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domingo, 13 de agosto de 2023

Dialogue Boxes on Street Windows / Traçando fronteiras, o público e o privado na cartografia das cidades contemporâneas

 


*Dialogue Boxes on Street Windows*, Faro, Portugal, 2009



Dialogue Boxes on Street Windows

Traçando fronteiras, o público e o privado na cartografia das cidades contemporâneas

22 AGOSTO 2014, 

“O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade”‒. Italo Calvino

Vivemos numa época em que um vale-tudo no campo das Artes promove uma autêntica dessacralização dos termos e dos usos, no bom e no mau sentido. No bom sentido, promovendo uma aproximação entre a arte e vida, permitindo que os lugares considerados do saber sejam convertidos em lugares do sabor, da possibilidade lúdica da criação artística que ultrapassa fronteiras diversas. No mau sentido, por promover uma deseducação do público e um crescente afastamento do mesmo em relação àquilo que é artístico. Arte Pública é um termo historicamente consagrado, com diversas manifestações que, ao longo do século XX e no século XXI, esteve ligado a um princípio que não pode ser esquecido: intervir no espaço urbano é uma atitude política. É um ato que afeta a comunidade envolvente e, como tal, deve pensar o seu papel e conhecer a sua função.

No início do século XX, o Dr. ATL (pseudónimo do pintor e escritor Gerardo Murillo) publicou um manifesto defendendo a necessidade de uma arte pública. Em Barcelona, alguns anos mais tarde, o artista mexicano David Alfaro Siqueiros fez apelo aos artistas da América proclamando a necessidade de se lançarem todos na tarefa de promover uma arte capaz de falar às multidões: “Pintaremos os muros das ruas e das paredes dos edifícios públicos, dos sindicatos, de todos os cantos onde se reúne gente que trabalha”. O muralismo mexicano é um dos grandes exemplos de Arte Pública com uma função político-social inegável, que buscou levar a arte ao público, que de outra maneira não poderia ser por ela atingido. Não só levar a arte para o público como transformar os muros das grandes cidades e painéis de edifícios em superfícies especulares onde a classe trabalhadora se revia. No contexto do seu nascimento, o muralismo mexicano refletia sobre três questões fundamentais: a questão do nacionalismo, a ideia de classes populares e os princípios revolucionários. O povo, sobretudo os autóctones, não estavam representados nas camadas do poder e não tinham sequer direito à representação da sua imagem e a difusão dos seus princípios estéticos. A arte retratava o mundo europeu, conforme regras europeias e afastava tudo aquilo que se mostrasse como um desvio destes princípios. Assim sendo, a proposta de Siqueiros é duplamente revolucionária – ele propunha que as identidades nacionais fossem resgatadas e que se refletisse na produção artística mexicana. Além disso, era no espaço público que esta batalha deveria ser travada, retirando do universo elitista da produção e circulação da arte as obras que tinham uma função político-social bastante definida: uma arte feita para o povo e sobre o povo.

Este movimento foi protagonizado por três grandes artistas: Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco. O ciclo de frescos pintados por Orozco na Escola Nacional Preparatória e os murais de Rivera no pátio do Ministério da Educação aparecem como ponto alto deste período artístico revolucionário, que tem início na década de 20 do século XX, e que se expande, a partir dos anos 30, além-fronteiras para países como Brasil, Estados Unidos e Peru. O muralismo consolidou-se como a arte representativa do período pós-revolucionário, seguindo “seu generoso anseio de servir a causa do homem: dos campesinos, dos trabalhadores, dos sobreviventes da dramática contenda da guerra civil, com um saldo de milhões de mortos” (1).

Seguindo os passos do muralismo mexicano, o artista norte-americano George Biddle propõe em 1933, ao então presidente Roosevelt, a criação de um projeto nacional para as artes. Surge aquilo que ficou conhecido com a Arte do New Deal, que originou dois tipos de apoio do governo aos artistas da época, promovendo, ao mesmo tempo, a criação de um acervo nacional e público da obra daqueles artistas. Através de dois projetos, o Public Works of Art Project e o Federal Art Program, 5.000 artistas, durante quase 10 anos, produziram cerca de 2500 frescos, 18 mil esculturas, 108 mil pinturas, 200 mil cópias de gravuras e 200 mil cartazes. Um crítico da época, Francis O’Connor, definiu a Arte do New Deal como “uma arte para milhões”. A ideia era precisamente esta: através da arte tentar promover o rejuvenescimento espiritual de que o país necessitava em tempo de crise.

Biddle acreditava que a arte poderia servir de base para a construção de um projeto social inclusivo e democrático. Acreditava no papel do Estado como patrocinador ou mecenas da arte. Numa entrevista concedida a Harlan Phillips para o Archive of American Art, em 1963, Biddle refere a sua experiência com os três grandes artistas mexicanos e o papel que o muralismo mexicano teve na arte do New Deal, influenciando toda uma geração de jovens artistas norte-americanos (2).

A relação entre arte pública e política nem sempre é explícita ou está enquadrada num programa ou movimento revolucionário. Durante o século XX a arte foi abandonando os lugares tradicionais de exibição e foi ampliando o seu alcance em busca de criar novas linguagens e de repensar o papel da arte na nossa cultura. Exemplo disto é o que aconteceu com a Land Art e suas diversas vertentes como a Environmental Art: o espaço deixa de ser um motivo e converte-se no suporte. Obras como a de Robert Smithson e Michael Heizer questionam a própria ideia de objeto/obra de arte e convidam o espectador a penetrar na obra para vivenciá-la plenamente. A natureza distante torna-se visível através das intervenções de artistas que provocam reações diversas no público e desestabilizam a ideia da obra de arte mercantilizável. O espaço abre-se para novas experiências, seja fora ou dentro dos centros urbanos. O limite entre arte-não arte, público-privado, real-representação torna-se cada vez mais diluído e permite aos artistas experimentarem novos formatos e proporem novas experiências/vivências.

A arte reclama novos critérios de validação e novos espaços, desafiando constantemente as classificações habituais. A partir da 2ª Guerra Mundial, as obras articulam cada vez mais novas e múltiplas linguagens e tentam dirigir a criação artística às coisas do mundo. Numa abordagem menos político-ideológica, mas não menos interessante, o argentino Lucio Fontana, escreve o seu Manifiesto Blanco em 1946, onde cria a teoria do espacialismo. Neste manifesto, Fontana propunha a colaboração estreita entre arte e ciência no desenvolvimento e na síntese de novas ideias e materiais. O desejo de Fontana, e de outros artistas que assinam também o manifesto, era o de projetar cores e formas num espaço real, utilizando técnicas como luz néon e a televisão, ao mesmo tempo que negava num espaço ilusório criado na pintura tradicional. Em 1947, o artista apresenta a obra inaugural do movimento ‒ uma sala pintada de preto ‒ designando-a Ambiente Espacial Negro, e reafirma as ideias do manifesto publicado no ano anterior com a divulgação do Manifesto Técnico do Espacialismo, que exalta a importância do espaço real, existente além da tela e da escultura, e o uso da ciência e da tecnologia na transformação plástica desse ambiente. A ideia chave de Fontana era invadir o espaço, extra-tela e extra-muros, para modificá-lo através da arte, provocando no público reações distintas e estimulando o nascimento de um novo olhar para o espaço circundante.

Assim, de diversas maneiras, a arte pública pode ser vista como uma arte fisicamente acessível, que modifica a paisagem, de modo permanente ou temporário. Seja através de técnicas tradicionais, como o Muralismo mexicano, ou da junção arte/tecnologia, proposta por Fontana, o essencial é que a proposta desta Arte, que invade os espaços fora dos tradicionais museus e galerias, é o de alterar a paisagem ordinária. Em alguns casos, promovendo a recuperação de espaços degradados e provocando um debate cívico.

O conceito de Arte Pública voltou a ganhar visibilidade a partir do início dos anos 70 do século XX e serviu para caracterizar um novo tipo de intervenção artística no espaço público que se distinguia do tradicional monumento comemorativo. Na passagem do século XIX para o século XX, artistas como Rodin, Brancusi e Picasso vão realizar obras que negam o conceito de monumentalidade da arte pública tradicional. O importante, para estes artistas, era a dessacralização do espaço tradicional de exibição da arte bem como a penetração no tecido urbano com obras que revelam um novo olhar diante do mundo. O espaço urbano vai, aos poucos, ser convertido num local por excelência da experimentação artística. Entre os anos 60 e 70 houve uma explosão de ideias que levou à invasão do espaço urbano, provocado pela necessidade de a arte, uma vez mais, afirmar-se como tal num mundo agora convertido em local de consumo.

A sociedade contemporânea vive num estado de psicastenia: perda dos limites espaciais. Este termo, utilizado por Celeste Olalquiaga, representa uma das muitas condições contemporâneas: “A psicastenia, definida como uma perturbação da relação entre o eu e o território em torno, é um estado em que o espaço definido pelas coordenadas do próprio organismo se confunde com o espaço representado” (3). Ou seja, o corpo do sujeito confunde-se com o ambiente e torna-se parte deste, perdendo, durante o processo, a sua condição de entidade própria. O processo é típico das culturas urbanas e já foi, de alguma maneira, retratado por Edgar Allan Poe no seu conto O Homem da Multidão, editado em 1840. No conto, Poe narra a história de um homem que se depara com um novo ser, desconhecido e não reconhecível, “o homem da multidão” – uma criatura que se confunde com o ambiente em que vive e, como uma espécie de camaleão, camufla a sua presença tornando-se invisível aos olhos mais desavisados. O conto de Poe mereceu a atenção de Baudelaire que, ao refletir sobre a ideia de Modernidade, usa a imagem de Poe para situar o novo homem que surgira no século XIX, após a Revolução Industrial e durante o processo de metropolização das grandes capitais europeias.

O espaço urbano, e a condição de quem nele vive, alteram-se profundamente no século XIX e esta mudança vai tornar-se cada vez mais visível no decorrer do século XX. Há uma crescente perturbação da relação entre o eu e o território que nos rodeia. O nosso organismo, dificilmente, consegue traçar as coordenadas que dividem o espaço da experiência real com o da experiência virtual. Espaço e representação se (con)fundem. Isto porque, além da relação constante com as novas teletecnologias, que comprimem e alteram a nossa relação espácio-temporal, as cidades há muito que se converteram em galerias a céu aberto, onde anúncios diversos, grafites, fios, luzes, cartazes, montras e muitos outros elementos, promovem uma saturação sensorial onde o corpo, para defender-se, metamorfoseia-se e confunde-se com o espaço que palmilha. Por isto a questão do espaço tem sido uma constante entre os artistas contemporâneos. É necessário promover uma nova cartografia, recriar este espaço saturado e apropriar-se dele, traçando necessárias fronteiras para que o olhar volte, novamente, a ver. Para que a Arte seja, novamente, um gesto de intervenção e provocação.

Dialogue Boxes on Street Windows

Na terceira edição do programa Art Allgarve, em 2009, foi pela primeira vez integrada uma componente regional, para a qual contribuíram docentes e alunos de Artes Visuais da UAlg – os primeiros enquanto curadores (Alexandre Barata/Xana e Mirian Tavares), os segundos enquanto artistas. O projeto Dialogue Boxes on Street Windows, composto por diversas intervenções produzidas por quatro artistas de renome e dez estudantes da UAlg, esteve nas ruas do centro histórico de Faro durante três meses, desde Junho até ao final de Setembro. Foi, comprovadamente, a exposição mais vista do Algarve já que as pessoas circulavam pelas ruas da baixa e do centro histórico de Faro conseguiram fruir, mesmo não intencionalmente, da arte que estava ali, ao lado delas. O projeto teve ainda uma vertente pedagógica pois tentou-se mostrar aos transeuntes, através do contraste entre as obras e o seu em torno, que nem tudo que está exposto na via pública é arte.

Dialogue Boxes on Street Windows visava, por um lado, recuperar a ideia inicial da Arte Pública como um processo de invasão do espaço urbano, promovendo a sua reconfiguração e, por outro, aproximar a arte do público que, em geral, não está habituado a ir a locais de exposição convencionais como galerias, centros de arte e museus. Nestas intervenções a arte afirma-se como um espaço de promoção do diálogo entre as pessoas, envolvendo-as e questionando-as. Foi um convite ao olhar crítico, à participação ativa no processo de construção de uma cidade de cultura e, obviamente, de uma cidade voltada para a cultura.

Há, com frequência, espaços que são esquecidos, ruas por onde não circulam pessoas, lugares que se tornam quase invisíveis, tão invisíveis que ninguém repara nas suas casas e fachadas, como se houvesse uma cidade oculta sob aquela mais solar. Assim, neste contexto, a ideia fundamental do projeto Dialogue Boxes on Street Windows foi o de criar uma cartografia alternativa, um percurso diverso que obrigasse as pessoas a olharem à cidade; (re)descobrirem cantos e recantos, deixarem-se perder em ruas transversais, em ruas por onde não costumam andar mas em que há muito que ver/viver. Se este património continuar escondido, deixará de fazer sentido no mapa da cidade e, perdendo assim a sua função, poderá ser destruído, não restando nem a sua memória: apenas um espaço vazio.

Os artistas e as obras

Os artistas escolhidos têm percursos muito diferentes mas possuem, como característica comum, um lado profundamente instigante e experimental em tudo o que fazem. António Costa Pinheiro nasceu em Moura em 1932 e muito cedo percebeu que a situação de repressão no país não o permitiria realizar grandes experimentações artísticas e culturais, assim sendo, emigrou à procura de um espaço para expor novas ideias.

A importância da sua obra, iniciada em finais da década de 50 e pouco depois integrada na ação do Grupo KWY, fez dele um dos mais significativos artistas da segunda metade do século XX em Portugal.

Para Dialogue Boxes on Street Windows, Costa Pinheiro recuperou parte da sua obra realizada entre 1967 e 1975, Citymobil – Arte-Projeto, que está integrada na fase conceptual do artista. Neste trabalho ele utilizou objetos que se organizam em narrativas dentro de uma cidade que é, permanentemente, transformada pelos seus habitantes. Ideia que se encaixou perfeitamente na proposta curatorial deste projeto e que continua a ser inovadora e instigante, mesmo após tantos anos.

Ana Vidigal nasceu em Lisboa em 1960, tendo estudado pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Entre 1985 e 1987 foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi pintora residente, de 1998 a 1999, no Museu de Arte Contemporânea na Fortaleza de S. Tiago, no Funchal. Fez inúmeras exposições individuais e coletivas, entre as quais se destacam: I Exposição Ibérica de Arte Moderna, em Campo Maior e Cáceres; Feminine Dialogue, para a UNESCO em Paris; Portuguese Contemporary Artists, no World Trade Center de Nova Iorque; Portugal Hoy, no Centro Cultural Conde Duque em Madrid; Pintoras Portuguesas do Século XX, na Galeria de Exposições do Leal Senado em Macau e Quando o Mundo Nos Cai em Cima, no Centro Cultural de Belém. Em 1995, Ana Vidigal foi convidada pelo Metro de Lisboa a realizar um painel de azulejos para a estação de Alvalade, tendo, sete anos mais tarde, executado vários painéis de azulejo para a estação de Alfornelos.

No projeto Dialogue Boxes on Street Windows Ana Vidigal decidiu explorar o espaço público através de um olhar, ao mesmo tempo, perverso e infantil, ao utilizar figuras que parecem saídas de ilustrações dos anos 50. Os painéis da artista colocaram o público na incómoda posição de voyeur, que participa, voluntariamente ou não, de uma série de jogos propostos por duas meninas, especulares, mas de tamanhos diferentes ‒ o que marca uma relação de poder e submissão. As janelas abrem-se de par em par e deixam que o público invada, completamente, o espaço privado, e sagrado, da inocência infantil.

Susanne Themlitz nasceu em Lisboa em 1968. Vive em Lisboa e Colónia. Em 1993, concluiu os estudos de Desenho e Escultura no Ar.Co, em Lisboa, tendo passado o ano de 1992 no Royal College of Art, em Londres. Em 1995, concluiu um mestrado na Kunstakademia de Düsseldorf. O seu trabalho, nas diversas técnicas e materiais que utiliza, é caracterizado pela presença de figuras assustadas, mutantes e insólitas, numa condição visivelmente marginal. O carácter onírico é acentuado pela ideia de que as figuras e paisagens indiciadas em seus trabalhos estão fora do tempo, como se habitassem um espaço mítico.

Neste projeto, Susanne Themlitz desenvolveu um trabalho inquietante, onde um edifício deixa de ter fronteiras entre o espaço de fora e o espaço de dentro – ambos passam a conviver, lado a lado, numa superfície externa. Não é preciso espreitar para dentro das janelas, a casa, como que esventrada, é exposta ao olhar de todos. Os elementos, que convivem na superfície do edifício, estão também eles fora do tempo e do espaço apropriados, remetendo-nos para o universo onírico da artista.

Manuel Batista nasceu em Faro em 1936. Em 1957, matricula-se em Arquitetura, curso que abandona para se dedicar exclusivamente à pintura. Em 1962, conclui o Curso Complementar de Pintura na ESBAL. Entre 1962 e 1963, está em Paris como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e, em 1968, em Ravena, como bolseiro da Alta Cultura. Foi assistente de Pintura na ESBAL entre 1964 e 1972. A partir de 1977, desloca-se regularmente a Lippstadt e Schmallenberg, na Alemanha, onde trabalha e realiza tapeçarias para a fábrica Folke. Vive e trabalha em Faro e em Lisboa.

O seu trabalho, que sofre modificações ao longo dos anos, pode ser caracterizado pela ideia de desconstrução e recomposição das superfícies. Há um cruzamento entre uma paisagem apenas sugerida e uma forte tendência ornamental. As cores são utilizadas no intuito de valorizar o seu brilho e transmitir um tom alegre e despreocupado.

Manuel Baptista trabalhou a dualidade entre as superfícies, a ideia de bidimensionalidade e de tridimensionalidade que se cruzam e se complementam, criando um efeito ornamental e decorativo, sem deixar de ser provocador. Uma provocação que evoca a Pop Art, recheada de ironia e bom humor, tornando o espaço público atraente e vivo, buscando atrair também o olhar do público que passa e que já não vê o espaço que o circunda.

As obras dos jovens artistas

Andreia Filipe, Alexandre Lima, Guilherme Gonçalves, Gustavo de Jesus, Joana Bárbara, Mara Barth, Paulo Quaresma, Tatiana Barreiros, Tiago Custódio e Úrsula Mestre foram os dez jovens artistas e estudantes recém-licenciados do curso de Artes Visuais da UAlg que invadiram o centro histórico de Faro, interpelando os transeuntes com várias abordagens. Os seus trabalhos seguiram caminhos muito diversos, desde a utilização de uma linguagem de banda desenhada, onde as personagens espreitam das janelas das casas para a rua que as envolve, até à presença de noivas suicidas, enquadradas num espaço real que se converte em espaço cénico. As técnicas utilizadas foram as mais variadas, passando por pinturas realizadas diretamente sobre a superfície das casas até ao trabalho realizado sobre materiais, como telas e madeiras, e posteriormente colocado nas fachadas.

Além dos trabalhos realizados nas fachadas de algumas casas do percurso, estiveram ainda expostas peças tridimensionais que ocuparam o passeio e os largos e que abrigaram, em muitos casos, performances dos alunos/artistas, que tiveram lugar ao longo do Verão, aos sábados à noite, dando assim uma dimensão ainda mais dinâmica e intensa à relação da arte com o espaço público. Foi o caso, por exemplo, da obra de Úrsula Mestre, com a instalação performativa Saia que gritas, que abordava as questões de género no século XXI através de três peças ‒ três saias das quais três mulheres se tentam libertar ‒, e da obra de Paulo Quaresma, que no contexto do projeto O meu abrigo é o meu templo encarnou a personagem de um sem-abrigo e criou uma casa de papelão, que levava às costas e montava em vários espaços da cidade.

O projeto, que esteve visível por três meses, entre Julho e Setembro de 2009, proporcionou aos habitantes da cidade e aos que a visitaram no período, uma experiência sensorial única que, deveria ser repetida mais vezes. Este poderia ser um trabalho mais continuado para que Faro, e outras cidades, pudessem sentir como a arte é capaz de transformar o espaço que a rodeia e criar novos itinerários dentro da mesma cidade.

Este projeto proporcionou ainda um momento único de aprendizagem para os alunos da licenciatura em Artes Visuais da UAlg bem como para os recém-formados que participaram na exposição enquanto artistas, pois aprenderam a trabalhar em condições complicadas, em superfícies inovadoras e a criar algo para uma exposição site specific, o que não é uma tarefa fácil.

Tentou-se, efetivamente, provocar um diálogo entre a cidade e as pessoas que nela habitam ou que por ela passam, todos os dias e quase já nem a veem. A cidade torna-se invisível pelo cansaço do olhar que vê sempre o mesmo e que acaba, por conseguinte, deixando de ver. Mesmo que a política de uma forma mais explícita não estivesse presente em nenhuma das obras, a atitude do projeto foi uma atitude profundamente politizada, provocando uma ligação entre a Arte Contemporânea, muitas vezes tão distante do público em geral e a cidade, intervindo de maneira a evitar os lugares-comuns que habitualmente povoam as ruas e criando uma proposta instigante para que as ruas da baixa de Faro, muitas delas quase desertas, pudessem ser novamente repovoadas e reabilitadas.

Notas
(1) Arenal de Siqueiros, Angélica, Vida y obra de David Alfaro Siqueiros, México, FCE, 1975, pp. 8-9.
(2) Oral history with George Biddle
(3) Olalquiaga, Celeste, Megalópolis. Sensibilidades Culturais Contemporâneas, São Paulo, Nobel, 1998, p. 24.

MEER


sábado, 5 de agosto de 2023

Manuel Baptista / Desenhos

 



Manuel Baptista

Desenhos

4 OUTUBRO 2014, 

O espaço em branco à volta dos desenhos é o outro lado. O lado onde a gente entra. Leonilson

Manuel Baptista nasceu em Faro, o que faz dele um artista local (coisa que ele nunca foi). Trabalhou em França e na Alemanha, entre os anos 60 e 70, sem deixar, no entanto, de participar da vida artística do seu país. A arte não pode ser localizada num espaço específico, ela não é fruto apenas da origem do seu autor, mas é um compósito de experiências, de vivências e de trocas. É fruto ainda do seu tempo, das exigências que este faz ao artista ao confrontá-lo com a História, que fica para trás, mas que pode permanecer como uma referência e como um ponto de partida. Como disse o filósofo espanhol Ortega y Gasset, eu sou eu e as minhas circunstâncias. A arte não vive fora do mundo, mas é parte essencial da sua própria composição e artistas como Manuel Baptista, que buscaram sempre estar adiante do seu próprio tempo, trazem, como marca, o símbolo da constante inquietação, que é uma das principais características da arte contemporânea.

Manuel Baptista experimentou formas, técnicas, suportes, linguagens. Experimentou movimentos e experimentou também não ostentar rótulos. Experimentou, de alguma forma, a solidão. E esta inquietude é visível nos desenhos que expõe agora: a mão do artista não para, desliza na superfície criando formas, sugerindo imagens, plasmando sombras. A sua obra, e sobretudo os seus desenhos, podem ser caracterizados pela ideia de desconstrução e de recomposição das superfícies. Há um cruzamento entre uma paisagem apenas sugerida e uma forte tendência ornamental. O ornamento, para o artista, não deve ser reprimido porque o tempo assim o exige. Há um lado solar, mesmo nas obras a preto e branco, que Manuel Baptista não pretende ocultar.

Alguns artistas fazem do vazio uma arte, tornando vívido o que não é visível. Os desenhos de Manuel Baptista jogam com as entrelinhas, como os espaços em branco. Mas no seu caso, não é o espaço em branco que determina a imagem. É a presença das linhas, ora robustas, ora delicadas, que preenchem o espaço em branco com as suas inquietações.


MEER


quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Edgar Massul / #Other free Works

 

Edgar Massul *das tuas margens, algumas plantas espremidas, 2014 (séries)



Edgar Massul

#Other free Works

22 JULHO 2014, 

“Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Hoje eu desenho o cheiro das árvores”. ‒ Manoel de Barros

T’avonde, no dialeto algarvio, significa basta. O termo deriva do latim abundare. A nova exposição do artista Edgar Massul, #Other free Works, é concebida a partir do espaço que atualmente o rodeia, o Algarve. E neste espaço ele tenta penetrar nos subtextos que abundam na região. A sua obra é um processo de constante desvelamento: nada está feito, as obras necessitam de tempo e são constituídas por tempo e espaço, mais do que de qualquer outra matéria. Nas paredes de uma ruína, à beira da Ria Formosa, o artista planeou escrever t’avonde. A obra não realizada concretiza-se na imagem do cartaz da exposição. Ao apropriar-se de um termo arcaico, da mesma maneira que os algarvios se apropriaram do latim, Massul assina um manifesto sutil mas efetivo: basta. Basta de ruínas que a contemporaneidade produz e descarta. Ruínas de um património material e imaterial, natural e construído.

A exposição integra três núcleos de obras, que se dividem entre a Galeria TREM e o Museu Municipal de Faro. O primeiro núcleo, na galeria, é composto pela instalação Teu espelho (2013) ‒ um tanque construído com areia e água da Ria Formosa. Água e areia são elementos que se movem, que se adequam ao espaço, que se absorvem. Todo o processo será fotografado e o resultado afixado nas paredes da galeria que se convertem numa time line. O espelho de Massul é reflexivo na medida em que o artista permite à matéria que se ajuste, que se adapte, que assuma a sua impermanência. Não é um reflexo cego, mas uma atitude pensada.

No Museu Municipal, que outrora foi uma fábrica de cortiça, Massul vai instalar uma peça no centro do claustro, thermal body (mother), (2013). A matéria aqui é a cortiça queimada de S. Brás ‒ restos que sobreviveram ao incêndio que devastou a serra algarvia e que destruiu parte de uma cultura secular, a dos sobreiros. À volta desta peça, que funciona como um totem ancestral, ainda informe, o artista expõe os seus desenhos, feitos de matéria orgânica ‒ lama, folhas e frutos esmagados sobre o papel. De tuas margens algumas plantas espremidas (2014) é um conjunto de desenhos, em técnica mista, que revelam e escondem a sua origem natural. No papel pressentimos os rastos, mas o que vemos é o resultado de uma organização trabalhada do e no espaço. Se a matéria é orgânica e se o processo revela o caos presente na natureza indomada, o resultado é domesticado pelo artista que concebe e experimenta texturas, traços, cores e manchas.

A obra de Edgar Massul necessita de tempo. Para ser feita, para ser apreciada, para existir. As peças que ele compôs, ao longo da sua vasta carreira, não são demasiadas. Porque o artista não tem pressa em produzir. Ele negoceia com os objetos que lhe vão ditando formas, maneiras, modos. É uma obra sobretudo matérica: cada objeto diz, na sua textura específica, de onde procede. Não diz para onde vai, porque aponta sempre para o infinito da multiplicidade de sentidos que as coisas simples possuem. E a simplicidade não é fácil. É preciso estar atento para que a obra, na sua delicadeza, se revele.

Para fechar o ciclo, ou para reiniciá-lo, o artista apresenta-nos um livro, Formosa, a love story book, (2014). Técnica mista sobre papel, encadernado de maneira artesanal. Como na peça que expôs no Centro de Artes de Sines, em 2010, onde o artista escrevia e ocultava um poema de Al Berto com a terra vermelha da região, o seu livro também esconde e revela uma história por trás das muitas histórias que ele decide contar: as histórias de uma ria, de suas margens que ora aprisionam, ora se expandem em busca do mar ao fundo. O caminho da ria é no fundo uma deambulação pelas terras, é um adiamento da chegada ao mar. A ria é um compósito de matérias, de formas, de percursos. E está tão presente que se torna, muitas vezes, invisível. E a arte de Massul tem esta função: revelar o invisível ou ajudar-nos a voltar a ver. Entre a impermanência da matéria orgânica e a permanência da memória das coisas, o seu trabalho dialoga com a arte mais contemporânea e com a natureza ancestral.

T’avonde significa basta. Mas significa também que já nada é necessário, porque já se tem o suficiente. Na arte nunca se tem o suficiente, quer-se sempre mais. #Other free Works é uma exposição que dá continuidade ao projeto de curadoria da Galeria Trem, realizado pela licenciatura em Artes Visuais da UALg, em parceria com a Câmara Municipal de Faro. Com este trabalho completam-se dois anos de colaboração intensa e profícua. O convite ao artista Edgar Massul foi feito no sentido de celebrar o fim de um ciclo e o princípio de um novo ano de parceria. Porque a sua obra, como disse no começo, é um processo que não para, que se expande, que se reinventa e que volta, ciclicamente, ao começo.


MEER


terça-feira, 1 de agosto de 2023

Do público ao privado / As vias e os desvios de Nuno Viegas

 



Nuno Viegas, uma imagem da exposição *Privado*, Convento de St. António, Loulé, 2014


Do público ao privado

As vias e os desvios de Nuno Viegas

22 MAIO 2014, 

“Pensé en un laberinto de laberintos, en un sinuoso laberinto creciente que abarcara el pasado y el porvenir y que implicara de algún modo los astros”. - Jorge Luís Borges

O percurso do artista Nuno Viegas começou nas ruas da sua cidade natal, Quarteira, no Algarve, Portugal. A Arte Urbana, sobretudo o Graffiti, é uma influência ainda visível na sua obra contemporaneamente. Após acabar a licenciatura em Artes Visuais na Universidade do Algarve, ele decidiu continuar o seu percurso como artista e investigador avançando para um mestrado que culminou numa exposição que ele intitulou, ironicamente, Privado. O que, a partida, parecia uma negação às raízes da sua arte, reconhecidamente pública tornou-se, nesta exposição, um gesto estudado de desvendamento. Nuno Viegas revela o outro lado das ruas, não apenas as reais, palmilháveis, por onde circulamos quotidianamente, mas as virtuais que se configuram como infovias e que nos conectam ao mundo todo sem que tenhamos de sair de casa.

Através de suportes diversos, o artista trata no fundo de uma questão: o limite entre o público e o privado. Entre aquilo que se revela e aquilo que se oculta. Na arte, este limite é estabelecido de formas variadas, por exemplo, a moldura dos quadros ou o ecrã funcionam como a zona de corte, o lugar exato em que o artista permite que se entre na sua obra. O resto fica de fora. Os trabalhos de Nuno Viegas são janelas fechadas sobre si mesmas. Revelam apenas vislumbres daquilo que poderia estar do lado de dentro. Como a janela pintada de preto de Marcel Duchamp que assume que a arte não está limitada ao enquadramento mas que pode ser, ela mesma, um enquadramento, suas obras mostram o que não está lá. Porque as ruas, e o mundo que elas constituem, já estão superpovoados de imagens e mensagens que provocam um estado de cegueira – não vemos de tanto ver.

Estamos na era da superinformação. Um tempo que corrobora as palavras de Santo Agostinho: “Apesar do homem se inquietar em vão ele caminha na imagem”. Caminhamos nas imagens que nos rodeiam quotidianamente e somos também convertidos em imagem, através das câmaras de videovigilância que se espalham por todos os lugares. Torna-se cada dia mais difícil traçar uma linha divisória entre o espaço público e o privado, já que a nossa imagem, a partida um bem privado, torna-se pública e pode ser captada mesmo quando não estamos à espera. O trabalho de Nuno Viegas incide sobre uma questão premente na contemporaneidade: como é que os artistas são afetados pela acelerada produção e difusão de imagens e como é que as imagens produzidas por estes dispositivos, caso das câmaras de videovigilância, podem ser usadas num contexto artístico.

Privado foi, ao mesmo tempo, uma exposição e um projeto de investigação que fez parte das preocupações do artista desde que concluiu a sua licenciatura. Nuno Viegas questiona, com o seu trabalho, o papel da imagem na vida quotidiana, a banalização dos corpos - pela presença constante das câmaras e o direito à imagem privada que nos é roubado cada vez que saímos à rua. Por outro lado, utiliza como recurso estético as imagens que são produzidas por estes dispositivos de videovigilância, subvertendo a própria lógica destas imagens que não são produzidas para serem exibidas e muito menos para serem exibidas como arte.

A contemporaneidade é marcada pelo excesso de exposição, de produção de distribuição de imagens e de significações. Os pensadores da pós-modernidade sustentam que a época em que estamos deixou a humanidade numa grande encruzilhada, cada dia mais presa ao “tédio radical”. Cada vez mais a angústia do vazio absoluto se instaura, e as pessoas, perdem, paulatinamente, os seus referenciais e o contato pleno com a realidade, criando assim os seus próprios labirintos. As cidades foram convertidas em labirintos híper vigiados - ninguém está a salvo do controle do olhar. O panótico de Foucault reaparece como o modelo da sociedade em que vivemos: uma construção de onde podemos divisar todo o resto a partir do centro. É este modelo panótico e vigiado que a obra de Nuno Viegas questiona. Não apenas através de metáforas, mas, de maneira ousada, através da criação de dispositivos que simulam, e evidenciam, a nossa situação. A arte, neste caso, é um instrumento contundente e perturbador que põe em causa o processo de “naturalização” dos dispositivos de vigilância e questiona, ainda, a legitimidade da arte que se apodera dos mesmos dispositivos e os converte em novas formas artísticas.

MEER



segunda-feira, 24 de julho de 2023

Pedro Cabral Santo / Incondicionalmente artista

 

Pedro Cabral Santo, *Homage a Victor Pinto de Fonseca*, 2014, cabeça de gesso, almofada.
Cortesia Colégio das Artes, Coimbra


Pedro Cabral Santo

Incondicionalmente artista

22 ABRIL 2014, 

Pedro Cabral Santo é um artista que vem, ao longo dos anos, demonstrando uma inegável capacidade de fundir os gestos mais delicados com as ideias mais duras, ou vice-versa. As suas obras, que podem ser consideradas de cariz conceptual, necessitam de espaço para serem vistas e vivenciadas. E necessitam, sobretudo, de um espectador que possua múltiplas referências e que (re)conheça o seu próprio tempo. Não é um artista de consumo fácil, porque o espírito de contenção que emana das suas obras só se revela, plenamente, aos iniciados. O vir-a-ser da obra torna-se real quando experienciado. Ver as obras de Pedro Cabral Santo é como ir ao encontro de alguém que se deseja muito conhecer e, como no poema de Donne, “ela é um livro místico e a poucos, a quem tal graça se consente, é dado lê-la”. Os poucos, a que tal graça se consente, são os que não desistem no primeiro encontro. São os que persistem em penetrar aos poucos nas camadas que cada obra possui. O que não quer dizer (de modo algum!) que suas obras sejam demasiado complexas. Pelo contrário, muitas delas são de uma simplicidade desarmante. São despidas de artifícios e o excesso só aparece quando convocado, o que raramente acontece. A sua última exposição, Unconditionally foi pensada para o espaço que a alberga. Todas as peças foram concebidas para significar em conjunto, sem que deixem de funcionar individualmente. Unconditionally é composta por sete peças que incluem instalação, vídeo-instalação, escultura e pintura instalada: Turn left, Turn left (Tru Thougths)Red and Blue (Just waiting)Ícaro II (Up, up into the sky)SelfishNONPonto cego e Impressionism.

Turn left, turn left propõe uma viagem sobre a obra do artista – um comboio anda em círculos e podemos adivinhar um fim trágico, o encontro com o abismo. A viagem não se completa porque não é possível voltar ao princípio, que é também o fim. Chegar e partir são sempre dois lados de uma mesma viagem e o artista convida a despenharmo-nos com ele num abismo possível, previsível, antevisto porque não seguimos a indicação de virar à esquerda. Mas não nos enganemos, a mensagem é, aparentemente, óbvia. Até porque o óbvio nem sempre é visível. Como disse, as peças do artista são compostas por camadas de significação e é a significação o material que as compõe. A matéria é apenas o suporte, que pode ser mais ou menos sólido, mais ou menos nobre. O que torna cada peça um objeto único não é a sua condição de objeto, mas a sua condição de arte: a sua incondicional condição de objeto artístico, que não se confunde, no caso deste autor, com quadros, esculturas, vídeos ou quaisquer objetos que identifiquemos, imediatamente, como tal. A sua obra é composta de significação e de espaço – dum espaço que se converte em tempo, pela presença sempiterna do devir. Cada obra é um vir-a-ser que se realiza na experiência instalada no espaço que a circunda.

Red and Blue (Just waiting) remete-nos para o universo cinematográfico que é o universo do espaço-tempo, do eterno presente, que pode alçar-nos no futuro ou promover uma visita ao passado sem perder, jamais, a sua condição de presente/presença, daquilo que se desvela ante os nossos sentidos enquanto vemos/vivenciamos, que cria memórias partilhadas por muitos, como as memórias de uma espada de luz e de um filme que nos fala do mito do herói.

E aparece-nos um herói, não o do filme mas um herói mítico que tentou roubar a luz aos deuses e que se perdeu neste intento: Ícaro. (Up, up into the sky) é um totem, objeto fundador de uma cultura cuja lógica não obedece à linearidade do tempo histórico mas repete, infinitamente, o mesmo percurso circular – o herói parte para cumprir sua jornada e retorna para ocupar o lugar do pai. O Ícaro II é um boneco de plástico, herói de novas jornadas e fruto de uma cultura flutuante e permeável. O artista fala-nos do herói de cada um de nós, de cada época, de cada circunstância. Eu sou eu e minha circunstância disse o filósofo espanhol. E esta circunstância do eu aqui e agora é que determina os símbolos que a representam. Cada época tem seu Ícaro, tem sua luz própria. E estamos na era do simulacro da luz – da sua reinvenção nos laboratórios de efeitos especiais.

Do espaço partimos para um mergulho num aquário de peixes tropicais: Selfish. Isto não é um aquário, seria uma legenda possível para esta vídeo-instalação. É um simulacro de aquário autorreflexivo, como o título indica: selfish. Criaturas marinhas que refletem sobre si mesmas, imagem que se reflete sobre si mesma. Obra que reflete sobre si mesma e sobre a sua condição de arte.

NON pode dizer-nos o que não é. Ou sobre o que não quer falar. NON é uma palavra composta de letras que estão sobre uma mesa de trabalho. Uma proposta de jogo, uma brincadeira de criança – como o comboio, o Pokemon, a espada de Star Wars. Schiller acreditava que a arte era um jogo entre a forma sensível e o conteúdo que poderia ser mais impenetrável mas que, quando conjugado com a forma, se tornava passível de ser percebido e vivenciado. Um jogo entre a dureza e a permeabilidade, entre a seriedade e a leveza, entre a delicadeza e a resistência dos materiais. O jogo, na arte de Cabral Santo, é de origem schilleriana – é um impulso demasiado humano e inevitável. A melhor, e talvez a única maneira, segundo o filósofo alemão, de se evadir do quotidiano.

Ponto Cego é aquele ponto específico em que não vemos nada – único ponto em que o espelho não consegue penetrar. Os automóveis trafegam pelas autopistas e pelas ruas e os motoristas tentam não pensar que há um ponto do retrovisor que funciona como um buraco negro – as imagens não aparecem e só se ouve o barulho de um carro que se aproxima perigosamente de nós. O que deixamos de ver para além dos carros que o retrovisor não reflete? E o que vemos afinal? E o que é que ouvimos/vemos? Como no final de Blow Up do Antonioni, o que vemos ou ouvimos depende da nossa disponibilidade para ver e ouvir, depende da nossa vontade de entrar no jogo e de nos deixarmos envolver pelos sons e pelas imagens, que, muitas vezes, não estão lá.

Impressionism, um conjunto de pinturas, fecha o ciclo que se iniciou com um comboio a despenhar-se. Pinturas que se insinuam, que nos abstraem e que nos absorvem – trinta telas pintadas de vermelho. Trinta telas vermelhas maculadas por manchas amarelas. Trinta telas que poderiam ser bandeiras, que poderiam ser simbólicas, que poderiam ter apenas um significado. Mas que funcionam, como o restante das obras, como um espaço de significação, para além do óbvio ou para aquém da superfície.

Virar à esquerda não é, no caso do artista, uma indicação de sentido. É o caminho que ele escolheu percorrer. Como disse Drummond “quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Pedro Cabral Santo decidiu que seria, incondicionalmente, como artista, gauche na vida. Porque a sua obra é a sua verdadeira existência, a sua linguagem, o seu lugar da significação. Não acredito que se possa dizer o que o artista, ou a sua obra, quis dizer. As palavras apenas roçam os sentidos, insinuam as imagens, reverberam os sons. A obra, acredito, fala por si. Mas é preciso, nalguns casos, conhecer bem a sua língua, perceber as suas nuances, os seus ditos e não-ditos. A arte não é um lugar que se visita inocentemente e de onde se sai incólume. Pelo menos não esta arte, não a arte deste artista incondicionalmente engajado, comprometido naquilo que faz. E aquilo que faz também faz dele aquilo que ele é. Um artista. Incondicionalmente.

MEER



sexta-feira, 21 de julho de 2023

Arte contemporânea no Mediterrâneo / Um olhar sobre a Turquia

 

Vahap Avṣar_Özgürlük ve macera_1992


Arte contemporânea no Mediterrâneo

Um olhar sobre a Turquia

22 MARÇO 2014, 


"The driving force behind my works is my tradition. If it wasn’t for Damascus, I wouldn’t have that heritage; I wouldn’t be me. Of course, the question remains: do you have to be a traveller in order to be a cosmopolitan?". ‒ Marwan

Giulio Carlo Argan, há uns anos, ao falar do Romantismo e do Neoclassicismo, dizia que o Romantismo só poderia ser fruto do norte da Europa e que o Neoclassicismo só poderia ser mediterrânico. Porque, para o urbanista e teórico italiano, a relação que o homem mantém com a natureza determina, de alguma maneira, a relação que ele manterá com a arte. A natureza sombria, impenetrável e misteriosa do norte da Europa é refletida numa arte ensimesmada que beira sempre o abismo, onde o homem busca, sobretudo, o desvendamento. Busca dificultada pelo entorno que o envolve e que não facilita o seu percurso. Já a luz aberta e franca que permeia a arte neoclássica, mostra um homem que dominou já a natureza à sua volta, que esta já foi convertida em cultura e em espaço da representação. A natureza é amena e aprazível, penetrável, não necessita de desvendamentos, apresenta-se como espaço a ser ocupado, não dificulta o caminho. Aliás, o Mediterrâneo é o mar, por excelência, dos caminhos, da fundação da civilização que redundará, séculos depois, na civilização europeia.

Falar de arte no Mediterrâneo é falar de uma parte da arte europeia. Uma parte apenas, porque a Europa, anos mais tarde, tratou de expurgar aquilo que era considerado bárbaro, ou menos europeu. Expurgou, ou tentou fazê-lo, a arte mais oriental. Decidiu que o caminho europeu era aquele que representava melhor a ideia que tinham de cultura e civilização e chamou a todo o resto de Outros. Criou a alteridade que distancia culturas e povos, que fecha os caminhos abertos pelo mar. O outro é aquele que não sou eu, é aquele que não entendo. É aquele tão impenetrável quanto uma floresta do norte da Europa, mesmo que esteja banhado, como nós mesmos, de sol.

Vários são os motivos que levaram a este progressivo afastamento entre povos alimentados pela mesma bacia e que navegaram as mesmas águas. Durante vários séculos o padrão greco-romano, convertido em cânon, dominou a arte europeia e de alguma maneira, determinou a História da Arte como nós a conhecemos. Heinrich Wölfflin fala de períodos clássicos e barrocos na História da Arte, como um ciclo que se repetiu por muito tempo e que se encerra no limiar do século XX. Esta alternância entre o clássico e o barroco era, no fundo, a alternância entre o cânon e os seus opositores. Entre a regra e àqueles que a ousaram quebrar. Os historiadores, geralmente, estavam a favor do cânon, da regra.

O berço da arte canónica produziu seu último grande ciclo em meados do século XVIII ‒ o movimento Neoclássico foi o estertor final de um modelo de representação do mundo. Um modelo excludente e que pretendeu ser o modelo. O Romantismo instaura, no seio da arte, o delírio. O sentimento de pertença não a um continente simbólico, mas sim a uma nação mais pequena. A uma nação que precisava ter uma voz própria que se sobrepusesse a que fora imposta durante tanto tempo. O sentimento do Romantismo sai do sítio onde nasceu e floresce um pouco por todo o lado, aliado ao sentimento e a necessidade crescentes de uma arte que queria ter também ela a sua própria voz.

É interessante percebermos que durante o século XIX, o papel que a Itália ocupou na História da Arte ocidental sofre um declínio. A Itália transforma-se num espaço museológico a ser visitado, e admirado, por aqueles que queriam ainda perpetuar o modelo. Os outros, distantes deste apelo canónico, decidiam olhar para outro lado ou para diversos lados ao mesmo tempo e daí surgem as vanguardas. A Itália volta a aparecer neste cenário com o Futurismo, dos movimentos de vanguarda o que mais apontou para o futuro e que mais ardentemente quis romper com o passado. De qualquer forma, por mais diversificada e diversa, a vanguarda europeia continua a ser a vanguarda europeia. Os outros continuam a ser os outros, frequentando, algumas vezes, como convidados bem comportados, algumas obras de alguns artistas.

Duas guerras depois, a arte, que faz parte da vida, intrinsecamente, e que não é uma atividade outra ou marginal, incorpora todas as mudanças que o mundo passou num século tão conturbado. E finalmente vê os discursos alheios ao seu próprio umbigo atravessarem os seus próprios discursos. E de repente se dá conta que existe outra arte. Que existem outras artes e outras maneiras de se ver e representar o mundo.

A arte na contemporaneidade é uma arte múltipla e pluridiscursiva. São várias as vozes que a compõem, são vários os discursos. Não é possível falarmos de um modelo ou cânon. Talvez a falta de cânon seja o modelo. Mas há algo que une, ou que pelo menos, põe em diálogo tudo que se fez ou se faz desde a segunda metade do século XX: com tantos caminhos abertos, vias, redes, reais e virtuais, com o esboroamento das fronteiras, físicas e simbólicas, parece que ainda não conseguimos falar a mesma língua. Que estamos todos juntos e muito próximos mas, simultaneamente, terrivelmente distantes. E a arte reflete sobre isto. Primeiro como um espelho e depois como alguém que pensa e questiona e coloca o dedo na ferida. Nas feridas. Há uma questão que é fulcral para a arte nos tempos que correm e que diz respeito a um sentimento de pertença: se eu não sou nem sou o outro, quem sou eu afinal? E o espaço é o território onde esta questão se expande. O espaço, já não apenas geográfico e mapeado, é o lugar que define quem sou, o que em mim é meu e o que é fruto de um sentimento comum. O que me liga aos outros? O que me difere? O que me faz ser eu?

Desta maneira o Mediterrâneo volta a fazer parte das discussões. Volta a ser um lugar de navegações e trocas, de encontros. Nicolas Bourriaud disse certa vez que a arte contemporânea não é um objeto em si, é a maneira nova de habitar velhos espaços. E são estes velhos e conhecidos espaços que foram se distanciando que devem ser novamente visitados. E re-habitados. Por isso a importância de se pensar hoje numa arte do e no Mediterrâneo. Uma arte com semelhanças e diferenças, com consensos e dissensões, mas uma arte que precisa dialogar mais e absorver melhor o outro, que nunca deixou de ser, apesar da distância, uma outra face de nós mesmos. E há que se buscar a completude.

A arte contemporânea do Mediterrâneo mais a oriente, como a Turquia, apresenta as mesmas características da arte europeia "modelar" ‒ entre os novos e os velhos media, entre as novas e as velhas técnicas, os artistas visuais procuram re-habitar um espaço aparentemente conhecido e visitado. E procuram, com a sua arte, estabelecer diálogo entre culturas diversas, entre diversidades dentro da sua própria cultura, entre modos diferentes de se habitar o mundo. Não há um modelo preestabelecido, não há uma fórmula única, nem um projeto comum. O que os une entre si, e entre os artistas do lado de cá do Mediterrâneo, é a afirmação de uma identidade, é a exploração de feridas que foram ocultadas, é, sobretudo, o desejo de ter uma voz.

Haluk Akakçe, artista turco que vive e trabalha em New York, utiliza ícones de várias culturas para falar da relação entre o homem e a tecnologia. Mas, não apenas para fazer uma reflexão sobre o tema, como muitos outros o fazem, a sua ideia é promover uma autêntica fusão dialógica que produza novos significados. A sua arte é apenas uma das muitas representantes de uma contemporaneidade que já percebeu o papel que cabe a arte, e aos artistas, nos tempos que correm: promover, uma vez mais, o diálogo entre distintas culturas, entre meios diversos, entre lógicas que aparentemente se repelem, mas que necessitam de alguém, ou algo, que construa uma ponte.

A obra de Gunes Terkol, outra artista turca, que pertence ao Ha Za Vu Zu artist group, é uma fusão entre técnicas diversas utilizadas para falar da identidade, ou das identidades sexuais. Entre um fundo abstrato e a colagem de objetos retirados do quotidiano, ela se considera uma contadora de histórias. E com suas histórias pretende que o espectador entre na sua obra através de suas próprias memórias. A identidade não é apenas do artista, mas daqueles que o veem e que com ele se identificam. Mais uma vez a presença do elemento dialógico que nos remete, invariavelmente, para uma amplificação do conceito criado por Bourriaud da estética relacional: a arte só funciona quando habitada e vivenciada.

Há artistas, como Vahap Avṣar, cujo trabalho político o obrigou a procurar refúgio fora da Turquia, refletem outra instância de criação da obra dos eternos Outros. Por mais diversos que sejam os trabalhos e as técnicas, todos caminham numa direção: o possível diálogo. O possível entendimento que não é a aceitação passiva e pacífica do outro, mas a fusão de ideias e a desejada confusão de identidades e espaços. Navegar já não é preciso. Mesmo sendo necessário. Navegar pode ser a possibilidade de perder-se no e com o outro, em outras terras, em outros espaços. Navegar em ir em direção a. Em direção ao outro, simultaneamente ao passado e ao futuro. Simultaneamente ao ocidente e ao oriente. O Mediterrâneo, como já disse, sempre foi um caminho. Talvez seja preciso voltar a percorrê-lo. E desta vez, deixar-nos perder um pouco naquilo que não conhecemos e experimentarmos o outro, que faz, mesmo que não queiramos, parte de nós.


MEER

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Arte no pós-II Guerra / O adormecer da razão gera monstros


Francis Bacon, *Study after Velázquez’s Portrait of Pope Innocent X*, 1953

Arte no pós-II Guerra

O adormecer da razão gera monstros

22 JUNHO 2014, 

“El sueño de la razón produce monstruos” - Goya

Após uma participação mais ou menos ativa na I Guerra, por parte de alguns movimentos de vanguardas, os artistas europeus não resistiram ao horror da guerra que veio a seguir e refugiaram-se numa espécie de estupor, onde as imagens da guerra foram banidas porque estavam demasiado presentes e por serem extremamente reais. Através da análise da obra de dois artistas, Zoran Mušič e Francis Bacon, pretendo refletir sobre o silêncio da arte europeia no pós-II Guerra.

Para Régis Debray “é uma banalidade verificar que a arte nasce funerária, e renasce apenas morre, sob o aguilhão da morte”. E conclui, posteriormente, que “as sepulturas foram os museus das civilizações sem museus, assim também nossos museus são, talvez, os túmulos característicos das civilizações que já não sabem edificar túmulos” (1993: 22). A arte nasce da morte porque a humanidade desejava ser imortal e, através das imagens de si mesma, convertia o seu desejo em obras que perdurariam para além da sua frágil existência. A figura humana, em suas diversas formas, mais ou menos simbólicas, mais ou menos perfeitas tecnicamente, mais ou menos belas, sempre foi um dos principais motivos da arte ocidental. Teoricamente, o início da História da Arte no ocidente é celebrado com as obras dos gregos que, liberados da obrigação simbólica de converter homens em deuses, tentaram criar, com suas mãos, imagens de homens e mulheres que representassem a ideia que eles tinham do real.

A presença do humano na arte confunde-se com o nascimento mesmo daquilo que chamamos de arte ‒ obras que em seu momento tiveram funções diversas, rituais, celebratórias ou mágicas, mas que a história passou a considerá-las como parte do grande acervo artístico ocidental. O corpo mimético começa a desaparecer da arte no início do século XX para ressurgir um outro corpo, fragmentado, reflexo de uma civilização à beira do abismo da I Grande Guerra. Podemos dizer que a fragmentação da figura humana nas artes visuais foi compensada pela aparição do corpo cinematográfico, cujo ecrã especular mostrava, em tamanho hiperdimensionado, corpos em movimento que encantavam um público crescente.

Através da análise do fim do século XIX, René Huyghe mostra-nos o caminho inexorável que os artistas acabarão por trilhar no século XX. Um caminho que reflete a incomunicabilidade e o declínio, não só da civilização ocidental, mas do próprio conceito de civilização. A opção pelo não figurativo na arte nada mais é que uma tentativa de escapar dos “sobejos do mundo visível”. A arte desiste de ser um reflexo da imagem humana e passa a refletir sobre a própria ideia de humanidade. A figura humana, presente em obras como a do artista italiano Giorgio De Chirico, aparece como estrutura obsessiva que exclui qualquer possibilidade de vida: são manequins e autómatos que atualizam o pesadelo de Goya. Os monstros gerados pela arte irão cada vez mais levar-nos a uma descida às trevas que pairam sobre a civilização europeia.

Apesar das descobertas da ciência e dos avanços tecnológicos, os artistas das vanguardas sentiam que era necessário representar o vazio que se instaurava na Europa, e no mundo ocidental. Sentiam-se incapazes de preencher este espaço deixado pelo fim das diversas crenças que alimentaram o século XIX e decidiram que o contributo que arte poderia, ou deveria, dar era o de representar os indícios da derrocada de um modelo de civilização. “No entanto, neste vazio, os artistas constroem muitas vezes uma realidade (…) Já no Surrealismo, Max Ernst gostava de erigir, como uma muralha intransponível, blocos de pedra numa esquadria curiosa onde, por vezes, se abrem estranhamente olhos” (HUYGUE, 1998: 270).

A II Grande Guerra e o fim das utopias

Cubistas, dadaístas, surrealistas, futuristas, expressionistas e todos os outros movimentos de vanguarda do início do século XX tinham algo em comum: acreditavam que a arte, a nova arte criada por eles, seria capaz de mudar o mundo. Experimentaram novos materiais, novos conceitos, novos suportes. Experimentaram novas maneiras de representar o humano, através da fragmentação, da negação do ponto de vista único da perspetiva linear, da simplificação de linhas, do despojamento ou do excesso. O corpo, na arte, era um novo corpo, construído à medida para uma nova era. Todos os artistas das vanguardas históricas transformaram a sua arte num manifesto ao novo, a um possível e desejável futuro, a um futuro que seria construído sob os escombros de uma grande guerra. Ou então, como os expressionistas, projetavam no passado o possível futuro da humanidade. Mesmo os dadaístas que fizeram da sua arte um manifesto contra o artista demiurgo, transformando os criadores em observadores privilegiados, em recolectores de objetos do quotidiano, viam na arte um caminho possível.

Com a chegada súbita, mas anunciada, da II Guerra, os artistas foram sendo dispersados pelo mundo. Da Europa rumaram, ou voltaram, para os Estados Unidos e enfrentaram a nova face do medo. Se a I Guerra ainda foi corporificável, a II não tinha uma face visível, tal era o horror que suscitava. Num mundo onde a incomunicabilidade tornara-se um problema de dimensões mundiais, paradoxalmente os novos meios de comunicação funcionavam como dispositivos de exibição de um mundo idealizado e expandido, cujo novo centro civilizacional estava situado fora da Europa.

Theodor Adorno, um dos grandes pensadores da Escola de Frankfurt, afirmou que seria impossível escrever poesia depois de Auschwitz. Esta ideia provocou um debate aceso entre os intelectuais e artistas do pós-guerra porque, afinal, a arte aparecia como uma possível forma de representação ou de sublimação do horror que fora experienciado por milhares de seres humanos. De qualquer forma, Valeriano Bozal diz que a arte e a literatura do anos 40 e 50 “estuvieron sometidos a las fuertes presiones de un mundo que parecía no poder ser dicho” (2003: 13). Um mundo em ruínas, já anunciado pelo Angelus Novus do artista suíço Paul Klee. Um anjo que é empurrado para frente, mas que olha, aflito, para o passado do qual não se consegue libertar. Uma figura que foi analisada nas teses do filósofo Walter Benjamin e que representava, na sua visão, o porvir da Europa e do mundo.

O ideário das vanguardas ainda acompanhou alguns artistas e refletiu-se em movimentos como o Expressionismo Abstrato, primeiro grande momento da arte no pós-II Guerra. Artistas como Pollock ou Rothko assumiam, nas suas obras, o silêncio do mundo visível que se tornara irrepresentável, mas as suas obras ainda aspiravam a alguma transcendência. Na Europa, o ar estava irrespirável e alguns artistas, e movimentos, reproduziram o clima de terror absoluto criando obras que lembravam a utopia passadista de algumas vanguardas, buscando o passado idílico, não na natureza, mas no próprio homem, na sua infância, antes de ser corrompido pela cultura, caso do Grupo Cobra ou da Arte Bruta. Ou, simplesmente, fugiram da representação mimética e/ou realista do mundo. Caso do artista Zoran Mušič. Ainda na Europa do pós-guerra Francis Bacon, seguindo a genealogia do espanhol Goya, produzia seus monstros: figuras disformes, como que apanhadas num momento em que revelavam seu espanto, seu estupor.

Um artista e o trauma da guerra

Zoran Mušič, artista esloveno, foi detido e ficou preso em Dauchau em 1944 de onde só saiu no fim da Guerra, em 1945. Foi-lhe dado a escolher: tornar-se um espião, membro das SS ou ser prisoneiro num campo de concentração. Ele escolheu a segunda opção que o levou para Dauchau onde presenciou a morte de diversos amigos e de desconhecidos. Conseguiu, durante a sua estância ali, representar o que via, com giz ou lápis, utilizando folhas retiradas de livros da biblioteca do campo de concentração, produzindo mais de 200 desenhos. Destes desenhos conseguiu salvar apenas cerca de 70. Os desenhos eram claramente influenciados pela obra de dois grandes artistas, considerados mestres por Mušič: Goya e Rembrandt.

Da obra de Goya encontramos, nos desenhos do artista esloveno, a minúcia dos detalhes nos pequenos formatos, bem como os traços selvagens, tortuosos, que tornam as figuras quase fantasmagóricas. De Rembrandt encontramos a capacidade que este tinha de isolar um rosto no meio de tantos e de, ao mesmo tempo, convertê-los todos em rostos de homens comuns. O claro-escuro das suas águas-fortes transparece nos desenhos a lápis que Mušič produziu entre 44 e 45 e que foram salvos, juntos com ele, do grande Holocausto.

A obra de Mušič compunha de corpos. Corpos amontoados, em improvisados carros funerários, homens enforcados, corpos deitados fora como lixo. Para Bozal, há uma forte consciência dramática nos traços deste artista, o que o torna muito próximo dos desenhos negros de Goya e da obra de Egon Schiele. Zoran Mušič disse que nunca teve uma intenção documental, apesar de sua obra ter-se convertido num importante retrato do pesadelo da II Guerra. Numa entrevista ao Le Monde, em Abril de 1995, quando confrontado com a ideia de ter revelado ao mundo “uma visão abominável”, ele responde: “Il le fallait. C’était abominable, mais c’était nécessaire. Je ne pouvais pas faire autrement. Dans le camp, il y avait une usine d’armement, avec des bureaux pour architectes. On m’y a mis un moment, j’ai pu prendre du papier, j’ai commencé…C’étaient des dessins descriptifs. Dans ces corps amaigris, les mains, les pieds et les sexes devenaient très importants. Et la structure, les doigts très fins, d’une finesse incroyable. Egon Schiele a dessiné des mains ainsi, mais il me semble que ce sont des dessins trop voulus, trop théâtraux. Schiele a cultivé ce genre, alors que, chez moi, c'était simplement le fait de l’observation”.

O motivo demandou o tipo de desenho que Mušič produziu. O drama não estava nos traços nem na composição em si, estava além, na própria realidade que o circundava. Depois de sair de Dauchau, o artista passou muitos anos a pintar ou desenhar apenas paisagens e muitas delas abstratas. Mesmo que estas paisagens deixassem transparecer uma certa atmosfera de desconforto, como se o mundo estivesse em suspensão, eram paisagens que nada tinham a ver com os retratos produzidos durante a sua prisão. Voltou-se para um abstracionismo muito particular, como forma de reafirmar que, diante do indizível, não havia nada que a arte pudesse fazer. Só em 1970 é que ele volta à figura humana numa série de desenhos e pinturas que denominou Nous ne sommes pas les derniers.

Nós não somos os últimos é uma série que reproduz, obsessivamente, a ideia dos desenhos de Dachau: a morte, o flagelo, a despersonalização do homem que se converte em cadáver, ao lado de tantos outros, atirados em valas comuns. O rosto de cada uma das figuras denota um desespero mudo retratado numa boca aberta que, sabemos, incapaz de produzir qualquer som. Mais uma vez os traços de Goya que anunciam o Expressionismo e a assunção plena da dramaticidade, presente nos traços de Egon Schiele. Os corpos distorcidos e alongados remetem-nos à obra de Giacometti, outro artista que Mušič admirava.

Para Bozal há, na série Nous ne sommes pas les derniers, uma tentativa do artista demonstrar que o horror não acabou, que a figura humana é esvaziada e desumanizada em diversas ocasiões e que aquelas figuras não são apenas ecos de Dachau ‒ os cadáveres sem substância, como se estivessem ocos, são memórias reelaboradas e transpostas para a contemporaneidade: “la memoria se convierte de este modo en marco donde elaborar el presente” (BOZAL, 2003: 31).

O presente é vivido através do filtro da memória que, de maneira obsessiva, reinscreve a história continuamente no ciclo da vida. Na citada entrevista ao Le Monde, Mušič acaba por dizer: “J’aurais pu illustrer. Ce n’aurait pas été difficile. Je ne voulais pas. J’attendais que cette vision prenne une forme dans ma mémoire. Elle était en permanence devant moi, ces cadavres allongés. Pour réussir à sortir une lumière de cela, il aurait fallu un Goya peut-être. Il me semble que je n’ai pas réussi comme je l’aurais voulu. Ce n’était pas possible peut-être. Si j’ai réussi à donner à celui qui regarde un peu de mon émotion, c’est déjà beaucoup”.

Foram necessários 25 anos para que o artista esloveno conseguisse recuperar as imagens que traumatizara ao sair de Dachau. Diante do horror real, à arte, muitas vezes, só resta o silêncio.

Os monstros de Francis Bacon

A obra do pintor irlandês Francis Bacon retrata, de outra maneira, uma visão pessimista e cruel da figura humana e, talvez, da própria ideia de humanidade. Seus quadros reproduzem um horror indizível presentificado nas formas e nas cores com as que compõe suas figuras. Admite que foi influenciado pelo cinema de Fritz Lang e de Sergei Eisenstein que teve oportunidade de ver quando da sua passagem por Berlim nos anos 20. O Couraçado Potemkin deu-lhe a conhecer os rostos estupefactos das pessoas na famosa cena da escadaria. Rostos desumanizados pela dor, pelo desespero, mudos na sua condição de sombra projetada num ecrã e na sua condição de seres anônimos, atravessados por uma batalha que não era deles, mas que os atingia a todos de forma cruel.

Bacon apropria-se da obra de Velázquez, Papa Inocéncio X e atualiza a imagem, sobrepondo-lhe um grito de horror, inspirado numa personagem do filme de Eisenstein. Além do grito, as cores retratam uma ideia muito comum à obra do artista irlandês, a putrefação. Corpos putrefactos ou mutilados, desinvestidos de qualquer indício de beleza ou de equilíbrio povoam o universo de Bacon. Um dos quadros mais significativos do seu período pós II Guerra, Man with dog (1953), reproduz a visão do homem naqueles dias: uma sombra sem rosto ao lado de um animal quase humano, numa rua escura.

O homem é apenas uma sombra, não tem substância, volume, peso. É uma mancha no passeio que se alastra pela parede. O cão tem um rosto humanizado e traduz uma espécie de angústia profunda na sua figura retorcida, levado por uma trela, olha na direção de um bueiro. Mais uma vez a presença do mestre espanhol, Goya, que influenciou a obra de Mušič, aparece aqui como presença reclamada neste quadro de Francis Bacon. O quadro de Goya, El perro, representa um cão, do qual vemos apenas a cabeça já que o resto do corpo está ocultado por uma espécie de monte castanho. Metade da obra é preenchida por um espaço vazio, para onde o cão olha. Muitas são as interpretações que este quadro, da fase das Pinturas Negras, suscitou. O quadro, também conhecido como Perro Semihundido, dá-nos a ver um cão aparentemente semienterrado que olha para o céu mas o que vê é um imenso vazio.

O vazio de um céu que já não tem respostas e nem saída para o cão, ou para a humanidade. A obra de Goya data dos anos 20 do século XIX e a de Bacon da segunda metade do século XX. Numa ou noutra a ideia de vazio é central para a compreensão do conceito por trás do quadro de ambos artistas. O vazio como única resposta para a humanidade que perdeu a fé, por razões diversas, e que se encontra irremediavelmente só.

E no final, o silêncio

Através da pintura ou do desenho, diversos artistas tentaram, se não reproduzir, refletir sobre o que aconteceu à humanidade finda duas guerras mundiais. Será que era ainda possível escrever poesia depois de Auschwitz? Está comprovado que sim, Adorno não tinha razão. Apesar do horror do Holocausto, a arte ainda consegue falar. O que mudou, sem dúvida, foi o seu discurso e a sua forma. Quando os homens deixaram de ser nómadas e assentaram, a arte deixa de ser naturalista e vai, paulatinamente, tornando-se abstrata. Os homens não sabiam como representar o invisível ‒ as forças da natureza com as quais tinham de lidar. Na falta de uma imagem no mundo que pudesse traduzir em formas o indizível, optou-se por seguir o caminho da abstração.

Finda a II Grande Guerra, os artistas perceberam que traduzir tal horror era tarefa impossível. Poderiam representar a ideia do horror. Poderiam falar sobre ela, gritar o seu nome, invocá-la. Mas não conseguiriam dar-lhe um rosto único, porque sabiam das muitas faces do horror. Assim, decidiram optar pelo silêncio. Não por se calarem ou por deixarem de criar. Mas por permitirem que as suas obras refletissem, de forma especular, sobre esta nova forma de vazio, sobre este novo silêncio que se abateu sobre o mundo, mesmo depois de a guerra acabar.

Referências Bibliográficas

ARGULLOL, Rafael. El fin del mundo como obra de arte. Barcelona, Acantilado, 2007
BOZAL, Valeriano. El tiempo del estupor. Madrid, Siruela, 2003
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Petrópolis, Vozes, 1993
HUYGUE, René. O poder da imagem. Lisboa, Edições 70, 1998

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