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terça-feira, 19 de setembro de 2023

Aline Naomi / Amor e ossos

 

Imagem de ninikvaratskhelia_ por Pixabay

Aline Naomi
Amor e ossos

Mamãe diz para eu tomar o café da manhã na cozinha, que já estava na mesa, e não ir pro quintal. Em vez disso, vou pro banheiro lavar o rosto, fazer xixi, e volto pro quarto. Espio pela fresta da janela. Lica está no chão de azulejos, não se mexe. Meus pais sussurram sobre o que fazer com “o corpo”, enquanto papai segura um saco de lixo preto, dos grandes. Só vejo partes de tudo, porque a fresta não ajuda.

Lágrimas, lágrimas, saio correndo pro quintal, mamãe me manda voltar pra dentro, não volto, só quero me despedir, fazer um último carinho. Sei que a Lica não vai mais voltar. Eles tentam me acalmar, volto pro quarto e me jogo na cama.

Quando nasci, a Lica já estava aqui, já era parte da família. Passamos juntas metade da vida dela, o que é bastante tempo. Meus pais contavam que a Lica veio ainda filhote quando eles começaram a namorar, se mudou para a casa que eles compraram depois do casamento, dormia no quarto deles até antes de eu nascer. Cheguei e desequilibrei o mundo dela, acho. Mas depois ficamos amigas.

Já é noite e o saco preto ainda está num canto do quintal. Pergunto o que vão fazer com a Lica, papai diz que vai enterrar num lugar bonito, com sombra e flores, no sítio do vovô, e que posso visitar sempre que quiser, agora ela está no céu, brincando com outros cachorros.

Antes de dormir, penso num caixão especial para cães, com desenhos de ossinhos, e se meu pai jogaria uma flor sobre esse caixão, como fazem nos filmes, antes de começar a jogar terra com a pá. Eu não estaria lá para jogar uma flor, ou talvez um biscoito em formato de osso que ela gostava. Sinto uma dor no peito.

***

Uns dias depois, mamãe diz para eu pegar uns brinquedos, colocar na mochila, porque a gente vai pra casa da minha tia. Não entendo nada, mas faço o que ela pede. Estou de férias e a gente vai pra praia com a tia Maya e a Julinha, só pode. Mas tinha muita, muita coisa dentro do carro. E o papai? Ela não responde rápido, mas depois diz que papai está no trabalho. Fico triste ao pensar que ele vai encontrar a casa vazia quando chegar mais tarde.


ALINE NAOMI


sábado, 8 de julho de 2023

O conto, um gênero narrativo / "Limitado" à sua estrutura, o conto inaugura diversas possibilidades de fruição

 


O conto, um gênero narrativo

"Limitado" à sua estrutura, o conto inaugura diversas possibilidades de fruição

2 MAIO 2023, 

As narrativas começam com a própria história da humanidade e fazem parte de todas as civilizações e apresentam-se sob os mais variados gêneros: mito, lenda, fábula, conto, novela, romance, histórias em quadrinhos, cinema, etc.

Roland Barthes, no texto Introdução à análise estrutural da narrativa afirma que:

não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas…

Sobre o papel das narrativas, o escritor austríaco Robert Musil (1880 – 1942), em sua obra mais conhecida, o romance O homem sem qualidades, afirma que

no relacionamento básico com si mesmo, a maioria dos homens são contadores de histórias.

As narrativas materializam-se em textos, eles sejam verbais orais ou escritos, não verbais e mistos, aqueles que misturam linguagens diferentes, como as histórias em quadrinhos. As reflexões sobre a narrativa que apresento neste artigo restringem-se a textos exclusivamente verbais.

Dispomos de uma competência narrativa. Isso significa que conseguimos distinguir textos que contam uma história dos que não contam. Somos também capazes de reconhecer versões diferentes de uma mesma história, de resumi-la, de contá-la para outros e de reconhecer quem é o narrador. As narrativas podem se referir a um fato real ou imaginário. O fato narrado em geral é uma ação atribuída a agente humano ou antropomorfizado (como nas fábulas). A principal característica das narrativas literárias é o fato de serem ficcionais. Suas formas mais comuns na atualidade são o conto, o romance e a novela. Como adiantei no título, neste artigo trato apenas do conto.

O Conto

O conto é um gênero narrativo que costuma ter sido definido pela sua extensão, o que determina que possua, quanto à sua estrutura, características especiais, que o diferenciam de outras formas narrativas em prosa (novela e romance). Não há propriamente uma definição de conto, o melhor seria dizer que há teorias do conto, enquadradas numa teoria mais ampla, a narratologia, que é o estudo das formas narrativas literárias e não literárias.

Mário de Andrade (1893 – 1945), para quem conto é aquilo que seu autor batizou de conto, já chamava a atenção para esse fato ao iniciar seu conto Vestida de negro com a seguinte afirmação:

Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade.

O conto, assim como os outros gêneros, se manifesta de formas diferentes dependendo do autor e da época. Isso é visível quando se compara um conto recolhido pelos irmãos Grimm a contos de Cortázar, Hemingway, Borges, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, por exemplo. Por isso não apresento uma definição de conto. Prefiro, apoiado em alguns autores e teorias sobre o conto, apresentar as características desse gênero literário, por meio de analogias a outras formas narrativas, particularmente o romance.

O conto é uma narrativa condensada (em inglês é denominado short-story), que apresenta um número pequeno de personagens, unidade de tempo restrito, normalmente centrado em um único evento, abdicando de análises minuciosas, digressões e descrições pormenorizadas. Se o romance é um gênero ligado à tradição escrita, o conto tem, como assinalei, suas origens na tradição oral, no ato de contar histórias, que eram passadas de geração a geração.

O conto popular distingue-se do conto literário na forma de transmissão e, consequentemente, na de recepção. No primeiro, a transmissão é oral e a recepção se dá em tempo real. A narrativa é dirigida a um auditor. No segundo, a transmissão é escrita e a recepção se dá a posteriori. A narrativa é dirigida a um leitor. Essas diferenças trazem consigo outras, como a mudança da linguagem e, no caso do conto literário, a expansão do público receptor, que passa a ser mais heterogêneo, uma vez que a circulação dos textos passa a não se restringir apenas à comunidade sociocultural para quem as histórias são narradas.

Outra distinção entre o conto popular e o conto literário reside na autoria, enquanto os primeiros são anônimos, os segundos possuem autoria definida. Os contos populares têm servido de matéria-prima para a elaboração de obras literárias, por isso é comum encontrar ecos ou referências diretas ou indiretas a eles em contos e romances modernos. A personagem Oskar do romance O tambor, do escritor alemão Günther Grass, é inspirado no Pequeno Polegar. Guimarães Rosa inicia seu conto Conversa de bois fazendo referência aos contos maravilhosos:

Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas.

Nos contos do escritor moçambicano Mia Couto, em que realidade e fantasia se fundem, ressoam vozes de histórias da tradição oral africana.

O romance é cumulativo, ou seja, nele há uma sucessão de eventos que se encadeiam em direção ao clímax e, posteriormente, ao desfecho. O conto, por ser limitado em sua extensão, procura captar um momento, um instantâneo.

O contista e teórico do conto Júlio Cortázar (1914 – 1984) compara o romance a um filme enquanto o conto é comparado a uma fotografia. Para esse autor, o romance realiza uma abordagem horizontal; o conto, uma vertical. Por ser uma narrativa condensada, o conto elimina tudo o que é acessório, centrando-se naquilo que é essencial à trama, evitando intrigas acessórias. Uma frase de Cortázar ilustra bem a diferença entre o conto e romance:

o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute.

Para um outro grande contista e também teórico do conto, Edgar Allan Poe, a extensão é requisito fundamental do conto, já que esse gênero literário deve buscar uma unidade de efeito, enganar, aterrorizar, encantar ou deslumbrar, e essa só pode ser conseguida se o texto for possível de ler numa assentada, de meia a duas horas.

MEER




quinta-feira, 6 de julho de 2023

Uma breve história do conto / Uma não estrutura que o governa e multiplica

 


Uma breve história do conto

Uma não estrutura que o governa e multiplica

2 JULHO 2023, 

O conto é um gênero narrativo presente em diversas culturas cujas origens se perdem no tempo, por isso é praticamente impossível se escrever uma história do conto. Sabe-se que suas primeiras manifestações se deram na forma oral. Pessoas se reuniam em torno de uma fogueira e alguém narrava histórias que encantavam a todos. A autoria dessas narrativas transmitidas de geração em geração era desconhecida. Não se pode falar que essas primeiras manifestações do conto tivessem um narrador como conhecemos hoje. Aquele que contava o conto não era seu autor, sequer organizava a narrativa. Ele apenas era um intérprete do texto.

Estudos recentes desenvolvidos pelo antropólogo Jamie Tehrani, da Universidade de Durham, que trabalhou com a pesquisadora de folclore Sara Graça da Silva, da Universidade Nova de Lisboa, publicados na revista científica Royal Society Open Science, afirmam que alguns contos populares remontam à pré-história e não aos séculos 16 e 17, como se acreditava. Segundo a pesquisa, a origem do conto João e o pé de feijão remonta há mais de 5 mil anos. Os contos A bela e a fera e O anão saltador têm cerca de 4 mil anos de idade.

Esse ancestral do conto moderno tinha suas raízes na cultura popular e veiculava temas ligados a essa cultura. Do ponto de vista de sua estrutura, eram narrativas bem simples, centradas num único episódio, com uma sequência temporal, em que os acontecimentos sucediam na linha do tempo. Muitas delas apresentavam o elemento maravilhoso, integrado normalmente na narrativa.

Sabemos da existência desses contos, porque muitos deles foram posteriormente copilados para a forma escrita. Essas narrativas, agora na forma escrita, continuaram a ser passadas de geração em geração e chegaram a povos diferentes. Mesmo escritas, não perderam seu caráter de oralidade, já que muitos povos, em diversas culturas, têm o hábito de contar histórias, sobretudo para crianças que ainda não foram alfabetizadas.

Algumas dessas narrativas são bem conhecidas, na forma tradicional, ou em adaptações feitas especialmente para crianças. As histórias do Livro das mil e uma noites é um bom exemplo de contos que se perdem no tempo. Simbad, o navegante, Ali Babá e os quarenta ladrões e Aladim e a lâmpada mágica são exemplos de narrativas que circulam em diferentes culturas e em semióticas diversas, animações, filmes, novelas gráficas, etc.

Na Idade Média, aparece o Decameron, de Giovanni Boccaccio, cujas histórias foram escritas entre 1349 e 1351 (ou 1353), logo após a peste negra que assolou a Europa. Trata-se de uma obra de qualidades artísticas inegáveis, com uma estrutura bem mais complexa do que as narrativas toscanas da tradição oral. Em 1386, surgem na Inglaterra os Contos de Canterbury, de Geoffrey Chaucer, cuja estrutura é inspirada no Decameron, de Boccaccio. Em 1613, aparece na Espanha o livro Novelas exemplares, de Miguel de Cervantes. Nele, o autor de Dom Quixote apresenta histórias sobre temas diversos.

Na história do conto, Charles Perrault (1628 – 1703), considerado o pai da literatura infantil, ocupa lugar de destaque, por ter dado tratamento literário a um gênero de grande aceitação, o conto de fadas. Entre os contos mais conhecidos desse gênero estão Chapeuzinho vermelhoA bela adormecidaO pequeno polegarO gato de botas.

O que chamamos hoje de conto moderno surge no século XIX com o norte-americano Edgar Allan Poe (1809 – 1949), um grande contista e teórico do conto. Pode-se afirmar que foi Poe quem criou o conto policial com Os mistérios da rua Morgue. O século XIX vê surgirem ainda dois dos maiores contistas da literatura ocidental, o russo Anton Tchekhov (1860 – 1904) e o francês Guy de Maupassant (1850 – 1893). Esses dois autores serão considerados modelos para os contistas que vêm depois deles. De certa forma, a produção do conto clássico ou se prende a Maupassant ou a Tchekhov. Isso significa que qualquer pessoa que queira conhecer um pouco mais profundamente esse gênero obrigatoriamente terá de ler contos desses dois autores.

Tchekhov é um mestre do conto cuja matéria é um incidente do cotidiano. Acontecimentos banais, na mão de Tchekhov, se transformam. No conto Pamonha, por exemplo, uma simples cena de um patrão acertando as contas com a governanta de seus filhos transforma-se num conto que traz à tona o tema da exploração e da humilhação do pobre pelo rico.

Os contos de Maupassant trazem um viés de crítica social e abordagem psicológica. Bola de sebo é um conto magistral que nos mostra como, em decorrência da situação, uma pessoa pode ser vista como boa ou má. A personagem que dá título ao conto é uma prostituta que viaja durante a guerra da França com a Prússia em uma carruagem acompanhada por pessoas “de bem”, representantes de diversas classes sociais e que desprezam e marginalizam a prostituta, mas uma mudança dos acontecimentos faz com que passam a depender dela, o que altera o modo de agir em relação a ela.

Para os brasileiros, o século XIX também é o século da consolidação do conto literário com a publicação das obras do nosso maior contista, Machado de Assis. Seus contos não deixam nada a dever a seus romances, sendo muitos deles verdadeiras obras-primas como O espelhoA cartomanteO enfermeiro e A causa secreta.

O século XX é aquele em que mais uma vez se vê uma mudança no gênero. O conto passa a incorporar o elemento fantástico, há uma ruptura no modo tradicional de narrar e o psicológico passa a se sobrepor sobre o cronológico. Sem dúvida, Franz Kafka (1883 – 1924) é um dos maiores representantes do que se pode chamar de conto moderno e serviu de influência para muitos outros contistas do século XX e XXI. No Brasil, há que se destacar ainda a importância de Guimarães Rosa pela riqueza temática e pela forma com que rompe com uma linguagem tradicional.


MEER


domingo, 24 de julho de 2022

Octavio Paz / Minha vida com a onda


Octavio Paz
Minha vida com a onda


Octavio Paz / Mi vida con la ola 


Quando deixei aquele mar, uma onda se adiantou entre todas. Era esbelta e ligeira. Apesar dos gritos das outras, que a seguravam pelo vestido flutuante, pendurou-se em meu braço e foi-se embora comigo pulando. Não quis dizer-lhe nada, porque me dava pena envergonhá-la diante das colegas. Além disso, os olhares de cólera das ondas maiores me paralisaram.

Quando chegamos à cidade, expliquei-lhe que não podia ser, que a vida ali não era o que ela pensava na sua ingenuidade de onda que nunca tinha saído do mar. Olhou para mim com seriedade: "Sua decisão estava tomada. Não podia voltar”. Tentei doçura, dureza, ironia. Ela chorou, gritou, acariciou, ameaçou. Tive que pedir-lhe perdão. No dia seguinte começaram meus problemas. Como subir no trem sem que nos vissem o condutor, os passageiros, a polícia? É verdade que os regulamentos não falam nada sobre o transporte de ondas nos trens, mas era justamente essa ressalva um indício da severidade com que se julgaria nossa atitude.

Depois de pensar muito, cheguei à estação uma hora antes da partida, ocupei meu assento e, quando ninguém olhava, esvaziei o depósito de água para os passageiros; em seguida, cuidadosamente, verti nele minha amiga.

O primeiro incidente aconteceu quando as crianças de um casal vizinho declararam sua ruidosa sede. Adiantei-me para prometer-lhes refrescos e limonadas. Justamente no momento em que iam aceitar, aproximou-se outra sedenta. Quis convidá-la também, mas o olhar de seu acompanhante me conteve. A senhora pegou um copinho de papel, aproximou-se do depósito e abriu a torneira. Tinha apenas enchido metade do copo quando, de um salto, me interpus entre ela e minha amiga. A senhora olhou para mim com assombro. Enquanto pedia desculpas, um dos garotos voltou a abrir o depósito. Fechei-o com violência.

A senhora levou o copo aos lábios:

— Ai, a água está salgada! — O menino fez eco. — Vários passageiros se levantaram. O marido chamou o condutor:

— Este indivíduo jogou sal na água? — O condutor chamou o inspetor:

— O senhor jogou substâncias na água? — O inspetor chamou o policial de plantão:

— O senhor jogou veneno na água? — O policial de plantão chamou o capitão:

— O senhor é o envenenador? — O capitão chamou três agentes. Os agentes me levaram para um vagão vazio, entre olhares e cochichos dos passageiros. Na primeira estação empurraram-me para fora do trem e arrastaram-me até a cadeia. Durante dias ninguém falou comigo, exceto durante os longos interrogatórios. Quando contava meu caso, ninguém acreditava, nem sequer o carcereiro, que mexia a cabeça, dizendo: "O assunto é grave, verdadeiramente grave. Não tinha tentado o senhor envenenar umas crianças?" Uma tarde, levaram-me ao procurador.

— O assunto é difícil — repetiu. — Vou remetê-la ao juiz criminal. Assim passou-se um ano. Finalmente me julgaram. Como não houve vítimas, minha punição foi leve. Pouco tempo depois, chegou o dia de minha liberdade. O chefe da prisão me chamou:

— Bom, já está livre. Teve sorte, graças a não terem acontecido desgraças. Mas que não volte a repetir-se, pois da próxima vez lhe custará caro... — E olhou para mim com a mesma expressão séria com que todos me olhavam.

Nessa mesma tarde peguei o trem e depois de algumas horas de incômoda viagem cheguei ao México. Peguei um táxi para minha casa. Ao chegar à porta do meu apartamento, ouvi risos e cantos. Senti uma dor no peito, como o golpe da onda da surpresa quando a surpresa nos golpeia em cheio no peito: minha amiga estava lá, cantando e rindo como sempre.

— Como você voltou?

— Muito fácil: no trem. Alguém, depois de certificar-se de que eu era apenas água salgada, me jogou na locomotiva. Foi uma viagem agitada: de repente era um tufo branco de vapor, de repente caía uma chuva fina sobre a máquina. Emagreci muito. Perdi muitas gotas.

Sua presença mudou minha vida. A casa de corredores escuros e móveis empoeirados se encheu de ar, de sol, de rumores e reflexos verdes e azuis, povoado de numerosos ecos e felizes reverberações.

Quantas ondas é uma onda ou como pode fazer praia ou rocha ou quebra-mar um muro, um peito, uma testa que coroa com espumas! Até os cantos abandonados, os abjetos cantos de poeira e os detritos foram tocados por suas mãos leves. Tudo começou a sorrir e por toda parte brilhavam dentes brancos, O sol entrava com gosto nos velhos quartos e ficava na casa por horas, quando já fazia muito tempo que havia abandonado as outras casas, o bairro, a cidade, o país. E várias noites, já bem tarde, as escandalizadas estrelas o viram sair de minha casa, escondido. O amor era um jogo, uma criação perpétua. Tudo era praia, areia, leito de lençóis sempre frescos. Se eu a abraçava, ela se erguia, incrivelmente esbelta, como talo líquido de um álamo; e de repente essa esbelteza florescia num jorro de penas brancas, num penacho de risos que caíam sobre minha cabeça e minhas costas e me cobriam de brancuras. Ou então estendia-se diante de mim, infinita como o horizonte, até que eu também me fazia horizonte e silêncio. Plena e sinuosa, envolvia-me como uma música ou uns lábios imensos. Sua presença era um ir-e-vir de carícias, de rumores, de beijos. Entrava em suas águas, quase me afogava e num fechar de olhos encontrava-me acima, no alto da vertigem, misteriosamente suspenso, para cair depois como uma pedra, e me sentir suavemente depositado no seco, como uma pena. Nada é comparável ao dormir embalado nas águas, a não ser acordar com os golpes de mil alegres chicotes ligeiros, por arremetidas que se retiram rindo.

Mas jamais cheguei ao centro de seu ser. Nunca toquei o nó do ai e da morte. Quiçá nas ondas não exista esse lugar secreto que faz a mulher vulnerável e mortal, esse pequeno botão elétrico onde tudo se enlaça, se crispa e se ergue, para logo desfalecer. Sua sensibilidade, como a das mulheres, se propagava em ondas, só que não eram ondas concêntricas, senão excêntricas, que se estendiam cada vez mais longe, até tocar outros astros. Amá-la era prolongar-se em contatos remotos, vibrar com estrelas distantes de que nem suspeitamos. Mas seu centro... não, não tinha centro, senão um vazio parecido com o dos torvelinhos, que me sugava e me asfixiava.

Estendidos um ao lado do outro, trocávamos confidências, cochichos, risadas. Feito um novelo, caía sobre meu peito e ali se desenrolava como uma vegetação de rumores. Cantava ao meu ouvido, caracol. Fazia-se humilde e transparente, jogada aos meus pés como um animalzinho, água mansa. Era tão límpida que podia ler todos os seus pensamentos. Certas noites sua pele se cobria de fosforescências e abraçá-la era abraçar um pedaço de noite tatuada de fogo. Mas também se fazia negra e amarga. Nas mais inesperadas horas mugia, suspirava, se contorcia. Seus gemidos acordavam os vizinhos. Quando a ouvia, o vento do mar arranhava a porta da casa ou delirava em voz alta pelos terraços. Os dias nublados a irritavam; quebrava móveis; falava palavrões, cobria-me de insultos e de uma espuma cinza e esverdeada. Cuspia, chorava, blasfemava, profetizava. Sujeita à lua, às estrelas, ao influxo da luz de outros mundos, mudava de humor e de fisionomia de uma maneira que me parecia fantástica, mas que era tal qual a maré.

Começou a queixar-se de solidão. Enchi a casa de caracóis e conchas, pequenos barcos veleiros, que em seus dias de fúria ela fazia naufragar (junto com os outros, carregados de imagens, que todas as noites saíam de minha frente e afundavam nos seus ferozes ou graciosos remoinhos). Quantos pequenos tesouros se perderam naquele tempo! Porém não eram suficientes meus barcos, nem o canto silencioso dos caracóis. Confesso que não sem ciúmes os via nadar na minha amiga, acariciar seus peitos, dormir entre suas pernas, enfeitar seu cabelo com leves relâmpagos de cores. Entre todos aqueles peixes havia uns particularmente repulsivos e ferozes, uns pequenos tigres de aquário, grandes olhos fixos e bocas fendidas e carnívoras. Não sei por que aberração minha amiga tinha prazer de brincar com eles, demonstrando por eles sem rubor uma preferência cujo significado prefiro ignorar. Passava longas horas fechada com aquelas horríveis criaturas.

Um dia não pude mais; derrubei a porta e me joguei sobre eles. Ágeis e fantasmagóricos, escapavam-se entre minhas mãos enquanto ela ria e me batia até me derrubar, Senti que me afogava. E quando estava a ponto de morrer, arroxeado, me depositou na beira e começou a beijar-me, humilhado. E ao mesmo tempo a voluptuosidade me fez fechar os olhos. Porque sua voz era doce e me falava da morte deliciosa dos afogados.

Quando voltei a mim, comecei a temê-la e a odiá-la. Tinha descuidado dos meus assuntos. Voltei a freqüentar os amigos e reatei velhas e queridas relações. Encontrei uma amiga da juventude. Pedindo-lhe que jurasse guardar segredo, contei-lhe minha vida com a onda. Nada comove tanto as mulheres quanto a possibilidade de salvar um homem. Minha redentora usou todas as suas artes, mas o que podia uma mulher, dona de um número limitado de almas e corpos, diante de minha amiga, sempre mutante - e sempre idêntica a si mesma na sua metamorfose incessante? Chegou o inverno. O céu se tornou cinza. O nevoeiro cobriu a cidade. Caía um chuvisco gelado. Minha amiga gritava todas as noites. Durante o dia isolava-se, quieta e sinistra, murmurando uma sílaba só, como uma velha rabugenta que reclama num canto. Ficou fria; dormir com ela era perder a noite e sentir como se gelasse paulatinamente o sangue, os ossos, os pensamentos. Tornou-se impenetrável, revolta. Eu saía com freqüência e minhas ausências eram cada vez mais prolongadas. Ela, no seu canto, uivava longamente. Com os dentes afiados e a língua corrosiva, roia os muros, desmoronava as paredes. Passava as noites acordada, queixando-se de mim. Tinha pesadelos, delirava com o sol, com um grande pedaço de gelo, navegando sob os céus negros nas compridas noites que pareciam meses. Injuriava-me. Amaldiçoava e ria; enchia a casa de gargalhadas e fantasmas. Chamava os monstros das profundidades, cegos, rápidos e obtusos. Carregada de eletricidade, carbonizava tudo o que a roçava. Seus doces braços se tornaram cordas ásperas que me estrangulavam. E seu corpo esverdeado e elástico era um chicote implacável, que batia, batia, batia.

Fugi. Os horríveis peixes riam com risadas ferozes. Lá nas montanhas, entre os altos pinheiros e os despenhadeiros, respirei o ar frio e fino como um pensamento de liberdade. Depois de um mês regressei. Estava decidido. Tinha feito tanto frio que encontrei sobre o mármore da lareira, junto do fogo extinto, uma estátua de gelo. Não me comoveu sua abominável beleza. Joguei-a num grande saco de lona e saí à rua, com a adormecida nas costas. Num restaurante da periferia vendi-a para um garçom amigo, que imediatamente a quebrou em pequenos pedaços, que depositou cuidadosamente nos baldes onde se esfriam as garrafas.


Octavio Paz, ensaísta e poeta mexicano, nasceu na capital de seu país em 1914. Passou sua infância nos Estados Unidos, acompanhando sua família, e sua vida adulta entre a França e a Índia, por fazer parte do quadro de diplomatas mexicanos. Em seu país, é o poeta mais considerado e controvertido da segunda metade do século XX.

Foi agraciado, entre outros, com os prêmios Cervantes, em 1979,  Alexis de Tocquerville, em 1989,  e com o Nobel de Literatura, em 1990.

Algumas obras do autor: "Luna silvestre" (1933), "Entre lapiedra y la flor" (1940), "el laberinto de la soledad" (1959), "La estación violenta" (1958), "El arco y la lira" (1956), "Topoemas" (1971), e "Hijos del aire" (1979).

O escritor faleceu na cidade do México no ano de 1998.

O texto acima foi publicado no livro "Arenas movedizas" (1949), e transcrito da antologia "Contos latino-americanos eternos", Editora Bom Texto - Rio de Janeiro, 2005, pág. 109, organização e tradução de Alicia Ramal.





sexta-feira, 3 de junho de 2022

Dalton Trevisan / O duelo



Ilustração: Aldemir Martins

Dalton Trevisan
O DUELO

José foi morar na velha casa desabitada há muitos anos, o quintal cheio de gatos. Ele não gostava de bichos. Nos cantos espalhava à noite iscas de carne envenenada. Descobriu uma ninhada de gatinhos, meteu-os no saco e, com as costas do machado, malhou os pobres diabos. Furada de unhas, a bola de estopa arrastava-se pelo chão, espirrando de sangue as paredes. Quando acertava numa cabeça ela explodia feito laranja podre ao cair do galho.

Acabou com os gatos do quintal, menos um – era afeiçoado à casa, não antigo dono.

Preparou bolinhas de carne com arsênico, o gato não comeu. Por muitos dias não viu o inimigo. Seguia seu rastro: a cabeça crua de galinha, ali a seus pés, roubada da lata de lixo. José ia lidar nas roseiras e, na terra fofa, a maldição dos cocos enterrados. De noite, chegava da rua; na lata de lixo avistou o bichano: espantoso, negro, belo.

Deitado na cama, reconhecia as unhas lá na tampa da lata – engordava às suas custas. O gato bebia a sua água do balde, enrolado no seu tapete da porta. José era o terror da família, achou-se desafiado por um vagabundo, que o considerava seu dono. Se estalasse a língua, viria se arrastando, pelo chão a roçar-lhe a perna... Ah, esmagar-lhe a cabeça que nem uma ponta de cigarro. Planejando assassiná-lo, não dormia. A mulher comentou: “Você parece louco, José. O gato não lhe fez mal. É bicho de Deus”.

Antes do gato, ela não se atreveria a falar naquele tom. José tossia: os pêlos do outro no ar... Certa feita encurralou-o no canto da casa. Avançou de cacete em riste, o diabo agarrou-se à parede e foi ao chão, de unhas quebradas. A pancada rebentou um dos quadris obscenos. Mal ferido, ainda se arrastava pelo jardim.

Na noite seguinte ele esperou o homem, a perna aleijada, arrimado na lada de lixo. José teve azar nos negócios. Um filho adoeceu. A carne estragou na geladeira.

No verão, José cobria a cabeça com o lençol para não ouvir os gritos de uma gata amorosa. Eram muitos bichanos, reconhecia a voz do seu entre todos. Uns olhos fosfóreos alumiavam o quarto. Garras subiam-lhe pela roupa, enterravam-se na carne e o despertavam com um miado horrendo.

A casa era pequena para os dois. Bebia no botequim noite após noite. Ao outro a mulher elegera campeão da família. Com a mão na porta, ele ainda escutara um dos filhos: “Mamãe, o pai tem raiva do nosso gato?”

Cantando, voltou de madrugada. Não o encontrava há três dias; deveria estar morto, no fundo de algum porão, um bico de galinha enterrado na negra garganta. Ao pé da escada, olhou para cima: duas luas no último degrau. Era o gato, vivo, comendo...

Atirou-se para estripar com unhas e dentes. O maldito fugiu. José tropeçou e rolou pela escada. Choramingava, de pescoço quebrado, a boca mergulhada no lixo.

A porta da cozinha não se abriu. A família escolhera o partido do outro, que miava em torno do moribundo – o gato da casa a carpir o dono querido.


(Desastres do amor)





sábado, 9 de abril de 2022

Lygia Fagundes Telles / Pomba enamorada ou Uma história de amor

Paloma, 1949
Pablo Picasso


Lygia Fagundes Telles
Pomba Enamorada ou Uma História de Amor

Encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou: acho que vou amar ele pra sempre. Ao ser tirada teve uma tontura, enxugou depressa as mãos molhadas de suor no corpete do vestido (fingindo que alisava alguma prega) e de pernas bambas abriu-lhe os braços e o sorriso. Sorriso meio de lado, para esconder a falha do canino esquerdo que prometeu a si mesma arrumar no dentista do Rôni, o Doutor Élcio, isso se subisse de ajudante para cabeleireira. Ele disse apenas meia dúzia de palavras, tais como, Você é que devia ser a rainha porque a rainha é uma bela bosta, com o perdão da palavra.

Ao que ela respondeu que o namorado da rainha tinha comprado todos os votos, infelizmente não tinha namorado e mesmo que tivesse não ia adiantar nada porque só conseguia coisas a custo de muito sacrifício, era do signo de Capricórnio e os desse signo têm que lutar o dobro pra vencer. Não acredito nessas babaquices, ele disse, e pediu licença pra fumar lá fora, já estavam dançando o bis da “Valsa dos Miosótis” e estava quente pra danar. Ela deu a licença. Antes não desse, diria depois à rainha enquanto voltavam pra casa. Isso porque depois dessa licença não conseguiu mais botar os olhos nele, embora o procurasse por todo o salão e com tal empenho que o diretor do clube veio lhe perguntar o que tinha perdido. Meu namorado, ela disse rindo, quando ficava nervosa, ria sem motivo. Mas o Antenor é seu namorado? estranhou o diretor apertando-a com força enquanto dançavam “Nosotros”. É que ele saiu logo depois da valsa, todo atracado com uma escurinha de frente única, informou com ar distraído. Um cara legal mas que não esquentava o rabo em nenhum emprego, no começo do ano era motorista de ônibus, mês passado era borracheiro numa oficina da Praça Marechal Deodoro mas agora estava numa loja de acessórios na Guaianases, quase esquina da General Osório, não sabia o número mas era fácil de achar. Não foi fácil assim ela pensou quando o encontrou no fundo da oficina, polindo uma peça. Não a reconheceu, em que podia servi-la? Ela começou a rir, Mas eu sou a princesa do São Paulo Chique, lembra? Ele lembrou enquanto sacudia a cabeça impressionado, Mas ninguém tem este endereço, porra, como é que você conseguiu? E levou-a até a porta: tinha um monte assim de serviço, andava sem tempo pra se coçar mas agradecia a visita, deixasse o telefone, tinha aí um lápis? Não fazia mal, guardava qualquer número, numa hora dessas dava uma ligada, tá? Não deu. Ela foi à Igreja dos Enforcados, acendeu sete velas para as almas mais aflitas e começou a Novena Milagrosa em louvor de Santo Antônio, isso depois de telefonar várias vezes só pra ouvir a voz dele. No primeiro sábado em que o horóscopo anunciou um dia maravilhoso para os nativos de Capricórnio, aproveitando a ausência da dona do salão de beleza que saíra para pentear uma noiva, telefonou de novo e dessa vez falou, mas tão baixinho que ele precisou gritar, Fala mais alto, merda, não estou escutando nada. Ela então se assustou com o grito e colocou o fone no gancho, delicadamente. Só se animou com a dose de vermute que o Rôni foi buscar na esquina, e então tentou novamente justo na hora em que houve uma batida na rua e todo mundo foi espiar na janela. Disse que era a princesa do baile, riu quando negou ter ligado outras vezes e convidou-o pra ver um filme nacional muito interessante que estava passando ali mesmo, perto da oficina dele, na São João. O silêncio do outro lado foi tão profundo que o Rôni deu-lhe depressa uma segunda dose, Beba, meu bem, que você está quase desmaiando. Acho que caiu a linha, ela sussurrou apoiando-se na mesa, meio tonta. Senta, meu bem, deixa eu ligar pra você, ele se ofereceu bebendo o resto do vermute e falando com a boca quase colada ao fone: Aqui é o Rôni, coleguinha da princesa, você sabe, ela não está nada brilhante e por isso eu vim falar no lugar dela, nada de grave, graças a Deus, mas a pobre está tão ansiosa por uma resposta, lógico. Em voz baixa, amarrada (assim do tipo de voz dos mafiosos do cinema, a gente sente uma coisa, diria o Rôni mais tarde, revirando os olhos) ele pediu calmamente que não telefonassem mais pra oficina porque o patrão estava puto da vida e além disso (a voz foi engrossando) não podia namorar com ninguém, estava comprometido, se um dia me der na telha, EU MESMO TELEFONO, certo? Ela que espere, porra. Esperou. Nesses dias de expectativa, escreveu-lhe catorze cartas, nove sob inspiração romântica e as demais calcadas no livro Correspondência Erótica, de Glenda Edwin, que o Rôni lhe emprestou com recomendações. Porque agora, querida, a barra é o sexo, se ele (que voz maravilhosa!) é Touro, você tem que dar logo, os de Touro falam muito na lua, nos barquinhos, mas gostam mesmo é de trepar. Assinou Pomba Enamorada, mas na hora de mandar as cartas, rasgou as eróticas, foram só as outras. Ainda durante esse período começou pra ele um suéter de tricô verde, linha dupla (o calor do cão, mas nesta cidade, nunca se sabe) e duas vezes pediu ao Rôni que lhe telefonasse disfarçando a voz, como se fosse o locutor do programa Intimidade no Ar, para avisar que em tal e tal horário nobre a Pomba Enamorada tinha lhe dedicado um bolero especial. É muito, muito macho, comentou o Rôni com um sorriso pensativo depois que desligou. E só devido a muita insistência acabou contando que ele bufou de ódio e respondeu que não queria ouvir nenhum bolero do caralho, Diga a ela que viajei, que morri! Na noite em que terminou a novela com o Doutor Amândio felicíssimo ao lado de Laurinha, quando depois de tantas dificuldades venceu o amor verdadeiro, ela enxugou as lágrimas, acabou de fazer a barra do vestido novo e no dia seguinte, alegando cólicas fortíssimas, saiu mais cedo pra cercá-lo na saída do serviço.

Chovia tanto que quando chegou já estava esbagaçada e com o cílio postiço só no olho esquerdo, o do direito já tinha se perdido no aguaceiro. Ele a puxou pra debaixo do guarda-chuva, disse que estava putíssimo porque o Corinthians tinha perdido e entredentes lhe perguntou onde era seu ponto de ônibus. Mas a gente podia entrar num cinema, ela convidou, segurando tremente no seu braço, as lágrimas se confundindo com a chuva. Na Conselheiro Crispiniano, se não estava enganada, tinha em cartaz um filme muito interessante, ele não gostaria de esperar a chuva passar num cinema? Nesse momento ele enfiou o pé até o tornozelo numa poça funda, duas vezes repetiu, Essa filha da puta de chuva e empurrou-a para o ônibus estourando de gente e fumaça. Antes, falou bem dentro do seu ouvido que não o perseguisse mais porque já não estava aguentando, agradecia a camisa, o chaveirinho, os ovos de Páscoa e a caixa de lenços mas não queria namorar com ela porque estava namorando com outra, Me tire da cabeça, pelo amor de Deus, PELO AMOR DE DEUS! Na próxima esquina, ela desceu do ônibus, tomou condução no outro lado da rua, foi até a Igreja dos Enforcados, acendeu mais treze velas e quando chegou em casa pegou o Santo Antônio de gesso, tirou o filhinho dele, escondeu-o na gaveta da cômoda e avisou que enquanto Antenor não a procurasse não o soltava nem lhe devolvia o menino. Dormiu banhada em lágrimas, a meia de lã enrolada no pescoço por causa da dor de garganta, o retratinho de Antenor, três por quatro (que roubou da sua ficha de sócio do São Paulo Chique), com um galhinho de arruda, debaixo do travesseiro. No dia do Baile das Hortênsias, comprou um ingresso para cavalheiro, gratificou o bilheteiro que fazia ponto na Guaianases pra que levasse o ingresso na oficina e pediu à dona do salão que lhe fizesse o penteado da Catherine Deneuve que foi capa do último número de Vidas Secretas. Passou a noite olhando para a porta de entrada do baile. Na tarde seguinte comprou o disco Ave-Maria dos Namorados na liquidação, escreveu no postal a frase que Lucinha diz ao Mário na cena da estação, Te amo hoje mais do que ontem e menos do que amanhã, assinou P.E. e depois de emprestar dinheiro do Rôni foi deixar na encruzilhada perto da casa de Alzira o que o Pai Fuzô tinha lhe pedido há duas semanas pra se alegrar e cumprir os destinos: uma garrafa de champanhe e um pacote de cigarro Minister. Se ela quisesse um trabalho mais forte, podia pedir, Alzira ofereceu. Um exemplo? Se cosesse a boca de um sapo, o cara começaria a secar, secar e só parava o definhamento no dia em que a procurasse, era tiro e queda. Só de pensar em fazer uma ruindade dessas ela caiu em depressão, Imagine, como é que podia desejar uma coisa assim horrível pro homem que amava tanto? A preta respeitou sua vontade mas lhe recomendou usar alho virgem na bolsa, na porta do quarto e reservar um dente pra enfiar lá dentro. Lá dentro! ela se espantou, e ficou ouvindo outras simpatias só por ouvir, porque essas eram impossíveis para uma moça virgem: como ia pegar um pelo das injúrias dele pra enlear com o seu e enterrar os dois assim enleados em terra de cemitério? No último dia do ano, numa folga que mal deu pra mastigar um sanduíche, Rôni chamou-a de lado, fez um agrado em seus cabelos (Mas que macios, meu bem, foi o banho de óleo, foi?) e depois de lhe tirar da mão a xícara de café contou que Antenor estava de casamento marcado para os primeiros dias de janeiro. Desmaiou ali mesmo, em cima da freguesa que estava no secador.

Quando chegou em casa, a vizinha portuguesa lhe fez uma gemada (A menina está que é só osso!) e lhe ensinou um feitiço infalível, por acaso não tinha um retrato do animal? Pois colasse o retrato dele num coração de feltro vermelho e quando desse meio-dia tinha que cravar três vezes a ponta de uma tesoura de aço no peito do ingrato e dizer fulano, fulano, Como se chamava ele, Antenor? Pois, na hora dos pontaços, devia dizer com toda fé, Antenor, Antenor, Antenor, não vais comer nem dormir nem descansar enquanto não vieres me falar! Levou ainda um pratinho de doces pra São Cosme e São Damião, deixou o pratinho no mais florido dos jardins que encontrou pelo caminho (tarefa dificílima porque os jardins públicos não tinham flores e os particulares eram fechados com a guarda de cachorros) e foi vê-lo de longe na saída da oficina. Não pôde vê-lo porque (soube através de Gilvan, um chofer de praça muito bonzinho, amigo de Antenor) nessa tarde ele se casava com uma despedida íntima depois do religioso, no São Paulo Chique. Dessa vez não chorou: foi ao crediário Mappin, comprou um licoreiro, escreveu um cartão desejando-lhe todas as felicidades do mundo, pediu ao Gilvan que levasse o presente, escreveu no papel de seda do pacote um P. E. bem grande (tinha esquecido de assinar o cartão) e quando chegou em casa bebeu soda cáustica. Saiu do hospital cinco quilos mais magra, amparada por Gilvan de um lado e por Rôni do outro, o táxi de Gilvan cheio de lembrancinhas que o pessoal do salão lhe mandou. Passou, ela disse a Gilvan num fio de voz. Nem penso mais nele, acrescentou, mas prestou bem atenção em Rôni quando ele contou que agora aquele vira-folhas era manobrista de um estacionamento da Vila Pompeia, parece que ficava na rua Tito. Escreveu-lhe um bilhete contando que quase tinha morrido mas se arrependia do gesto tresloucado que lhe causara uma queimadura no queixo e outra na perna, que ia se casar com Gilvan que tinha sido muito bom no tempo em que esteve internada e que a perdoasse por tudo o que aconteceu. Seria melhor que ela tivesse morrido porque assim parava de encher o saco, Antenor teria dito quando recebeu o bilhete que picou em mil pedaços, isso diante de um conhecido do Rôni que espalhou a notícia na festa de São João do São Paulo Chique. Gilvan, Gilvan, você foi a minha salvação, ela soluçou na noite de núpcias enquanto fechava os olhos para se lembrar melhor daquela noite em que apertou o braço de Antenor debaixo do guarda-chuva. Quando engravidou, mandou-lhe um postal com uma vista do Cristo Redentor (ele morava agora em Piracicaba com a mulher e as gêmeas) comunicando-lhe o quanto estava feliz numa casa modesta mas limpa, com sua televisão a cores, seu canário e seu cachorrinho chamado Perereca.

Assinou por puro hábito porque logo em seguida riscou a assinatura, mas levemente, deixando sob a tênue rede de risquinhos a Pomba Enamorada e um coração flechado. No dia em que Gilvanzinho fez três anos, de lenço na boca (estava enjoando por demais nessa segunda gravidez) escreveu-lhe uma carta desejando-lhe todas as venturas do mundo como chofer de uma empresa de ônibus da linha Piracicaba-São Pedro. Na carta, colou um amor-perfeito seco. No noivado da sua caçula Maria Aparecida, só por brincadeira, pediu que uma cigana muito famosa no bairro deitasse as cartas e lesse seu futuro. A mulher embaralhou as cartas encardidas, espalhou tudo na mesa e avisou que se ela fosse no próximo domingo à estação rodoviária veria chegar um homem que iria mudar por completo sua vida, Olha ali, o Rei de Paus com a Dama de Copas do lado esquerdo. Ele devia chegar num ônibus amarelo e vermelho, podia ver até como era, os cabelos grisalhos, costeleta. O nome começava por A, olha aqui o Ás de Espadas com a primeira letra do seu nome. Ela riu seu risinho torto (a falha do dente já preenchida, mas ficou o jeito) e disse que tudo isso era passado, que já estava ficando velha demais pra pensar nessas bobagens mas no domingo marcado deixou a neta com a comadre, vestiu o vestido azul-turquesa das bodas de prata, deu uma espiada no horóscopo do dia (não podia ser melhor) e foi.



quinta-feira, 7 de abril de 2022

Lygia Fagundes Telles / Seminário dos Ratos

 


Lygia Fagundes Telles

Seminário dos Ratos 

Que século, meu Deus! — exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício.
Carlos Drummond de Andrade

O Chefe das Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes, ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de leve na porta do Secretário do Bem-Estar Público e Privado:

– Excelência?

O Secretário do Bem-Estar Público e Privado pousou o copo de leite na mesa e fez girar a poltrona de couro. Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas. Lançou um olhar comprido para os próprios pés, o direito calçado, o esquerdo metido num grosso chinelo de lã com debrum de pelúcia.

– Pode entrar — disse ao Chefe das Relações Públicas que já espiava pela fresta da porta. Entrelaçou as mãos na altura do peito. — Então? Correu bem o coquetel?

Tinha a voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem empertigou-se.

Um ligeiro rubor cobriu-lhe o rosto bem escanhoado.

– Tudo perfeito, Excelência. Perfeito. Foi no Salão Azul, que é menor, Vossa Excelência sabe. Poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e — consultou o relógio — veja, Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O Assessor da Presidência da RATESP está instalado na ala norte, vizinho do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que está ocupando a suíte cinzenta. Já a Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul. Por sinal, deixei-os há pouco na piscina, o crepúsculo está deslumbrante, Excelência, deslumbrante!

– O senhor disse que o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas está ocupando a suíte cinzenta. Por que cinzenta?

O jovem pediu licença para se sentar. Puxou a cadeira, mas conservou uma prudente distância da almofada onde o Secretário pousara o pé metido no chinelo. Pigarreou.

— Bueno, escolhi as cores pensando nas pessoas — começou com certa hesitação. Animou-se: — A suíte do Delegado Americano, por exemplo, é rosa- forte. Eles gostam das cores vivas. Para a de Vossa Excelência escolhi este azul- pastel, mais de uma vez vi Vossa Excelência de gravata azul… Já para a suíte norte me ocorreu o cinzento, Vossa Excelência não gosta da cor cinzenta?

O Secretário moveu com dificuldade o pé estendido na almofada. Levantou a mão. Ficou olhando a mão.

– É a cor deles. Rattus alexandrinus.

– Dos conservadores?

– Não, dos ratos. Mas enfim, não tem importância, prossiga, por favor. O senhor dizia que os americanos estão na piscina, por que os? Veio mais de um?

– Pois com o Delegado de Massachusetts veio também a secretária, uma jovem. E veio ainda um ruivo de terno xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado, está sempre ao lado dos dois. Suponho que é um guarda-costas, mas é simples suposição, Excelência, o cavalheiro em questão é uma incógnita. Só falam inglês. Aproveitei para conversar com eles, completei há pouco meu curso de inglês para executivos. Se os debates forem em inglês, conforme já foi aventado, darei minha colaboração. Já o castelhano eu domino perfeitamente, enfim, Vossa Excelência sabe, Santiago, Buenos Aires…

– Fui contra a indicação. Desse americano — atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz. — Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós mesmos — acrescentou apontando para o pé em cima da almofada. — Por que não apareci ainda, por quê? Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã calço o sapato para a instalação, de bom grado faço esse sacrifício. O senhor, que é um candidato em potencial, desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos.

– Mas Vossa Excelência me permite, esse americano é um técnico em ratos, nos Estados Unidos também têm muitos ratos, ele poderá nos trazer sugestões preciosas. Aliás, estive sabendo que é um expert em jornalismo eletrônico.

– Pior ainda. Vai sair buzinando por aí — suspirou o Secretário, tentando mudar a posição do pé. — Enfim, não tem importância. Prossiga, prossiga, queria que me informasse sobre a repercussão. Na imprensa, é óbvio.

O Chefe das Relações Públicas pigarreou discretamente, murmurou um bueno e apalpou os bolsos. Pediu licença para fumar.

– Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local. Por que instalar o VII Seminário dos Roedores numa casa de campo, completamente isolada? Essa a primeira indagação geral. A segunda é que gastamos demais para tornar esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos. O noticiarista de um vespertino, marquei bem a cara dele, Excelência, esse chegou a ser insolente quando rosnou que tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína…

O Secretário passou o lenço na calva e procurou se sentar mais confortavelmente. Começou um gesto que não se completou.

– Gastando milhões? Bilhões estão consumindo esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas? Estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou então, amigo dos ratos. Enfim, não tem importância, prossiga por favor.

– Mas são essas as críticas mais severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e aquela eterna tecla que não cansam de bater, que já estamos no VII Seminário e até agora, nada de objetivo, que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do I Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante, que nas favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata d’água na cabeça – acrescentou contendo uma risadinha. — O de sempre… Não se conformam é de nos reunirmos em local retirado, que devíamos estar lá no Centro, dentro do problema. Nosso Assessor de Imprensa já esclareceu o óbvio, que este Seminário é o Quartel-General de uma verdadeira batalha! E que traçar as coordenadas de uma ação conjunta deste porte exige meditação. Lucidez. Onde poderiam os senhores trabalhar senão aqui, respirando um ar que só o campo pode oferecer? Nesta bendita solidão, em contato íntimo com a natureza… O Delegado de Massachusetts achou genial essa ideia do encontro em pleno campo. Um moço muito gentil, tão simples. Achou excelente nossa piscina térmica, Vossa Excelência sabia? Foi campeão de nado de peito, está lá se divertindo, adorou nossa água-de-coco! Contou-me uma coisa curiosa, que os ratos do Polo Norte têm pelos deste tamanho para aguentar o frio de trinta abaixo de zero, se guarnecem de peliças, os marotos. Podiam viver em Marte, uma saúde de ferro!

O Secretário parecia pensar em outra coisa quando murmurou evasivamente um “enfim”. Levantou o dedo pedindo silêncio. Olhou com desconfiança para o tapete. Para o teto.

– Que barulho é esse?

– Barulho?

– Um barulho esquisito, não está ouvindo?

O Chefe das Relações Públicas voltou a cabeça, concentrado.

– Não estou ouvindo nada…

– Já está diminuindo — disse o Secretário, baixando o dedo almofadado. — Agora parou. Mas o senhor não ouviu? Um barulho tão esquisito, como se viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto… Não ouviu mesmo?

O jovem arregalou os olhos de um azul inocente.

– Absolutamente nada, Excelência. Mas foi aqui no quarto?

– Ou lá fora, não sei. Como se alguém… — Tirou o lenço, limpou a boca e suspirou profundamente. — Não me espantaria nada se cismassem de instalar aqui algum gravador. O senhor se lembra? Esse Delegado americano…

– Mas, Excelência, ele é convidado do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas!

– Não confio em ninguém. Em quase ninguém — corrigiu o Secretário num sussurro. Fixou o olhar suspeitoso na mesa. Nos baldaquins azuis da cama. — Onde essa gente está, tem sempre essa praga de gravador. Enfim, não tem importância, prossiga, por favor. E o Assessor de Imprensa?

– Bueno, ontem à noite ele sofreu um pequeno acidente, Vossa Excelência sabe como anda o nosso trânsito! Teve que engessar um braço. Só pode chegar amanhã, já providenciei o jatinho — acrescentou o jovem com energia. — Na retaguarda fica toda uma equipe armada para a cobertura. Nosso Assessor vai pingando o noticiário por telefone, criando suspense até o encerramento, quando virão todos num jato especial, fotógrafos, canais de televisão, correspondentes estrangeiros, uma apoteose. Finis coronat opus, o fim coroa a obra!

– Só sei que ele já deveria estar aqui, começa mal — lamentou o Secretário inclinando-se para o copo de leite. Tomou um gole e teve uma expressão desaprovadora. — Enfim, o que me preocupava muito é ficarmos incomunicáveis. Não sei mesmo se essa ideia do Assessor da Presidência da RATESP vai funcionar, isso de deixarmos os jornalistas longe. Tenho minhas dúvidas.

– Vossa Excelência vai me perdoar, mas penso que a cúpula se valoriza ficando assim inacessível. Aliás, é sabido que uma certa distância, um certo mistério excita mais do que o contato diário com os meios de comunicação. Nossa única fonte vai soltando notícias discretas, influindo sem alarde até o encerramento, quando abriremos as baterias! Não é uma boa tática?

Com dedos tamborilantes, o Secretário percorreu vagamente os botões do colete. Entrelaçou as mãos e ficou olhando as unhas polidas.

– Boa tática, meu jovem, é influenciar no começo e no fim todos os meios de comunicação do país. Esse é o objetivo. Que já está prejudicado com esse assessor de perna quebrada.

– Braço, Excelência. O antebraço, mais precisamente.

O Secretário moveu penosamente o corpo para a direita e para a esquerda.

Enxugou a testa. Os dedos. Ficou olhando para o pé em cima da almofada.

– Hoje mesmo o senhor poderia lhe telefonar para dizer que estrategicamente os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro controle. A ligação é demorada?

– Bueno, cerca de meia hora. Peço já, Excelência?

O Secretário foi levantando o dedo. Abriu a boca. Girou a cadeira em direção da janela. Com o mesmo gesto lento, foi se voltando para a lareira.

– Está ouvindo? Está ouvindo? O barulho. Ficou mais forte agora!

O jovem levou a mão à concha da orelha. A testa ruborizou-se no esforço da concentração. Levantou-se e andou na ponta dos pés.

– Vem daqui, Excelência? Não consigo perceber nada!

– Aumenta e diminui. Olha aí, em ondas, como um mar… Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha aí… Tombou para o espaldar da poltrona exausto. Enxugou o queixo úmido. — Quer dizer que o senhor não ouviu nada?

O Chefe das Relações Públicas arqueou as sobrancelhas perplexas. Espiou dentro da lareira. Atrás da poltrona. Levantou a cortina da janela e olhou para o jardim.

– Tem dois empregados lá no gramado, motoristas, creio… Ei, vocês aí!… — chamou, estendendo o braço para fora. Fechou a janela. — Sumiram. Pareciam agitados, talvez discutissem, mas suponho que nada tenham a ver com o barulho. Não ouvi coisa alguma, Excelência. Escuto tão mal deste ouvido!

– Pois eu escuto demais, devo ter um ouvido suplementar. Tão fino. Quando fiz a Revolução de 32 e depois, no Golpe de 64, era sempre o primeiro do grupo a pressentir qualquer anormalidade. O primeiro! Lembro que uma noite avisei meus companheiros, O inimigo está aqui com a gente, e eles riram, Bobagem, você bebeu demais, tínhamos tomado no jantar um vinho delicioso. Pois quando saímos para dormir, estávamos cercados.

O Chefe das Relações Públicas teve um olhar de suspeita para a estatueta de bronze em cima da lareira, uma opulenta mulher de olhos vendados, empunhando a espada e a balança. Estendeu a mão até a balança. Passou o dedo num dos pratos empoeirados. Olhou o dedo e limpou-o com um gesto furtivo no espaldar da poltrona.

– Vossa Excelência quer que eu vá fazer uma sondagem? O Secretário estendeu doloridamente a perna. Suspirou.

– Enfim, não tem importância. Nestas minhas crises sou capaz de ouvir alguém riscando um fósforo na sala.

Entre consternado e tímido, o jovem apontou para o pé enfermo.

– É algo… grave?

– A gota.

– E dói, Excelência?

– Muito.

– Pode ser a gota d’água! Pode ser a gota d’água! — cantarolou ele, ampliando o sorriso que logo esmoreceu no silêncio taciturno que se seguiu à sua intervenção musical. Pigarreou. Ajustou o nó da gravata. — Bueno, é uma canção que o povo canta por aí.

– O povo, o povo — disse o Secretário do Bem-Estar Público, entrelaçando as mãos. A voz ficou um brando queixume. — Só se fala em povo e no entanto o povo não passa de uma abstração.

– Abstração, Excelência?

– Que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou a roer os pés das crianças da periferia, então, sim, o povo passa a existir nas manchetes da imprensa de esquerda. Da imprensa marrom. Enfim, pura demagogia. Aliada às bombas dos subversivos, não esquecer esses bastardos que parecem ratos — suspirou o Secretário, percorrendo languidamente os botões do colete. Desabotoou o último. — No Egito Antigo resolveram esse problema aumentando o número de gatos. Não sei por que aqui não se exige mais da iniciativa privada, se cada família tivesse em casa um ou dois gatos esfaimados…

– Mas Excelência, não sobrou nenhum gato na cidade, já faz tempo que a população comeu tudo. Ouvi dizer que dava um ótimo cozido!

– Enfim — sussurrou o Secretário esboçando um gesto que não completou.

– Está escurecendo, não?

O jovem levantou-se para acender as luzes. Seus olhos sorriam intensamente.

– E à noite, todos os gatos são pardos! — Depois, sério. — Quase sete horas, Excelência! O jantar será servido às oito, a mesa decorada só com orquídeas e frutas. A mais fina cor local, encomendei do Norte abacaxis belíssimos! E as lagostas, então? O Cozinheiro-Chefe ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão grandes. Bueno, eu tinha pensado num vinho nacional que anda de primeiríssima qualidade, diga-se de passagem, mas me veio um certo receio: e se der alguma dor de cabeça? Por um desses azares, Vossa Excelência já imaginou? Então achei prudente encomendar vinho chileno.

– De que safra?

– De Pinochet, naturalmente.

O Secretário do Bem-Estar Público e Privado baixou o olhar ressentido para o próprio pé.

– Para mim um caldo sem sal, uma canjinha rala. Mais tarde talvez um… — Emudeceu. A cara pasmada foi-se voltando para o jovem: — Está ouvindo agora? Está mais forte, ouviu isso? Fortíssimo!

O Chefe das Relações Públicas levantou-se de um salto. Apertou entre as mãos a cara ruborizada.

– Mas claro, Excelência, está repercutindo aqui no assoalho, o assoalho está tremendo! Mas o que é isso?!

– Eu não disse, eu não disse? — perguntou o Secretário. Parecia satisfeito: — Nunca me enganei, nunca! Já faz horas que estou ouvindo coisas, mas não queria dizer nada, podiam pensar que fosse delírio. Olha aí agora! Parece até que estamos em zona vulcânica, como se um vulcão fosse irromper aqui embaixo…

– Vulcão?

– Ou uma bomba, têm bombas que antes de explodir dão avisos!

– Meu Deus — exclamou o jovem. Correu para a porta. — Vou verificar imediatamente, Excelência. Não se preocupe, não há de ser nada, com licença, volto logo. Meu Deus, zona vulcânica?!…
Quando fechou a porta atrás de si, abriu-se a porta em frente e pela abertura introduziu-se uma carinha louramente risonha. Os cabelos estavam presos no alto por um laçarote de bolinhas amarelas.

– What is that?

– Perhaps nothing… perhaps something… — respondeu ele, abrindo o sorriso automático. Acenou-lhe com um frêmito de dedos imitando asas. — Supper at eight, Miss Gloria!

Apressou o passo quando viu o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas que vinha com seu chambre de veludo verde. Encolheu-se para lhe dar passagem, fez uma mesura, “Excelência” e quis prosseguir mas teve a passagem barrada pela montanha veludosa.

– Que barulho é esse?

– Bueno, também não sei dizer, Excelência, é o que vou verificar. Volto num instante. Não é mesmo estranho? Tão forte!

O Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas farejou o ar:

– E esse cheiro? O barulho diminuiu, mas não está sentindo um cheiro? — Franziu a cara. — Uma maçada! Cheiros, barulhos e o telefone que não funciona… Por que o telefone não está funcionando? Preciso me comunicar com a Presidência e não consigo, o telefone está mudo!

– Mudo? Mas fiz dezenas de ligações hoje cedo… Vossa Excelência já experimentou o do Salão Azul?

– Venho de lá. Também está mudo, uma maçada! Procure meu motorista, veja se o telefone do meu carro está funcionando, tenho que fazer essa ligação urgente.

– Fique tranquilo, Excelência. Vou tomar providências e volto em seguida.

Com licença, sim? — fez o jovem, esgueirando-se numa mesura rápida. Enveredou pela escada. Parou no primeiro lance: — Mas o que significa isso? Pode me dizer o que significa isso?

Esbaforido, sem o gorro e com o avental rasgado, o Cozinheiro-Chefe veio correndo pelo saguão. O jovem fez um gesto enérgico e precipitou-se ao seu encontro.

– Como é que o senhor entra aqui neste estado?

O homem limpou no peito as mãos sujas de suco de tomate.

– Aconteceu uma coisa horrível, doutor! Uma coisa horrível!

– Não grita, o senhor está gritando, calma — e o jovem tomou o Cozinheiro- Chefe pelo braço, arrastou-o a um canto. — Controle-se. Mas o que foi? Sem gritar, não quero histerismo, vamos, calma, o que foi?

– As lagostas, as galinhas, as batatas, eles comeram tudo! Tudo! Não sobrou nem um grão de arroz na panela. Comeram tudo e o que não tiveram tempo de comer levaram embora!

– Mas quem comeu tudo? Quem?

– Os ratos, doutor, os ratos!

– Ratos?!… Que ratos?

O Cozinheiro-Chefe tirou o avental, embolou-o nas mãos.

– Vou-me embora, não fico aqui nem mais um minuto. Acho que a gente está no mundo deles. Pela alma da minha mãe, quase morri de susto quando entrou aquela nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclídea! Até os panos de prato eles comeram. Só respeitaram a geladeira que estava fechada, mas a cozinha ficou limpa, limpa!

– Ainda estão lá?

– Não, assim como entrou saiu tudo guinchando feito doido. Eu já estava ouvindo fazia um tempinho aquele barulho, me representou um veio d’água correndo forte debaixo do chão, depois martelou, assobiou, a Euclídea que estava batendo maionese pensou que fosse um fantasma quando começou aquela tremedeira e na mesma hora entrou aquilo tudo pela janela, pela porta, não teve lugar que a gente olhasse que não desse com o monte deles guinchando! E cada ratão, viu? Deste tamanho! A Euclídea pulou em cima do fogão, eu pulei em cima da mesa, ainda quis arrancar uma galinha que um deles ia levando assim no meu nariz, taquei o vidro de suco de tomate com toda força e ele botou a galinha de lado, ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito um homem.

Pela alma da minha mãe, doutor, me representou um homem vestido de rato!

– Meu Deus, que loucura… E o jantar?!

– Jantar? O senhor disse jantar?! Não ficou nem uma cebola! Uma trempe deles virou o caldeirão de lagostas e a lagostada se espalhou no chão, foi aquela festa, não sei como não se queimaram na água fervendo. Cruz-credo, vou me embora e é já!

– Espera, calma! E os empregados? Ficaram sabendo?

– Empregados, doutor? Empregados? Todo mundo já foi embora, ninguém é louco! E se eu fosse vocês, também me mandava, viu? Não fico aqui nem que me matem!

– Um momento, espera! O importante é não perder a cabeça, está me compreendendo? O senhor volta lá, abre as latas, que as latas ainda ficaram, não ficaram? A geladeira não estava fechada? Então, deve ter alguma coisa, prepare um jantar com o que puder, evidente!

– Não, não! Não fico nem que me matem!

– Espera, eu estou falando: o senhor vai voltar e cumprir sua obrigação. O importante é que os convidados não fiquem sabendo de nada, disso me incumbo eu, está me compreendendo? Vou já até a cidade, trago um estoque de alimentos e uma escolta de homens armados até os dentes, quero ver se vai entrar um mísero camundongo nesta casa, quero ver!

– Mas o senhor vai como? Só se for a pé, doutor.

O Chefe das Relações Públicas empertigou-se. A cara se tingiu de cólera.

Apertou os olhinhos e fechou os punhos para soquear a parede, mas interrompeu o gesto quando ouviu vozes no andar superior. Falou quase entredentes.

– Covardes, miseráveis! Quer dizer que os empregados levaram todos os carros? Foi isso, levaram os carros?

– Levaram nada, fugiram a pé mesmo, nenhum carro está funcionando. O José experimentou um por um, viu? Os fios foram comidos, comeram também os fios. Vocês fiquem aí que eu vou pegar a estrada e é já!

O jovem encostou-se na parede, a cara agora estava lívida. “Quer dizer que o telefone…”, murmurou e cravou o olhar estatelado no avental que o Cozinheiro- Chefe largou no chão. As vozes no andar superior começaram a se cruzar. Uma porta bateu com força. Encolheu-se mais no canto quando ouviu seu nome: era chamado aos gritos. Com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido como se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível. Foi a última coisa que viu, porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se apagaram. Então, deu- se a invasão, espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos. Quando a primeira dentada lhe arrancou um pedaço da calça, ele correu sobre o chão enovelado, entrou na cozinha com os ratos despencando na sua cabeça e abriu a geladeira. Arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os e num salto, pulou lá dentro. Fechou a porta, mas deixou o dedo na fresta, que a porta não batesse. Quando sentiu a primeira agulhada na ponta do dedo que ficou de fora, substituiu o dedo pela gravata.

No rigoroso inquérito que se processou para apurar os acontecimentos daquela noite, o Chefe das Relações Públicas jamais pôde precisar quanto tempo teria ficado dentro da geladeira, enrodilhado como um feto, a água gelada pingando na cabeça, as mãos endurecidas de câimbra, a boca aberta no mínimo vão da porta que de vez em quando algum focinho tentava forcejar. Lembrava- se, isso sim, de um súbito silêncio que se fez no casarão: nenhum som, nenhum movimento. Nada. Lembrava-se de ter aberto a porta da geladeira. Espiou. Um tênue raio de luar era a única presença na cozinha esvaziada. Foi andando pela casa completamente oca, nem móveis, nem cortinas, nem tapetes. Só as paredes. E a escuridão. Começou então um murmurejo secreto, rascante, que parecia vir da Sala de Debates e teve a intuição de que estavam todos reunidos ali, de portas fechadas. Não se lembrava sequer de como conseguiu chegar até o campo, não poderia jamais reconstituir a corrida, correu quilômetros. Quando olhou para trás, o casarão estava todo iluminado.