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domingo, 3 de julho de 2016

Gay Talese / “Fazer reportagens é muito mais interessante do que inventar histórias”

Gay Talese
Gay Talese

“Fazer reportagens é muito mais interessante do que inventar histórias”

O jornalista e escritor Gay Talese narra em 'Unto the sons' a mudança de sua família para Nova Jersey


EDUARDO LAGO
Nova York 13 JUN 2014 - 17:02 COT

Fundador nos anos 1950 de uma nova forma de entender o jornalismo, com a aplicação das técnicas próprias da criação literária à reportagem, Gay Talese (Ocean City, Nova Jersey, 1932) é autor de cerca de dez de títulos que reduzem efetivamente a distância entre as duas formas de entender a escrita e imprimem ao que faz um caráter de permanência só é aplicável à verdadeira criação literária. Sua forma de abordar os temas é inigualável devido ao insólito de sua perspectiva. Entre suas obras, estão a crônica esportiva sob o ponto de vista do ídolo derrotado (O silêncio do herói), a máfia retratada em sua intimidade (Honra teu pai), ou a sexualidade explorada a partir do lado mais distante da respeitabilidade social (A mulher do próximo). Autor de um livro de memórias fascinante (Vida de escritor), acaba de ser publicado em espanhol Unto the sons (ainda sem edição no Brasil), crônica da mudança de sua família calabresa para Nova Jersey.
“Acima de tudo, é uma história sobre a imigração, que continua sendo o tema mais candente nos Estados Unidos, onde há uma estranha mistura de rejeição e aceitação em relação aos imigrantes, contradição que dá o que pensar. As pessoas se esquecem de onde vêm.”
Gay Talese, fotografado em Ocean City (Nova Jersey).
 / 
CHRISTOPHER FELVER

Como em todos os livros de Talese, o processo de gestação foi extremamente lento: “É algo que aprendi com meu pai. Ele demorava uma eternidade para terminar um terno. Cada movimento da linha e da agulha era um episódio em si. Sinto a mesma coisa. Comecei a pesquisa para esse livro especificamente em 1956, na Biblioteca do Vaticano, onde estavam todos os documentos sobre o Reino das Duas Sicílias. Depois fui ao povoado dos meus pais, na Calábria, uma aldeia que atende pelo nome de Maida. Em Unto the sons não conto a história de Dante ou Da Vinci, mas de uma legião de camponeses pobres, supersticiosos e ignorantes. Essas são as minhas origens.”




Unto the sons conta a mudança de sua família calabresa para Nova Jersey

— E como era o lugar?
— Foi como se me transportasse ao século XV. As pessoas se deslocavam em mulas, as cabras viviam dentro de casa, as mulheres levavam cântaros na cabeça e dormia-se em colchões de palha.
Tudo em Unto the sons tem duas caras, duas histórias, duas perspectivas, separadas pela experiência da imigração, marcadas pela travessia do Atlântico. O livro presta extrema atenção, além dos personagens familiares, a uma casta que governa à sombra as ações de homens e mulheres: a máfia, assunto ao qual Talese dedicou um livro memorável.




A imigração continua sendo o tema mais candente nos Estados Unidos”

E essa sombra é projetada de forma diferente quando se muda de continente? “Não. As pessoas não se dão conta, mas na verdade Unto the sons e Honra teu pai são livros gêmeos. Seria possível dizer inclusive que são o mesmo livro. O fio condutor somos nós dois, o filho do alfaiate e o filho do gângster. Temos a mesma idade e experiências muito parecidas. Nossos pais imigraram para a América no mesmo ano, com uma diferença importante: meu pai não se deu bem e Joe Bonnano, sim. Ganhou muito dinheiro, tinha carros caros, inclusive seus ternos eram mais elegantes. Eles se conheceram por meu intermédio e se tornaram amigos.”
Sobre o livro paira o fantasma da Segunda Guerra Mundial, acontecimento que marcou a vida de Gay Talese, dando forma à sua sensibilidade de modo irreversível. Como pano de fundo, a sombra sinistra do fascismo, que o futuro jornalista não chegaria a compreender totalmente até que conheceu os familiares que tinham lutado ao lado de Mussolini. “Durante minha adolescência, em Ocean City, e no início de minha juventude, era tudo muito confuso. Não entendia bem o que acontecia com meu pai. Durante o dia, na alfaiataria, estava com os aliados, mas à noite ele ouvia com preocupação os boletins de rádio e simpatizava com os fascistas. Quando ouviu a notícia do bombardeio de Monte Cassino, ficou arrasado. Só consegui entender bem aquilo quando conheci meus tios, na Calábria, e os entrevistei. A história está no início do livro. Tinha passado minha vida toda vendo as fotos deles, exibindo o uniforme do fascio. Quando os conheci eram um velhos camponeses que tinham passado muitos anos prisioneiros, depois da guerra, no Norte da África e na Polônia”.




Escrevi ficção apenas uma vez na minha vida. Em 1966, um conto”

Por mais que se atenha estritamente aos fatos, quando se lê Talese a sensação é a de estar dentro de um mundo totalmente imaginário. Nunca tentou escrever ficção? “Uma única vez, em 1966. Escrevi um conto. Fui um péssimo aluno. Me dava muito mal com meus professores. Tive uma professora de literatura que era lindíssima, acredito que estava apaixonado por ela, mas a odiava porque sempre me suspendia. Então escrevi um conto no qual me imaginei taxista em Nova York. Um dia ela está na calçada e dá sinal. Eu abaixo a aba do boné para que não me reconheça e a observo pelo retrovisor. Tem de ir ao aeroporto e está muito nervosa porque está atrasada e me diz isso, e eu digo que não se preocupe, mas em vez de levá-la ao aeroporto pego todos os tipos de desvios e no fim ela perde o avião. Na cena final ela está irritadíssima e eu abro a porta e tiro o boné para que ela perceba quem sou. O título é A vingança. Publiquei em uma revista e gostaram. Na verdade, meus editores pediram que eu escrevesse mais contos, mas não quis. Escrever reportagens me parece algo muito mais interessante do que ficar inventando histórias.”




Meu mestre foi [o repórter do ‘New Yorker’] Joseph Mitchell”

Gay Talese evoca com entusiasmo, mas sem nostalgia, o mundo do jornalismo quando chegou a Nova York nos anos 1950: “Havia sete jornais, três tabloides (o New York News, o Daily Mirror e o Daily News) e então o New York Times, o Herald Tribune, o World Telegram e o Sun. O colunista americano mais famoso dos anos 1950 era Walter Winchell. Ninguém se lembra dele, mas na época era um deus. Mas meu mestre foi Joseph Mitchell. Publicou uma reportagem magistral na New Yorker sobre os ratos de Manhattan. Dizia que nunca tinha entrevistado ninguém mais inteligente do que eles. Era um gênio [risos]”.


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Salinger / Todos os buracos negros

Jerome David Salinger
Por Allred M.D.


J. D. Salinger: todos os buracos negros

Shane Salerno relata para EL PAÍS como mergulhou na misteriosa vida do escritor



Retrato de J. D. Salinger feito por Anthony Dei Gesu em Nova York, em 1952.
Shane Salerno (Memphis, 1972) tinha 9 anos quando sua mãe, fanática seguidora do esquivo J. D, Salinger (1919-2010), lhe disse que tinha idade suficiente para se embrenhar na leitura de O Apanhador no Campo de Centeio. O livro comoveu o menino a tal ponto que, apesar da pouca idade, devorou em tempo relativamente curto o restante da escassa obra do autor. “Isso é tudo?”, perguntou à mãe quando terminou o último volume. “Salinger não deixou de escrever um só dia”, respondeu ela, “só que desde 1965 não quer publicar nada”. A insólita revelação plantou no jovem leitor uma semente que levaria 21 anos para germinar.
Uma tarde, enquanto folheava uma biografia do autor, chamou poderosamente a sua atenção o violento contraste entre dois retratos do romancista nova-iorquino. Em um deles, um Salinger jovem e no auge da fama sorri gentil. Em outro, já idoso, lança um olhar furioso ao fotógrafo que o pegou de surpresa.
A disparidade o fez recordar que tinha uma dívida pendente consigo mesmo: tentar esclarecer, ao menos em parte, o enigma de uma vida sobre a qual pairam demasiadas sombras. Dedicou ao esforço 10 anos e 1,46 milhão de euros que tirou do próprio bolso.

Muitas coisas sobre o personagem não eram lisonjeiras, mas era preciso contá-las”
Em 2010 o escritor faleceu. Três anos depois, em setembro de 2013, Salerno apresentava o resultado de suas pesquisas, reunidas em um documentário de duas horas e um volume de 700 páginas para os quais contou com a colaboração do escritor David Shields (Los Angeles, 1956). Sob o título comum de Salinger, livro e documentário oferecem um retrato descontínuo do escritor com base na recuperação de um enorme material fotográfico, uma exaustiva compilação de documentos e o depoimento oral de mais de 200 testemunhas de sua vida.
Passaram-se seis meses, tempo suficiente para fazer um balanço, e o livro chega à Espanha (Seix Barral). Não faltaram acusações de oportunismo, falta de rigor e sensacionalismo, mas tampouco aplausos. Em termos econômicos, o projeto foi um êxito. “O livro se estrutura em torno dos três traumas que modelam a vida de Salinger: sua participação na Segunda Guerra Mundial, sua relação sentimental com Oona O’Neil e a violenta rejeição do mundo, motivada por suas crenças védicas”, explica Salerno, de Los Angeles.
“Salinger era um menino rico da Park Avenue. Jamais tinha estado exposto a qualquer tipo de sofrimento. Não tinha por que fazê-lo, mas decide alistar-se porque tinha uma ideia romântica da guerra. Participa do desembarque na Normandia e é testemunha de inumeráveis atrocidades, a maior delas, que jamais conseguiria apagar da memória, a entrada em um campo de concentração no qual permanecia no ar um insuportável fedor de carne humana incinerada. Diante da iminência da chegada das tropas norte-americanas, os nazistas tinham se apressado a queimar vivos os prisioneiros judeus. Transtornado pela guerra, quando acabou ele se internou em um sanatório para doentes mentais. É aí onde se produz a alquimia que o transforma em escritor. Quando sai, escreve a história Uncrazy (Não-Louco)”.

O horror vivido na II Guerra Mundial o marcou para sempre
Boa parte das pesquisas de Shields e Salerno teve como finalidade caracterizar seu singularíssimo modo de se relacionar com as mulheres. “O outro trauma que o marcou foi seu rompimento com Oona O’Neil”, explica o biógrafo. “Era uma garota muito atraente, que entre os 16 e os 18 anos, além de Salinger, manteve relações com Peter Arno, o cartunista da New Yorker, e com Orson Welles. Deixou Salinger para se casar com Charles Chaplin, com quem teve oito filhos e de quem se manteve ao lado até ele morrer. A perda de Oona deu o tom para todos os seus relacionamentos sentimentais. Quando se casou com Chaplin, ela estava com 18 anos e ele, 54. Quando Salinger conhece Joyce Maynard, uma das mulheres mais importantes de sua vida, ele tinha 54 e ela, 18. O esquema se repetiria sempre. Era fascinado pelas mulheres quando conservavam algo de meninas. Manteve relações, não necessariamente sexuais, com garotas muito jovens, de 15 ou 16 anos, até mesmo 14, como ocorreu com Jean Miller.”
Miller é, segundo Salerno, uma das conquistas de Salinger. “Fomos os primeiros

Não dediquei 10 anos de minha vida para falar mal de Salinger”
a conseguir declarações diretas dela. Tinha 14 anos e Salinger, 30, quando se conheceram na Flórida. Mantiveram um contato muito estreito entre 1949 e 1954. As cartas que Salinger lhe escreveu nesse tempo proporcionam um relato insolitamente revelador do escritor.” Também não tinham vindo à tona fotos de seu período militar, “com os três mosqueteiros, Jack Altaras, John Keenan e Paul Fitzgerald, seus melhores amigos; nem sequer de sua primeira mulher, a alemã Sylvia Welter. Falsificou seus documentos para levá-la aos Estados Unidos e, depois, se descobriu que era colaboradora da Gestapo”.
Mesmo sendo importantes, todos esses detalhes se empalidecem diante do que se supõe seja a maior realização das pesquisas feitas com Shields: a lista completa das obras que, segundo os autores, virão à luz entre 2015 e 2020. Cinco livros no total: dois conjuntos de contos em torno das famílias de Holden Caulfield e Seymour Glass; um romance sobre seu casamento com Sylvia Welter; o diário de um agente de contraespionagem, baseado nos interrogatórios que Salinger fez com prisioneiros ... e um manual sobre suas crenças védicas. É a parte mais questionada pela crítica. Salerno teve acesso ao material? Pode se pronunciar sobre seu valor literário? Como quem pisa em brasas, ele responde: “Não posso responder a essa pergunta”.
O biógrafo reage com firmeza diante da pergunta sobre se é legítimo violar a intimidade do escritor: “Não dediquei 10 anos de minha vida a Salinger com a intenção de prejudicar a sua imagem. Para fazer algo assim, um ano basta. Queríamos contar a verdade, e muitas das coisas que averiguamos não eram exatamente lisonjeiras, mas era preciso contá-las”.
O que dizem os filhos do escritor sobre isso? O que significa o fato de Mathew não ter querido colaborar com o projeto? “Impossível pensar em duas infâncias mais diferentes. Segundo Mathew, Salinger foi um grande pai. Margaret, ao contrário, traçou um retrato devastador do pai em suas memórias.”
Salerno é categórico em relação à acusação de sensacionalismo formulada contra Shields e ele na linha dos crimes cometidos em nome de O Apanhador no Campo de Centeio. “O que se supõe que teríamos de ter feito? Passar por cima? Os assassinos de John Lennon e Rebecca Schaeffer, uma atriz belíssima e muito jovem, e o assassino frustrado de Ronald Reagan levavam um exemplar do livro, como se fosse um talismã maligno.”
Entre os muitos outros assuntos que aborda, Salerno ressalta o terceiro fator que explica o enigma de Salinger: “A chave de sua retirada do mundo está nas suas crenças védicas, segundo as quais estruturamos o livro. Ao morrer, um parente declarou em seu nome as primeiras palavras que tornava públicas em 45 anos: ‘Vivo no mundo, mas não faço parte dele’”.