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quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Cinco autores contemporâneos que usam a Bíblia como matéria prima




Cinco autores contemporâneos que usam a Bíblia como matéria prima

Podemos nos empanturrar com romances, mas sempre restarão os textos sagrados


BERNA GONZÁLEZ HARBOUR
24 NOV 2015 - 13:44 COT


Não temam, escritores e leitores. Podemos nos empanturrar, nos saciar de romances policiais, históricos, de perdas, realistas, góticos ou açucarados, mas sempre nos restará a Bíblia como matéria-prima. Os velhos e novos testamento crescem nestes meses como o universo literário amplo no qual todos os registros são possíveis: amor, humor, crueldade, ciúme, dominação, machismo, irracionalidade, bondade, ridículo. Transcendência. Várias obras recentes mergulham e reescrevem à sua maneira, bastante salutar, alguns episódios. E sua atualidade é absoluta.

1. Erri De Luca se detém, em Las Santas del escándalo [As Santas do Escândalo] na figura de cinco mulheres aparentemente pouco exemplares: prostitutas, adúlteras ou uma grávida anterior ao casamento (já ouviram falar?). Elas nos ensinam que, no que se entende por pecado, pode haver também sabedoria, riqueza, uma entrega genial. “Estas mulheres vão de encontro às normas e ousam a transgressão. Não têm nenhum poder, nem classe, e, no entanto, governam o tempo”, afirma o autor. Ocorre que “a história sagrada tem muito menos preconceitos que a nossa história profana”. De Luca (Nápoles, 1950) descreve como Onan “derramou em terra” a sua semente para evitar a paternidade, o que acabou por dar o nome ao prazer solitário, ou Hurga em hebraico, para nos contar como os verbos têm sexo. Uma delícia.

2. Sergio Ramírez (Mesatepe, Nicarágua, 1942) reescreve em Sara (Alfaguara) esse personagem bíblico sob uma lógica atual. Sua Sara é uma mulher típica, dona de uma sabedoria popular que a faz duvidar de um Deus que impõe aos homens cortar o prepúcio com uma pedra ou que fala sem se mostrar. Chama-o de O Mago e desconfia de para onde está levando seu marido, capaz de amar a empregada enquanto a prostitui com o faraó. Sara é hilariante, sábia, sarcástica, uma espécie de A vida de Brian sob a forma de excelente literatura, e nos ensina que aqueles que acreditamos serem grandes têm mais falhas do que nos recordamos. Um livro para sempre.
Emmanuel Carrère
Poster de T.A.

3. Emmanuel Carrère. O autor (Paris, 1957) examina a fundo o Novo Testamento em El Reino [O Reino], em que mistura, mais uma vez, ficção, memórias, história e reflexões para contar o seu encontro e desencontro com o cristianismo. Um dos livros do ano.

4. Ricardo Menéndez Salmón. O autor, que recebeu recentemente o Prêmio Américas de melhor romance em espanhol de 2014, elegeu a infância de Jesus Cristo para investigar uma personalidade que certamente lhe foi negada. O protagonista perdeu seu filho e com ele o seu casamento, e se refugia na escrita. De suas mãos, surge uma busca peculiar das raízes de Jesus, o menino, envolvidas entre as sombras do nascimento de uma religião. Para Menéndez (Gijón, 1971), Niños en el Tiempo [Crianças no Tempo] é uma maneira de encarar a figura de Jesus Cristo sem os pressupostos conhecidos.

5. Amos Oz (Jerusalém, 1939) optou pela figura de Judas para reescrever esse episódio que considera “o Chernobil do antissemitismo cristão”. Judas é um romance surgido do louvável impulso de mudar a história. E esse é o fabuloso poder do clube dos escritores. Assim, não tenha medo.




sábado, 5 de agosto de 2017

Vargas Llosa / As ilusões perdidas


Fernando Vicente

As ilusões perdidas

‘Adeus rapazes’, a autobiografia de Sergio Ramírez, descreve o entusiasmo efêmero que suscitou a revolução sandinista e seu descalabro posterior


MARIO VARGAS LLOSA
5 AGO 2017 - 17:00 COT

Não havia lido a autobiografia de Sergio Ramírez, Adiós Muchachos – A História da Revolução Sandinista e Seus Protagonistas [Editora Record, 2011], e acabo de fazê-lo, comovido. É um livro sereno, muito bem escrito, exaltante em sua primeira metade e bastante triste na segunda. Conta a história da revolução sandinista, que em 1979 pôs fim à horrível dinastia dos Somoza na Nicarágua, uma das ditaduras mais corruptas e cruéis da história da América Latina, e na qual ele teve um papel importante, primeiro como conspirador e resistente, e depois no Governo presidido pelo comandante Daniel Ortega, no qual foi vice-presidente.
Foram muitos anos de luta, muito difíceis, de sacrifício e heroísmo, em que milhares de nicaraguenses perderam a vida e a liberdade, padeceram torturas, exílio, longos anos de prisão, enfrentando uma Guarda Nacional cuja selvageria não tinha limites. Os rebeldes eram, sobretudo no princípio, pessoas humildes, os pobres entre os mais pobres, mas logo se foram somando gente da classe média e, por fim, profissionais, empresários e agricultores, e principalmente seus filhos, movidos por um idealismo generoso, pela ideia de que, com a queda da ditadura, começaria um período de justiça, liberdade e progresso para o povo de Rubén Darío e de Augusto César Sandino. Muitas mulheres combateram na vanguarda desta revolução, assim como os católicos – a Nicarágua é talvez o país onde o catolicismo está mais vivo na América Latina –, e Ramírez descreve com muita propriedade as distintas correntes que formavam essa heterogênea aliança de comunistas, socialistas, democratas, liberais e castristas que respaldaram a revolução no princípio, antes que começassem as inevitáveis divisões.
As páginas de Adiós Muchachos que evocam o entusiasmo e a alegria com que a imensa maioria dos nicaraguenses viveu os primeiros tempos da revolução – as campanhas de alfabetização, a conversão de quartéis em escolas, a distribuição das terras e fábricas expropriadas dos Somoza e seus cúmplices aos setores de mais baixa renda – são emocionantes, o início do que parecia ser a grande transformação da Nicarágua em um país deveras livre, democrático e moderno.
Não foi assim, e Sergio Ramírez responsabiliza os “contras”, armados e financiados pela CIA, pelo fracasso da revolução sandinista. Tenho a impressão de que a contrarrevolução foi mais um efeito que uma causa, pelo descontentamento que se espalhou em um setor amplo da sociedade nicaraguense com a política equivocada do regime destinada a transformar o país em uma sociedade estatizada e coletivista, com as nacionalizações maciças e a criação de fazendas de camponeses no estilo soviético, e as emissões sem lastro que, ao invés de impulsionar, arruinaram a economia nacional e desencadearam uma inflação galopante, que, como sempre, golpeou sobretudo os mais pobres. A desordem e o caos, e, claro, a corrupção que tudo isso originou, a chamada piñata – a repartição dos bens e dinheiro supostamente públicos entre as pessoas do poder –, que Sergio Ramírez descreve magistralmente no capítulo de seu livro intitulado com humor ácido “Os rios de leite e mel”, tinham que desencantar e empurrar para a oposição muitos nicaraguenses que odiavam a ditadura de Somoza, mas não queriam que uma segunda Cuba a substituísse. (Diga-se, de passagem, que é fascinante descobrir em Adiós Muchachos que uma das pessoas que mais tentavam moderar os dirigentes sandinistas em suas reformas revolucionárias era Fidel Castro!)
A segunda parte do livro é de uma crescente tristeza, pois nela se descreve o progressivo descalabro da revolução, as divisões entre os sandinistas, e a lenta, mas segura, ascensão do comandante Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, ao vértice de um poder do qual só um punhadinho de sátrapas pôde desfrutar na história latino-americana. Terra de grandes poetas e excelentes escritores, como o próprio Sergio Ramírez, a Nicarágua terá que produzir algum dia o romance que eternize a história de Daniel Ortega, este alucinante personagem que, depois de dirigir a revolução sandinista contra os Somoza, foi se transformando ele mesmo em um Somoza moderno, ou seja, em um ditadorzinho corrompido e manipulador, que, traindo todos os princípios e aliando-se com todos os seus inimigos de ontem e de antes de anteontem, conseguiu gozar de um poder absoluto ao longo de vinte anos, fazendo-se reeleger em eleições circenses e, apesar de tudo isso, gozando ainda – por extraordinário que pareça – de certa popularidade.
Para conhecer algo de sua história é preciso fechar Adiós Muchachos e ler o esplêndido ensaio Una Fábrica de Espejismos (“uma fábrica de miragens”), do próprio Ramírez, no livro El Estallido del Populismo (“a eclosão do populismo”, 2017), onde está sintetizada, com traços de mestre do realismo mágico, a trajetória desse inverossímil personagem até nossos dias. Para começar, experimentou uma oportuna conversão ao catolicismo e agora comunga devotamente da mão do cardeal Miguel Obando y Bravo, seu antigo inimigo mortal e hoje ferrenho aliado, que deu sua bênção ao Governo “cristão, socialista e solidário” dos Ortega/Murillo. Também fez um pacto com empresários mercantilistas que, sob a condição de nunca falarem de política, fazem ótimos negócios com o regime. Mas o mais surpreendente talvez seja que na heterogênea aliança que Daniel Ortega e Rosario Murillo conseguiram armar para se manter no poder – esta é sua vice-presidente e poderia ser a próxima presidenta da Nicarágua caso seu marido decida tirar algumas férias – também figuram os bruxos, pais de santo, curandeiros, feiticeiros e taumaturgos do país. Cito Ramírez: “A mão aberta de Fátima, filha de Maomé, com um olho no centro, que representa bênçãos, poder e força, e também proteção contra o mau olhado, esteve desde 2006 atrás do casal presidencial na sala de suas audiências, num imenso mural”.
O ensaio também faz referência aos fantásticos projetos com que o Governo da celebérrima dupla, que emula a de House of Cards, alimenta as ilusões de seus eleitores, como o famoso Grande Canal da Nicarágua, que iria competir com o do Panamá e seria financiado pelo bilionário chinês Wang Ying (já quebrado e esquecido), e uma fábrica de produtos farmacêuticos em Manágua destinada a produzir nada menos que... uma vacina contra o câncer! A lista de ficções como essas é longa e parece saída de Macondo.
Todas estas coisas Ramírez conta sem se alterar, com objetividade, embora por trás da moderação e elegância com que escreve se vislumbre um profundo padecimento. O seu deve ser o de muitos nicaraguenses que, como ele, dedicaram os melhores anos de sua vida, seu tempo e seus sonhos a lutar por uma ilusão histórica que viveu uma realidade efêmera e depois foi se desfazendo e se transformando em grotesca caricatura.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Vargas Llosa: “A história não absolverá Fidel Castro”

Fidel Castro e Raúl Castro

Vargas Llosa: “A história não absolverá Fidel Castro”


Grandes escritores latino-americanos analisam a morte do líder cubano para o EL PAÍS


JUAN CRUZ
JAN MARTÍNEZ AHRENS
JAVIER RODRÍGUEZ MARCOS

Cidade do México 28 NOV 2016 - 08:35 COT

“A história não absolverá Fidel Castro.” O prêmio Nobel Mario Vargas Llosa o diz cheio de surpresa. Conheceu bem Fidel porque acreditou na revolução. Tinha acabado de saber, pelo EL PAÍS, da morte do líder cubano. Eram oito horas da manhã de sábado em Guadalajara (México). O escritor peruano pediu um tempo para refletir sobre o artigo que escreverá para este jornal, mas avançou uma opinião ainda sem ter se recuperado de uma notícia que está no centro de todas as conversas entre escritores e editores presentes à Feira Internacional do Livro de Guadalajara, a mais importante do mundo em espanhol.



Vargas Llosa ainda está usando roupa de ginástica. Fez um pouco de esporte antes de participar da homenagem que será prestada pelos seus 80 anos. “Sou o último sobrevivente do boom da literatura hispano-americana”, ri o escritor antes de tomar um gole de café com um pouco leite e lançar sua primeira reflexão. “Espero que essa morte abra um período de abertura, tolerância, democratização em Cuba. A história fará um balanço destes 55 anos que acabam agora com a morte do ditador cubano. Ele disse que a história o absolverá. E eu tenho certeza que a história não absolverá Fidel”.
Vargas Llosa foi um dos intelectuais latino-americanos que viram na Revolução Cubana uma luz democratizadora. Chegou a fazer parte do grupo de escritores que visitavam Castro, mas logo se decepcionou. A perseguição aos dissidentes o horrorizou. Havia represálias, lembra o Nobel, não apenas pelas ideias políticas, mas também pela orientação sexual: mesmo que fossem partidários do regime, “Castro chamava os homossexuais de enfermitos (doentinhos)”.
Héctor Abad Faciolince. “Sem Fidel, o boom teria tido outras proporções. Alguém poderia hesitar se os escritores eram parasitas da revolução ou se a revolução era parasita dos escritores. Ao contrário, houve uma simbiose que funcionou nos anos sessenta, enquanto intelectuais franceses como Jean-Paul Sartre se aproximaram dessa árvore e dessa sombra”, afirma o escritor colombiano, de 58 anos. “Mas houve uma ruptura e foi quando a revolução pediu que Vargas Llosa doasse o montante do Prêmio Rómulo Gallegos, obtido por A Casa Verde, e prometeu-lhe que seria reembolsado secretamente. Aí se viu a capacidade de corrupção da política. Com Vargas Llosa não funcionou para eles”, conclui o autor de Somos o Esquecimento que Seremos.
Nélida Piñón. “Fidel acabou há muito tempo. Na verdade, foi o fim de uma utopia inatingível”, diz a escritora brasileira, de 79 anos. “Eu o conheci. Ele era um homem que falava, falava e falava, prolongava as histórias sem deixar que o outro dissesse nada”, ri Piñón, para quem o líder cubano está cheio de sombras: “Impôs o terror, perseguiu os gays, encheu as prisões”. E as coisas boas? “Que foi um construtor de utopias, de sonhos. Mas faz muito tempo que sua história terminou. Isso acontece com todos os heróis: não resistem ao seu próprio heroísmo”.
Enrique Krauze. O grande historiador mexicano, de 69 anos, não lamenta absolutamente a morte de Fidel. “Agora o mundo será menos ruim. Foi o ditador mais longevo da história latino-americana e nunca tive sentimentos por ele”, diz. Para o autor de Siglo de Caudillos (Século de Caudilhos), a morte abre a possibilidade de uma abertura, especialmente na área econômica, o grande calcanhar de Aquiles do regime. “Donald Trump verá com bons olhos que Cuba caminhe em direção ao capitalismo, mas para ele dará no mesmo que continue sendo uma ditadura”, conclui.
Sergio Ramírez. Para o escritor e ex-vice-presidente da Nicarágua, a intolerância de Fidel ficou clara quando ele decidiu obrigar o poeta Heberto Padilla a fazer uma autocrítica stalinista para um livro que o regime tinha apontado como indesejável. “Então o terror se manteve, veio a perseguição aos intelectuais, aos homossexuais. Acabou em seguida com a primavera cultural cubana, instaurou a ideia de que se estava com ele ou contra ele”, afirma Ramírez, de 74 anos.
Juan Villoro. Surpresa, mas nenhuma tristeza. Irônico, o escritor e pensador mexicano lembra que Fidel chegou a adquirir a condição de líder eterno. “Nós o considerávamos imortal, mas no final vimos que era humano”. Para Villoro, de 60 anos, a morte de Castro fecha um ciclo que estava esgotado havia muito tempo. “Tenho a idade da Revolução Cubana e envelhecemos juntos. Foi a depositária de muitos ideais de justiça social, mas ela mesma foi traindo esses ideais. As razões são variadas, mas foram decisivos os seus próprios erros e a perseguição aos dissidentes. Minha maior decepção foi o fuzilamento do general Arnaldo Ochoa”, afirma.
Daniel Divinski. “Fidel foi um ponto de inflexão na história da América Latina, mais além dos excessos posteriores... O pior? O avassalamento dos direitos humanos, a perseguição de pessoas que não eram contra a revolução, mas que queriam reformas, e não derrubá-lo”. Para o conhecido editor argentino, de 74 anos, não há herdeiros de Fidel. “Ele acaba em si mesmo. Nos últimos tempos, decepcionou muito. Como dizia Perón de si mesmo, já era um leão herbívoro. Surgirão outros, mas já não haverá uma liderança individual como a sua”.
Julio Ortega. “Fidel construiu um aparato cultural, mas paralisou a cultura. Produziu repressão e exílios, tudo se reduzia a defender a revolução. Ele decretava quem era o bom e o mau. E não houve só um caso Padilla, mas vários. Estamos agora em outra época e as coisas vão melhorar”, diz o crítico peruano.
Claudia Piñeiro. “Com a morte de Fidel, acabou o século XX”, sintetiza a escritora argentina.
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