem sei que ando consumida

mas por desejos que são vida.

(De XX Sonetos, 1959)


CARTÃO POSTAL

Repente de tarde. Plana. Ceifada.

Âncoras amortecem o peso e se liquefazem.

Apagam-se ruivos outeiros.


Dois namorados olham o mar.


Um pássaro de insólito voo

roçou-lhes o ombro.

— Seremos assim potentes?

E subitamente puseram-se

a ferir-se a ferir-se

a ferir-se

(De Coração incólume, 1968)


MÁGICO DESAFIO

Um filho não deveria

ser feito

para cumprir mandamentos, para

povoar

a solidária solidão de pares amorosos, improvisados e mesmo contrafeitos —

o filho, quando concebido

seria para

provar apenas isto: 

a matéria ou

mistério

ou vida

desafiando o pensamento.

(De Pose, 1968)


AQUAVIA

Como a fonte que jorra, ambivalente,

marejados de sono, navegamos —

que esse rio de amor e de abandono

seja leito comum para quem morre.

Impelidos à margem da corrente

sacudimos a tarja temporária -

e a alma se evapora: tarlatana

sobre a nossa nudez contraditória.

Na umidade do riso, no desejo

impreciso e profuso, pelo pranto

que no calor das órbitas poreja,

Ah, transidos de frio, patinamos

entre quiosques, domos e coretos

sem nada surpreender ou consumar.

(De Romanceiro de Dona Beja, 1979)


(SEM TÍTULO)

Manhã sem rusga

pequeno depósito de agrura na poça

exorbitei de alegria

a abóbada celeste não dá vazão

silos de silêncio

ó ser astral

o capim é minha grande reserva interior

a esperança

desleixo

(De Batendo pasto, 2020)


EL PAÍS







domingo, 23 de janeiro de 2022

Frantz Fanon / Um clássico para entender o colonialismo

 

O psiquiatra e filósofo social Frantz Fanon (1925-1961).

Frantz Fanon: um clássico para entender o colonialismo

O escritor martinicano ilustrou magistralmente o trauma colonial. Seis décadas após sua morte, recordamos sua obra e seu legado


OMER FREIXA
Buenos Aires - 

Em 6 de dezembro de 1961, o psiquiatra e intelectual martinicano Ibrahim Frantz Fanon sucumbia a uma impiedosa leucemia que abreviou sua vida no auge da sua produção acadêmica, com apenas 36 anos, e no ano de publicação de sua última obra, o clássico Os condenados da terra. O pensador marcou época a partir de seus escritos e morreu num momento-chave da história africana, o da chegada das independências, época da qual foi testemunha e protagonista ao militar na Frente de Libertação Nacional (FLN) durante a guerra pela emancipação da Argélia (1954-1962). Como psiquiatra, sua vivência foi fundamental para traçar o perfil das pessoas colonizadas, em um livro que se tornou referência obrigatória para os estudos sobre o colonialismo.


Colonialismo e alienação

Ao calor da guerra na Argélia, que já durava sete anos na época da escrita de Os condenados da terra, Fanon escreveu que a colonização sempre é um processo violento e que desumaniza o colonizado, negando-lhe seu passado, sua essência e seus valores. “O colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado de natureza”, opinava nas primeiras páginas de seu ensaio.


O sistema colonial constrói e perpetua estereótipos. Fanon os denunciou constantemente. Em 1961, argumentava que o opressor foi definido pelo colonizado como inimigo dos valores, desprovido destes, assim como de moral. A desumanização levou ao extremo de comparar o africano aos animais. “A linguagem do colono é uma linguagem zoológica”, acrescentou o psiquiatra.


Essas observações tinham aval no discurso científico da época. Neste campo, na França pré-1954, concluiu-se que o argelino era um criminoso nato, um homicida impulsivo e desumano, que matava por nada, e sempre roubava de modo violento. Inclusive algumas observações similares foram feitas na Tunísia e em Marrocos, com o que se concluiu o estereótipo de um criminoso norte-africano.


Fanon denunciou o conteúdo do ensino francês a respeito dos súditos a partir de teorias metropolitanas que os associavam à inferioridade e à agressividade. Em um destes estudos, o nativo norte-africano aparece como quase desprovido de córtex cerebral ou, em outro, o africano é comparado a um europeu lobotomizado. A conclusão, segundo vários especialistas franceses da época, era que a estrutura mental do africano o predispunha a ser quase um animal.


O autor de Os condenados da terra o definiu, em um marco de certa ambiguidade, como um ser encurralado. Por um lado, temeroso e até hostil ao opressor; por outra parte, o invejando, desejando ocupar seu lugar e até dormir em sua cama, possuindo a sua esposa. A cidade deste estava vedada ao nativo, a separação entre os dois mundos era uma realidade e, por essa distância e pela própria violência inerente do sistema, o colonizado vivia em um estado de tensão permanente.

O autor caribenho pensava nos colonizados como perseguidos que sonhavam em se tornar os perseguidores.

Tal tensão se manifestava no desejo de ultrapassar os limites que eram impostos sob ameaça ou coerção. Por isso, essas tensões eram sublimadas durante o sono: “São sonhos musculares, sonhos de ação, sonhos agressivos. Sonho que salto, que nado, que corro, que pulo. Sonho que rio às gargalhadas (...). Durante a colonização, o colonizado não deixa de se libertar entre as nove da noite e as seis da manhã”, sintetizou. Como o africano não descarregava sua violência contra o europeu, o fazia com seus semelhantes, através de lutas internas, ou da religião. Em estados de transe, esquecia sua condição de submissão, mesmo que por um momento. Não é casual que durante o colonialismo os hospitais estivessem saturados de indivíduos com a psique extremamente alterada.


Libertação e guerra

Se o colonialismo é violência pura, explicava Fanon, a resposta deveria ser igualmente violenta. Como aquele sistema se constrói pela força das armas, o submetido sabia que também por meio delas a sua hora chegaria. “O homem colonizado se liberta na e pela violência”, pregou o autor.

Se o colonialismo é violência pura, explicava Fanon, a resposta deveria ser igualmente violenta

Não há alternativa, argumenta ele em suas páginas. A nova sociedade deve nascer como resultado da violência e da luta armada revolucionária. Fanon recomendou constituir uma frente comum contra o opressor. O colonizado se viu encurralado pela miséria e pela fome que o empurraram cada vez mais para o ato desesperado da luta aberta e organizada. Foi o momento de penetrar na morada proibida do colonizador. “Progressivamente e de maneira imperceptível, a necessidade de um enfrentamento decisivo se torna urgente e é experimentada pela grande maioria do povo”, advertiu.


E o começo da libertação trouxe alívio. Seu início permitiu ao colonizado relaxar, a produção artística se tornou expressiva, e houve um revigoramento das expressões em geral, mais criatividade nas manifestações culturais e um ressurgimento da imaginação. Além disso, Fanon constatou que os crimes comuns praticamente desapareceram na Argélia a partir de 1954. Isso quer dizer que a agressividade do argelino foi superada através da libertação trazida pela guerra de independência.


A libertação, além da redenção do povo, o ator protagonista, também exigiu a expulsão do estrangeiro, processo consumado na Argélia a partir da independência, em 1962, por exemplo. Mas os problemas da organização do novo Estado logo surgiriam.


O povo primeiro

A luta armada é produto do povo, o parto de uma nova nação. Fanon evidenciou que a violência unificou o povo pressionando o regime colonial. Apesar das tentativas de divisão dos colonizadores, fomentando tribos e outros mecanismos, a violência na prática seria totalizadora e nacional, tendendo a eliminar o regionalismo e o tribalismo. Mas a unidade não terminava nestes pontos.

Cada colonizado armado é um pedaço vivo da nação

Em relação aos setores mais postergados, estes atores se recompuseram ao se integrar nos esforços da luta pela libertação nacional em nível individual, ao invadir, parafraseando o martinicano, a cidadela do colonizador. Portanto, reconhecendo que essa era a única forma, todos estes indivíduos foram unificados porque a luta lhes prometeu um horizonte reparador sob o guarda-chuva da construção de uma nação. Não obstante, também fragmentos destes grupos se alinharam com o opressor.


“Cada colonizado em armas é um pedaço vivo da nação”, celebrou o autor. O propósito era edificar uma nação para expulsar os intrusos. Mas a partida destes últimos não elucidou o panorama. A burguesia nacional assumiu as rédeas do poder uma vez produzida a descolonização, e pouca coisa mudou. A miséria voltou a se sobressair. Este novo grupo traiu o povo e se aliou aos atores externos, conduzindo ao neocolonialismo e mantendo afastadas as aspirações populares. Fanon denunciou a forma como esta burguesia perdeu seus ares renovadores e se transformou em instrumento do status quo prévio.


O autor de Pele negra, máscaras brancas (publicado no Brasil pela Ubu Editora) sustentou uma denúncia muito forte. Os países independizados, apontando para a descrição anterior, transformaram seus governos em ditaduras tribais, e não mais burguesas. “Esse partido que afirmava ser o servidor do povo, que pretendia favorecer o desenvolvimento do povo, desde que o poder colonial lhe entregou o país se apressa em conduzir o povo novamente à sua caverna”, aprofundou o intelectual. Em outras palavras, ele criticou que os partidos estivessem distantes do povo, das massas.

O político não deve ignorar que o futuro permanecerá fechado enquanto a consciência do povo for rudimentar, primária, opaca

Seu pedido urgente consistiu em voltar a estender pontes com tais massas, e que o povo fosse protagonista da luta armada e do processo final de transformação. Postulou a importância de que Governo e partido estivessem a serviço do povo. “O político não deve ignorar que o futuro permanecerá fechado enquanto a consciência do povo for rudimentar, primária, opaca”, arrematou.


Como escreveu o filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre no prólogo à obra do martinicano, o colonizado se cura da neurose colonial expulsando o colono pelas armas. Entretanto, de algum modo o neocolonialismo se perpetua, transcorridos 60 anos desde a publicação de Os condenados da terra. As ex-metrópoles não abandonaram totalmente a África, como supunha-se após a maior parte da libertação política continental na década de 1960. Ainda hoje, vários mecanismos submetem populações e governos africanos, como alertou e escreveu Frantz Fanon em 1961.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Paz Errázuriz / El infarto del alma

 

La joven editorial Esto es un cuerpo lanza su primer libro, 'El infarto del alma', su primera publicación de una colección de un proyecto con obras híbridas de fotografía y textos. 'El infarto del alma' reúne fotografías de Paz Errázuriz y la palabra de Diamela Eltit.


Las fotografías de Paz Errázuriz para el libro ‘El infarto del alma’

A las imágenes de la autora chilena le acompañaron los textos de la escritora Diamela Eltit en un volumen que se publica por primera vez en España



'El infarto del alma', una novedosa visión de los enfermos de un psiquiátrico en Putaendo (Chile), se publicó en este país en 1994 y ahora se edita en España por primera vez.

sábado, 1 de janeiro de 2022

Retratos do amor num manicômio / Remédio para a loucura


Uma das fotos de Paz Errázuriz para o livro ‘O infarto da alma’, com textos de Diamela Eltit.PAZ ERRÁZURIZ


Retratos do amor num manicômio: remédio para a loucura

‘O infarto da alma’ é um livro com fotos de Paz Errázuriz e textos de Diamela Eltit sobre os casais formados entre os internos de um asilo psiquiátrico chileno dos anos noventa. No Brasil, a obra foi publicada pelo Instituto Moreira Salles


Manuel Morales

7 Dezembro 2021


Posaram para a fotógrafa sorridentes. Alguns juntavam suas cabeças, outros davam as mãos ou se enlaçavam pela cintura, passavam um braço sobre o ombro do outro... Entretanto, em seus rostos, em seus olhos, notam-se os rastros da doença, dos tratamentos medicamentosos, dos eletrochoques… No começo da década de 1990, as chilenas Paz Errázuriz, fotógrafa, e Diamela Eltit, escritora, trabalharam juntas em um projeto: narrar, com imagens em preto e branco e em textos poéticos, como eram os casais de homens e mulheres que viviam e se amavam na instituição psiquiátrica Philippe Pinel, na cidade de Putaendo, no centro do Chile, a 200 quilômetros de Santiago. O resultado foi o livro El infarto del alma (O infarto da alma), publicado no Chile em 1994 e no Brasil pelo Instituto Moreira Salles.


Errázuriz (Santiago, 77 anos) conta por e-mail que naquele projeto teve “a liberdade à qual aspirava para fazer as fotos”. A sensação que recorda, por um lado, “é o desamparo do recinto”, mas por outro estabeleceu uma estreita relação com aquelas pessoas que frequentou por um longo período e que a chamavam carinhosamente de tia Paz, enquanto a beijavam e abraçavam. A instituição havia sido um sanatório para tuberculosos na década de 1940. Quando a vacinação derrotou essa doença, transformou-se, em 1968, num manicômio que recebia pacientes de diferentes instituições, muitos deles indigentes.


O princípio desta obra a quatro mãos está nas imagens feitas ao longo de quase dois anos por Errázuriz, uma magnífica fotógrafa que centra sua trajetória em personagens marginais da sociedade. A isso se somou a romancista e ensaísta Diamela Eltit (Santiago, 72 anos), ganhadora do Prêmio Nacional de Literatura do seu país em 2018: “Paz me comentou sobre as suas fotos, me convidou a escrever, e eu lhe propus não escrever sobre as fotos, mas sim que fizéssemos um livro duplo, por uma parte seu relato fotográfico, e por outra o meu relato literário”, diz, também por e-mail. “É um livro com discursos estéticos paralelos e, o mais importante, baseado em uma política da poética.”


A escritora acrescenta que, quando entrou naquele lugar, sentiu “que tinha que estar lá, que de uma maneira ou outra fazia parte”, embora já soubesse antes da existência do hospital e “da condição dos asilados e asiladas”. Resume isso numa passagem de seus textos: “Estou no manicômio por meu amor à palavra”.

O sanatório para doentes mentais de Putaendo (Chile).PAZ ERRÁZURIZ

No livro, chama a atenção o número de casais surgidos no sanatório e como eles expressam seu carinho e ternura. Pedro com Margarida, María com Ismael, Rosário com Juan, Carmen com Fernando… “Tantos apaixonados é algo que se entende pela quantidade de pacientes que havia”, acrescenta a fotógrafa, que se pergunta: “Será por acaso o amor uma forma de sobrevivência?”. De qualquer forma, considera que estas relações podiam ser “uma maneira de resistência à marginalidade”. Os homens e mulheres retratados em suas quase 40 fotos olham fixamente para a câmera, “desmontam o estereótipo do casal feliz, do casal de família bem formada”. Eltit, por sua vez, quis fazer “um livro diverso sobre o amor, para o qual confluíram diversos registros de escrita, textos que viajassem pelos gêneros sem barreira alguma”. O leitor se depara assim com um volume que é um diário de uma viagem, um ensaio, poesia, literatura epistolar… A escritora nos leva pelos diferentes e às vezes tortuosos caminhos que transita quem já esteve apaixonado: “O amor e seus complexos processos de inversões e decepções cunhadas sob a forma do ódio, da necessidade, da indiferença, do domínio, do esquecimento”.


A respeito de como se movia entre os internos, Errázuriz só observa que “sempre quiseram ser retratados, unidos”, e que quando viam as fotos “consideravam-nas como uma certidão de casamento, assim me diziam, agradecendo-me”. Certa vez, ela declarou que a maior satisfação daquele trabalho veio quando encontrou um ex-diretor da instituição que lhe disse que, “para os médicos, essas imagens abriram uma porta para olhar seus pacientes com mais dignidade”. O amor, associado tantas vezes à loucura, aqui ajudou doentes mentais. Sua companheira descreveu o esforço de Errázuriz: “Ela lhes dá de presente seu olhar fotográfico, a certeza de suas imagens. Quando captura suas poses, confirma para eles a relevância de suas figuras”.


Perguntada se aquelas pessoas tinham filhos, Eltit esclarece que “estavam esterilizadas, um procedimento que faziam no próprio hospital quando chegavam”. E na hora de decidir o título para o livro, a escritora —que acaba de ser premiada na Feira Internacional do Livro de Guadalajara (México)— relata que Errázuriz lhe contou por carta (Eltit vivia no México) que uma das internas lhe havia dito que estava ali porque “tinha tido um infarte na alma”. “Achei que esse era um título exato, e Paz estava de acordo. Então o título saiu lá de dentro.”

Outro casal retratado no livro ‘El infarto del alma’.PAZ ERRÁZURIZ


EL PAÍS