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sábado, 25 de maio de 2019

Vargas Llosa / Eleições na Espanha

Eleições na Espanha

Para que o país não corra o risco de se desintegrar é indispensável uma vigilância constante do eleitorado que concedeu ao PSOE de Pedro Sánchez sua formidável vitória

Mario Vargas Llosa
4 mai 2019

Como o Partido Popular temia que a hemorragia de votantes para o partido nacionalista de ultradireita Vox lhe tirasse muitos votos, direitizou-se o máximo que pôde. O resultado foi que, nas eleições de 28 de abril, perdeu à sua esquerda quase toda a centro-direita que o apoiava. E teve o pior resultado de toda a sua história, perdendo mais de 3,6 milhões de votos.


Ninguém sabe para quem trabalha. O Vox, transformado pela esquerda no Lobo Mau desta campanha eleitoral, com seus ataques à “direitinha covarde”, contribuiu de maneira significativa para a debacle do Partido Popular. Entrou no Parlamento com 24 deputados, mas ficará lá, provavelmente, só para que os socialistas, independentistas e comunistas utilizem seus desplantes e imprecações de vozeirão nacionalista como os alarmes de um “fascismo” em perspectiva. Essa política justificará, sem dúvida, algumas medidas acertadas, mas também outras ruins e muitas péssimas. A verdade é que a sociedade espanhola já é suficientemente democrática para acolher em seu seio um movimento verdadeiramente fascista. Formado por famílias conservadoras atordoadas com a modernização da sociedade espanhola e por grupos nostálgicos do franquismo, é provável que o Vox tenha alcançado seu limite máximo de aceitação nestas eleições: 10% dos votos. Mas os estragos que causou foram, estes sim, numerosos. Entre eles, ter prestado um serviço involuntário, mas de grande importância, ao movimento de independência catalão, como veremos mais adiante.
O partido de Albert Rivera, Cidadãos, no qual votei, é o outro grande vencedor destas eleições. Desesperados diante da vitória contundente do PSOE e de sua possível aliança com o Podemos, muitos empresários, líderes sociais e famílias de classe alta e média pensam que uma aliança entre os socialistas e o Cidadãos livraria a Espanha de uma Frente Popular em que ambos teriam de incluir também partidos independentistas bascos ou catalães. O que querem é uma ilusão impossível.

Com seus ataques à “direitinha covarde”, o Vox contribuiu de maneira importante à debacle do PP

O que o Cidadãos e Rivera ganhariam com tal aliança? Nada, apenas um desprestígio considerável logo depois que seu líder enfatizou, durante toda a campanha eleitoral, que descartava categoricamente um pacto de Governo com o PSOE. É verdade que os políticos mudam de opinião com frequência, mas não quando existe um plano de ação perfeitamente traçado e que os resultados eleitorais mostram estar muito bem encaminhado. Albert Rivera quer liderar a oposição ao Governo socialista e, depois, ser ele próprio o Governo. Foi por isso que atacou tão duramente o Partido Popular nesta campanha, buscando uma ultrapassagem que esteve a ponto de conseguir. Essa política lhe trouxe um considerável poder eleitoral − e conhecendo-o, tendo acompanhado toda sua carreira política, não acredito que em troca de alguns ministérios Albert Rivera vá fazer um haraquiri.
Em vez de sonhar com o impossível, é melhor aceitar a dura realidade. O que significa que é quase garantido que o Governo que conduzirá a Espanha pelos próximos quatro anos terá como base um acordo entre os socialistas e o Podemos, que, como juntos não alcançam a maioria parlamentar necessária para governar, incluirão provavelmente um terceiro aliado, ou seja, independentistas bascos ou catalães.
O triunfo do PSOE, impecável do ponto de vista democrático, tem uma nuance muito importante. O socialismo atual não é a social-democracia de Felipe González. Está muito mais próximo do socialismo radical de Rodríguez Zapatero, o que permite prever aumentos significativos de impostos devido a reformas sociais ousadas, mas não financiáveis, e talvez uma crise econômica e financeira em médio prazo. Embora, na forma, Pablo Iglesias tenha se moderado muito nesta campanha eleitoral, a ponto de dar aulas de boa educação e temperança a seus adversários, ele não renunciou à revolução social, e sua aliança com o PSOE incluirá, quase certamente, aumentos de salários e exigências de que os empresários e as grandes fortunas os custeiem, o que, cedo ou tarde, retrairá ou paralisará os investimentos. Por sorte, a Espanha está dentro da Europa, e a União Europeia pode atenuar, mas não eliminar (lembremo-nos da Grécia), os esbanjamentos socialistas.
Com certeza a política externa da Espanha mudará com o novo regime, no pior dos sentidos. Por exemplo, no apoio que tem dado à democratização da ditadura venezuelana ou nas pressões internacionais para que o regime do comandante Ortega e de sua mulher na Nicarágua acabe com as perseguições e matanças, solte as centenas de presos políticos e aceite eleições livres, com observadores internacionais que vigiem a limpeza da votação. Há um precedente mais do que alarmante sobre esse assunto: a conduta de Rodríguez Zapatero nas conversações de paz na República Dominicana e seus conselhos à oposição para que aceitasse participar de eleições que estavam forjadas de antemão para favorecer Nicolás Maduro.
Mas é principalmente na questão do independentismo catalão que pode ocorrer uma mudança drástica. Antes das eleições houve algumas conversações entre o presidente do Governo espanhol, Pedro Sánchez, e o presidente da Generalitat catalã, Joaquim Torra, nos quais, aparentemente, ocorreram concessões ao independentismo − como aceitar um “relator internacional” nas negociações −, e nelas eles teriam chegado a falar inclusive do referendo, a exigência básica dos independentistas. O “direito de votar” existe na Constituição espanhola, sem dúvida, mas é o de todos os espanhóis se se trata da secessão de um território da pátria comum, e não o direito excludente dos habitantes do território suscetível de se emancipar. No entanto, Miquel Iceta, líder do Partido Socialista Catalão, o PSC, associado ao PSOE, já declarou de antemão ser favorável a esse “referendo pactuado” (o adjetivo está aí só para tranquilizar os pobres de espírito), e Pablo Igrejas tem se cansado de repetir que o “problema catalão” só será resolvido através do diálogo nessa “nação de nações” que é a Espanha. É óbvio que se o Governo espanhol reconhecer o direito de os catalães decidirem, com que argumentos isso seria negado depois aos bascos, galegos, valencianos etc.?
Nada disto ocorrerá obrigatoriamente, mas poderia ocorrer e, se assim fosse, temo que, em longo prazo, sobreviria a desintegração da Espanha. Para que não aconteça, é indispensável uma vigilância constante desse mesmo eleitorado que concedeu ao PSOE sua formidável vitória. A dissolução da velha Espanha não traria benefícios – e sim prejuízos enormes − a todos os espanhóis, sem exceção, começando por aqueles determinados a obter uma independência que, dados os tempos atuais e as obrigações que a Espanha tem com a União Europeia, seria uma mera aparência repleta de problemas monumentais. Ou seja, mais pobreza, carestia, dívidas e desemprego para quem sonha com a soberania como uma panaceia milagrosa.



segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Cuba / Agonia de uma revolução


Fidel Castro

Cuba: agonia de uma revolução

Na ilha houve uma tentativa, uma esperança e uma pretensão que não devem ser esquecidas. Mas o sonho que encarnou a chegada do Fidel Castro ao poder há 60 anos agoniza irremediavelmente




Patricio Fernández
16 Fev 2019


Muitos estrangeiros compraram propriedades em nome de cubanos nos últimos anos em Havana porque ainda não é permitido que façam isso por conta própria. Os preços se multiplicaram. No bairro de Vedado, abundam as mansões e departamentos em restauração. Na zona de Miramar, existem pubs onde os únicos negros que há dentro são os seguranças: tipos grandes e musculosos como os que guardam as discotecas nova-iorquinas ou parisienses. Meses atrás fui a um desses − o Mio & Tuyo − e, quando quis chegar à área onde estavam as mulheres mais admiráveis, um desses porteiros me deteve pondo seu braço em meu ombro: “Daqui para lá é VIP”, disse-me. “Para passar, você precisa comprar uma garrafa de uísque Chivas Regal ou ser sócio do clube”, acrescentou. E eu pensei: terminou a revolução.
Pelo menos 30 movimentos guerrilheiros surgiram na América Latina desde que triunfou a revolução cubana até o fim dos anos oitenta. Hoje não resta nenhum, salvo o ELN da Colômbia, transformado em organização criminosa. A revolução − esse fantasma que hoje parece abandonar o continente − cativou os melhores políticos, artistas e intelectuais de sua época, e uma literatura esplendorosa brotou sob sua sombra. Até o cristianismo participou de seu feitiço justiceiro com a teologia da liberação. Mas essa fé hoje parece encerrar seu reinado. Dela restam, quando muito, discursos vazios, promessas e slogans que, de tanto ser repetidos sem nunca ser realizados, perderam seu sentido.Para esses que sempre combateram a revolução, porque desde o início ela atentou contra seus interesses e os teve como inimigos declarados, sua morte é motivo de celebração. Mas lhes convém manter viva a ideia de sua ameaça, para que assim possam se apresentar como guardiães das maiorias e conservar o poder. Para aqueles que, por outro lado, acreditaram que outro mundo era possível e que a fraternidade poderia vencer o egoísmo, constatar que seus desejos alimentaram a intolerância, o abuso e a pobreza dói e tira a fala. Deve ser por isso que hoje a esquerda honesta está muda.
Os cubanos costumam discutir sobre quando a revolução perdeu seu encanto. Alguns dizem que foi no começo dos anos setenta, depois do caso Padilla, com a sovietização do chamado Quinquênio Cinza, quando até os edifícios foram projetados conforme os planos de Kruschev e se instalou o conceito de “diversionismo ideológico” para todo aquele que pensasse ou desejasse algo fora da norma estabelecida. Segundo outros, foi em 1989, com a Causa Número 1 − que terminou com o fuzilamento do general Ochoa, uma das figuras mais respeitadas da revolução − e a queda da URSS. O que veio depois, o Período Especial, os cubanos não esqueceram mais. O petróleo desapareceu e era tão curto o tempo que tinham luz elétrica que, em lugar de falar de apagões, eles falavam de alumbrones (“acesões”). Até gatos saíam à caça para comer.
O petróleo e a comida voltaram a Cuba com a chegada de Hugo Chávez à presidência da Venezuela. Chávez viu em Fidel a figura de um pai, de um modelo, de um guia. Quis seguir seus passos e reviver à sua maneira o sonho de revolução que agonizava adicionando a ele o sobrenome “bolivariana”. Comprou Governos em toda a América Latina enquanto o preço do petróleo estava nas nuvens e os somou ao chamado socialismo do século XXI, quando o certo é que o capitalismo já tinha triunfado e o dele não era nada mais que a triste caricatura de um fato histórico que se apagava. A revolução já não tinha artistas, nem intelectuais, nem poesia, nem fé.
Se em Cuba houve gerações que romperam as mãos cortando cana de açúcar, na Venezuela se pregava com maços de notas nas mãos. Se Chávez viu em Fidelum pai legitimador, Fidel encontrou em Chávez um filho como o que muitos cubanos têm no exterior, de onde lhes mandam dinheiro para sobreviver. Por mais duro que seja reconhecer isso, o sonho de socialismo e de dignidade de Cuba sempre foi financiado por outros.


Barbearia no bairro de Vedado.
Barbearia no bairro de Vedado. MICHAEL CHRISTOPHER BROWN


Mas se a revolução cubana perpetuou no poder esse grupo que o conquistou no final da década de 1950, dando lugar a uma gerontocracia imune às mudanças, não gerou uma elite de milionários, como o chavismo. No início foram chamados de boliburgueses e hoje são conhecidos como enchufados (“conectados”). Comercializando petróleo, drogas, ouro e diamantes nacionais, acumularam fortunas imensuráveis, ao mesmo tempo em que vociferavam contra os ricos e a favor do povo. Hoje são eles os principais clientes dos poucos restaurantes de luxo que restam em Caracas, enquanto se multiplicam os refeitórios solidários (panelas comuns) para combater a desnutrição. As caixas de mantimentos CLAP (do Comitê Local de Abastecimento e Produção) que o Governo distribui para aliviar a crise alimentar, “são como o período, porque chegam uma vez por mês e duram uma semana”, brincam aqueles que as recebem. A pobreza e a desigualdade aumentaram notoriamente sob o Governo de Nicolás Maduro.
A Igreja revolucionária cubana está repleta de sacerdotes profissionais que já perderam a fé e de gestos que, desprovidos de significado, hoje parecem momices. Ninguém vive lá nem do cartão de abastecimento mensal nem do salário que o Estado paga. Alguns resumem assim: “Aqui uns fingem que trabalham e outros fingem que lhes pagam”. Com um salário oficial equivalente a 109 reais mensais, morrem de fome. A maior parte da economia nacional se desenvolve fora dessa estrutura socialista. Quem trabalha para uma empresa estatal faz isso principalmente para ter acesso aos bens que passam por ali: os caminhoneiros ao petróleo, os padeiros à farinha, os pedreiros ao cimento… e aí os roubam como formigas e os vendem no mercado negro. É um costume adquirido, de modo que nenhum cubano julga o outro por fazer isso. Se eu fosse descrever o grosso do funcionamento da economia cubana, diria que se trata de um capitalismo selvagem, desregulado e livre de impostos.
O processo de degradação não é novo, mas agora está em uma fase terminal. Ninguém fala de socialismo. É notório o renascer de uma nova burguesia. Embora as condições de vida da imensa maioria continuem sendo muito precárias, esse pequeno grupo que está protagonizando as mudanças viaja, tem Internet em suas casas (há empresas piratas que a instalam) e serve de fachada para dinheiro vindo de fora.
A esta altura, é um regime político em que ninguém acredita. Foi morto por seu orgulho, seu autoritarismo, sua burocracia. O iluminismo, a arrogância, o controle. Queria ser o mundo novo e se tornou um mundo velho. Faz tempo que seu objetivo não é a justiça, e sim a sobrevivência. Não saem em sua defesa os espíritos ousados e desrespeitosos. Aquilo que os barbudos de Sierra Maestra encarnaram alguma vez, hoje aponta o dedo contra eles e os condena. Um rastafári me disse o seguinte no parque Céspedes de Santiago de Cuba: “Como esses velhos podem continuar falando de revolução se lutam dia e noite para que nada mude?”.
Apesar de tudo, em Cuba houve uma tentativa, uma atrevimento, uma esperança e uma pretensão que deve voltar a nos encarar mais cedo do que tarde, porque o ser humano pode renascer depois do fracasso, mas a renúncia a toda a ilusão o mata para sempre. A tarefa de manter vivo o espírito de uma comunidade, de fazer com que cada homem também seja responsável pelos outros e assegurar que a liberdade de cada indivíduo não seja inimiga da liberdade de outros, ainda está de pé. Para torná-la crível, é indispensável se atrever a pensar de novo. Deixar para trás sem complexos aquela esquerda fracassada e pervertida. Acabar com esse matrimônio envenenado, para poder se apaixonar autenticamente outra vez.
Patricio Fernández é fundador e diretor do semanário chileno ‘The Clinic’. Seu último livro, ‘Cuba − Viaje al Fin de la Revolución’, foi lançado no Chile em 24 de janeiro pela editora Debate.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Vargas Llosa / O longo caminho rumo à liberdade


Fernando Vicente

Mario Vargas Llosa

O longo caminho rumo à liberdade

Em algum dia, não longínquo, se escreverá um grande romance tolstoiano sobre a heroica luta do povo venezuelano contra a ditadura de Chávez e Maduro. E o final será, claro, um final feliz



4 FEV 2019 - 11:28 COT

Algum dia se escreverá um grande livro sobre a heroica luta do povo venezuelano contra a ditadura de Chávez e Maduro, que recorde os sofrimentos que padeceu durante todos estes anos sem deixar de resistir, apesar dos torturados e dos assassinados, da catástrofe econômica — provavelmente a mais atroz que a história moderna recorda — que levou um país potencialmente muito rico à fome coletiva e obrigou quase três milhões de cidadãos a fugirem, a pé, em direção aos países vizinhos para não perecerem pela falta de trabalho, de comida, de remédios e de esperança. Menos mal que o martírio da Venezuela parece chegar ao seu fim, graças ao novo ímpeto inoculado na resistência por Juan Guaidó e outros jovens dirigentes.
Parece impossível, não é mesmo?, que uma ditadura rejeitada por todo o mundo democrático, a OEA, a União Europeia, o Grupo de Lima, as Nações Unidas e no mínimo por três quartas partes de sua população possa sobreviver a esta última arremetida da liberdade com a proclamação, pela Assembleia Nacional da Venezuela (o único organismo mais ou menos representativo do país), de Juan Guaidó como presidente encarregado de convocar novas eleições que devolvam a legalidade perdida à nação. E, entretanto, o tirano ainda continua lá.
Por quê? Porque as Forças Armadas ainda o protegem e armaram um escudo protetor ao seu redor. Vimos na televisão aqueles generais e almirantes atulhados de medalhas, enquanto o ministro da Defesa, general Vladimir Padrino, jurava lealdade ao regime espúrio. O que explica esta suposta lealdade não são afinidades ideológicas. É o medo. O recurso do qual Chávez se valeu, e que Maduro manteve com esta cúpula militar para assegurar sua cumplicidade, foi comprá-la, praticamente lhe entregando o negócio do narcotráfico, de tal maneira que um bom número destes oficiais enriqueceu e têm suas fortunas em paraísos fiscais. Mas quase todos eles estão fichados internacionalmente e sabem que, quando o regime cair, irão para a cadeia. As promessas de anistia que Guaidó lhes fez chegar não os tranquilizam, porque suspeitam que não valham fora do território venezuelano, e suas sujas operações estão perseguidas e serão punidas por tribunais internacionais em todos os cantos do planeta.

É indispensável que os países e instituições internacionais multipliquem a pressão contra Maduro

Mas por que então esses jovens oficiais – tenentes, capitães – e soldados golpeados pela atroz crise econômica não se rebelam contra a tirania de Maduro, assim como o resto da população venezuelana? Por uma razão também muito simples. Pela vigilância estrita e implacável exercida sobre as Forças Armadas da Venezuela pelos técnicos e profissionais de Cuba, a quem o comandante Chávez praticamente entregou o controle da segurança militar e civil do regime que implantou. Trata-se de algo sem precedentes; um país renuncia à sua soberania e entrega a outro o controle total de suas Forças Armadas e policiais. E os comunistas, como já foi comprovado a não mais poder, arruínam a economia, destroem as instituições representativas, arregimentam e esmagam a cultura, mas levaram a censura e a repressão de toda forma de insubmissão e rebeldia a uma perfeição quase artística. Não nos esqueçamos de que todas as instituições militares venezuelanas foram submetidas a expurgos sistemáticos, e que há várias centenas de oficiais expulsos ou encarcerados por não serem considerados “seguros” para a ditadura.
Entretanto, a URSS desmoronou como um castelo de cartas, e também seus satélites centro-europeus desmoronaram e hoje em dia são verdadeiros baluartes contra aquele regime que tinha prometido baixar o paraíso à terra, e na verdade criou as piores satrapias que a história conhece. O regime de Maduro se ufana da proteção fornecida a ele por ditaduras como a russa, a chinesa e a turca, e da solidariedade de outras tiranias latino-americanas, como Cuba, Nicarágua e Bolívia. Tremendos companheiros de viagem, para os quais vale o famoso ditado: “Diga-me com quem andas, e te direi quem és”. No caso da Rússia e da China, ambos os países fizeram empréstimos tão extravagantes à ditadura de Maduro — os quais só serviram para agravar a corrupção reinante — que temem, com muitíssima razão, jamais conseguirem cobrá-los. Bem feito para eles: queriam assegurar fontes de matérias primas para si fortalecendo economicamente uma tirania corrupta, e o mais provável é que acabem sendo também parte de suas vítimas.
A fera que vai morrer se defende com unhas e dentes, e não há dúvida de que o regime, agora que se sente encurralado e pressente seu fim, pode causar muita dor e derramar ainda mais sangre inocente. Por isso é indispensável que os países e instituições democráticas internacionais multipliquem a pressão contra o Governo de Maduro, estendendo os reconhecimentos à presidência de Juan Guaidó e à Assembleia Nacional, e obtendo o isolamento e a orfandade do regime a fim de precipitar sua queda antes que cause mais danos do que já causou à desventurada Venezuela.

As tentativas de diálogo foram frustrados porque a ditadura pretendia utilizar a negociação para ganhar tempo

O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, disse com clareza: “Não há nada que negociar com Maduro”. Todas as tentativas de diálogo se viram frustradas porque a ditadura pretendia utilizar as negociações só para ganhar tempo, sem fazer a menor concessão, e conspirando sem trégua, graças à ajuda que lhe prestavam pessoas ingênuas ou maquiavélicas, para semear a discórdia entre as forças da oposição. As coisas foram já longe demais, e a primeira prioridade agora é acabar o quanto antes com a ditadura de Maduro, a fim de que sejam convocadas eleições livres e os venezuelanos possam finalmente se dedicar à reconstrução de seu país.
A mobilização do mundo democrático, começando pelos países ocidentais, foi algo sem precedentes. Não me recordo de ter visto nada parecido nos muitos anos que tenho. Ao mesmo tempo em que diversos Governos, começando pelos Estados Unidos e Canadá e os principais países europeus, reconheciam Guaidó como presidente, a União Europeia, a OEA, as Nações Unidas e todos os países democráticos latino-americanos, com exceção do Uruguai e México (algo previsível), rompiam com a ditadura e se mobilizavam a fim de apressar a queda do regime sanguinário de Maduro. Não se deve esquecer, nestes momentos em que finalmente se vê uma luz ao final deste longo caminho, que nada disto teria sido possível sem o sacrifício do povo da Venezuela, que, se em um primeiro momento se rendeu aos cantos de sereia de Chávez, depois reagiu com exemplar coragem e manteve sua resistência por todos estes anos, sem se deixar intimidar pela ferocidade da repressão.
Obrigado a Julio Borges, María Corina Machado, Leopoldo López, Lilian Tintori, Henrique Capriles, Antonio Ledezma, Juan Guaidó e aos milhares e milhares de mulheres e homens que os seguiram por todos estes anos, demonstrando nas ruas, e nos calabouços e no exílio, que a América Latina já não é, como no passado, terra de sátrapas e de ladrões, e que um povo que ama a liberdade não pode ser indefinidamente acorrentado. Algum dia, não longínquo, o rebento de um desses grandes escritores que a Venezuela já deu à língua espanhola escreverá esse grande romance tolstoiano sobre o que ocorreu e está ocorrendo por lá. E o final será, claro, um final feliz.



domingo, 25 de novembro de 2018

Vargas Llosa / Juízes e presidentes

Fernando Vicente


Juízes e presidentes

Os magistrados peruanos que se atreveram a atacar a corrupção na pessoa dos últimos quatro chefes de Estado estão tentando transformar a realidade do Peru em uma democracia de verdade e sem ladrões

Mario Vargas Llosa
25 nov 2018

O ex-presidente peruano Alan García, cercado pela Justiça devido a supostos casos de má administração e recebimento de propinas durante seu segundo Governo, relacionados à construção do metrô de Lima, optou por pedir asilo na Embaixada do Uruguai alegando ser alvo “de perseguição política”. O pretexto é simplesmente grotesco, porque no Peru de hoje não há um único preso político e ninguém é perseguido por suas ideias ou filiação partidária; e provavelmente nunca houve tanta liberdade de expressão e de imprensa como a que existe hoje no país.
Naturalmente, o outro lado da moeda é que os quatro últimos chefes de Estado são alvo de investigações por suspeita de roubos. Eles se encontram investigados pelo Poder Judiciário, com ordens de prisão e embargo de seus bens, ou foragidos. Por sua vez, o ex-ditador Alberto Fujimori, condenado a 25 anos de prisão por seus crimes, está refugiado sob tratamento intensivo na Clínica Centenário de Lima, de onde, caso saia, voltará para a cadeia da qual o tirou um indulto indevido do ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski. Este último, também com ordem de prisão, é alvo de uma investigação judicial por lavagem de dinheiro, assim como o ex-presidente Ollanta Humala, que, com sua mulher, Nadine, ficou dez meses em prisão preventiva. O outro ex-presidente, Alejandro Toledo, fugiu para os Estados Unidos quando se descobriu que tinha recebido cerca de 20 milhões de dólares (76 milhões de reais) de propinas da Odebrecht, e agora é alvo de um processo de extradição movido pelo Governo peruano.
Essa coleção de presidentes suspeitos de corrupção — eu me acuso de tê-los promovido e haver votado neles, acreditando que fossem honestos — justificaria o mais sombrio pessimismo sobre a vida pública do meu país. No entanto, depois de ter passado oito dias no Peru, volto animado e otimista, com a sensação de que, pela primeira vez em nossa história republicana, há uma campanha eficaz e valente de juízes e procuradores para punir de verdade os presidentes e funcionários desonestos, que aproveitaram seus cargos para cometer crimes e enriquecer. É verdade que nos quatro casos até agora só há presunção de culpa, mas os indícios, principalmente em relação a Toledo e García, são tão evidentes que é muito difícil acreditar em sua inocência.
Como em boa parte da América Latina, o Poder Judiciário no Peru não tinha fama de ser aquela instituição incorruptível e sábia encarregada de zelar pelo cumprimento das leis e punir os crimes; e tampouco de atrair, com seus salários medíocres, os juristas mais capazes. Pelo contrário, a má fama que o rodeava fazia supor que um grande número de magistrados não tinha a formação e a conduta devidas para administrar justiça e merecer a confiança dos cidadãos. No entanto, de algum tempo para cá, uma revolução silenciosa está em andamento no seio do Poder Judiciário, com o surgimento de um punhado de juízes e procuradores honestos e capazes, que, correndo os piores riscos, e apoiados pela opinião pública, conseguiram corrigir aquela imagem, enfrentando os poderosos — tanto políticos como sociais e econômicos — em uma campanha que levantou o ânimo e encheu de esperanças uma grande maioria de peruanos.



A corrupção é hoje o maior inimigo da democracia na América Latina

A corrupção é hoje o maior inimigo da democracia na América Latina, corroendo-a a partir de dentro, desmoralizando a cidadania e semeando a desconfiança em relação a instituições que parecem nada mais do que a chave mágica que transforma as maldades, os crimes e os privilégios em ações legítimas. O que ocorreu no Brasil nos últimos anos foi um anúncio do que poderia ocorrer em todo o continente. A corrupção havia se espalhado por todos os cantos da sociedade brasileira, comprometendo igualmente empresários, funcionários, políticos e gente comum, estabelecendo uma espécie de sociedade paralela, submetida aos piores compromissos e imoralidades, na qual as leis eram sistematicamente violadas em qualquer lugar, com a cumplicidade de todos os poderes. Contra esse estado de coisas se levantou o povo, liderado por um grupo de juízes que, amparados pela lei, começaram a investigar e a punir, enviando para a prisão aqueles que, por seu poder econômico e político, acreditavam ser invulneráveis. O caso da Odebrecht, uma empresa todo-poderosa que corrompeu pelo menos uma dezena de Governos latino-americanos para conseguir contratos multimilionários de obras públicas — sem suas famosas “delações premiadas”, os quatro ex-chefes de Estado peruanos estariam livres de problemas com a Justiça —, transformou-se praticamente no símbolo de toda aquela podridão. É isso que explica o fenômeno Jair Bolsonaro. Não é que 55 milhões de brasileiros tenham se tornado fascistas da noite para o dia, e sim que uma imensa maioria de brasileiros, farta da corrupção que tinha se transformado no ar respirado no Brasil, decidiu votar no que acreditava ser a negação mais extrema e radical daquilo que se chamava de “democracia” e era, pura e simplesmente, uma delitocracia generalizada. O que acontecerá agora com o novo Governo desse caudilho abracadabra? Minha esperança é que pelo menos dois de seus ministros, o juiz Sérgio Moro e o economista liberal Paulo Guedes, moderem-no e o levem a atuar dentro da lei e sem reabrir as portas para a corrupção.
Seria uma vergonha se o Uruguai concedesse asilo a Alan García, que não está sendo investigado por suas ideias e atuações políticas, e sim por crimes tão comuns como receber propinas de uma empresa estrangeira que competia por contratos multimilionários de obras públicas durante seu Governo. Seria como fornecer um álibi de respeitabilidade e vitimização a quem — se for verdade aquilo de que é acusado — contribuiu de forma flagrante para desvirtuar e degradar a democracia que, com justiça, esse país sul-americano se gaba de ter mantido durante boa parte de sua história. O direito de asilo é, sem dúvida, a mais respeitável das instituições em um continente tão pouco democrático como foi a América Latina, uma saída de emergência contra as ditaduras e suas ações terroristas para calar as críticas, silenciar as vozes dissonantes e liquidar os dissidentes. No Peru, conhecemos bem esse tipo de regimes autoritários e brutais que semearam sangue, dor e injustiças durante grande parte de nossa história. Mas, precisamente porque estamos conscientes disso, não é justo nem aceitável que em um período como o atual, no qual, em contraste com aquela tradição, vive-se um regime de liberdades e de respeito à legalidade, o Uruguaiconceda a condição de perseguido político a um dirigente que a Justiça investiga como suposto ladrão.



Seria uma vergonha se o Uruguai concedesse asilo ao ex-presidente peruano Alan García

Os juízes e procuradores peruanos que se atreveram a atacar a corrupção na pessoa dos últimos quatro chefes de Estado contam com um apoio da opinião pública que o Poder Judiciário jamais teve em nossa história. Eles estão tentando transformar a realidade peruana em algo semelhante àquilo que o Uruguai representou durante muito tempo na América Latina: uma democracia de verdade e sem ladrões.





sábado, 5 de maio de 2018

Vargas Llosa / Colômbia a ponto


Fernando Vicente

Colômbia a ponto

Se as pesquisas são mais ou menos exatas, Iván Duque deverá ganhar as eleições do próximo dia 27 com folga e, talvez, até no primeiro turno


Mario Vargas Llosa
5 mai 2018

Ninguém nunca me pôde explicar por que os colombianos falam o melhor espanhol de toda a América Latina. Não me refiro à elite culta, mas aos homens e mulheres comuns nos quais são notáveis a precisão e a eloquência com que costumam expressar-se, e a riqueza de seu vocabulário. É verdade que a Colômbia teve ilustres gramáticos e linguistas desde o século XIX, e certamente conhecer nossa língua e saber usá-la deve ter sido, há muito tempo, preocupação central de seus programas escolares.
Outra coisa notável e surpreendente desse país é que, apesar de ter sofrido por mais de cinquenta anos com guerrilhas sanguinárias, vinculadas ao narcotráfico, algo que em qualquer outra nação latino-americana teria ocasionado um golpe de Estado e uma ditadura militar de longos anos, seguiu funcionando como uma democracia, liberdade de imprensa, eleições livres e juízes mais ou menos independentes. Quando o presidente Juan Manuel Santos e as FARC iniciaram as negociações de paz, o mundo inteiro festejou, e mais ainda quando, depois de um longo vaivém, ambas as partes chegaram a um acordo que parecia pôr fim a essa guerra interminável.
Por isso o mundo inteiro (e eu mesmo) tivemos uma surpresa maiúscula quando, no referendo que deveria consolidar aquele acordo, os eleitores colombianos o rejeitaram de modo inequívoco, dando razão a quem, como o ex-presidente Álvaro Uribe, se opunha a ele considerando que o Governo tinha feito concessões demais às FARC, sobretudo no que se refere aos crimes, sequestros e tortura de suas vítimas.
Acabo de passar uns dias na Colômbia, onde serão realizadas eleições em 27 de maio, e aqueles acordos de paz são o ponto nevrálgico dos debates. Fiquei impressionado com a virulência dos ataques dos adversários dos acordos ao presidente Santos, a quem acusam de ter feito concessões demais a uma guerrilha desalmada, sustentada pelo narcotráfico e que deixou semeadas por todo o país dezenas de milhares de famílias de vítimas. E essas críticas parecem contar com o respaldo de um grande setor da opinião pública. Um só exemplo pode dar ideia do volume das críticas: Humberto de La Calle, que foi o chefe negociador do lado do Governo e agora é candidato à Presidência pelo Partido Liberal, tem nas pesquisas um porcentual ridículo, que oscila entre três e quatro por cento das intenções de voto. Por usa vez, Iván Duque, o candidato do Centro Democrático, o partido de Uribe, que tem como vice-presidenta Marta Lucía Ramírez, de origem conservadora, lidera as pesquisas com dez pontos acima de seu mais próximo adversário, o esquerdista Gustavo Petro, ex-prefeito de Bogotá.

Acredito que, em longo prazo, a história fará justiça a Juan Manuel Santos

Acredito que, em longo prazo, a história fará justiça a Juan Manuel Santos, e uma maioria de colombianos terminará aceitando que foi oportuno e corajoso iniciar aquelas negociações para pôr fim a uma guerra que vinha sangrando o país e emperrando seu progresso, um anacronismo em uma época como a nossa, em que uma coisa pelo menos ficou clara: não é disparando tiros, assassinando, sequestrando e traficando drogas que se acaba com a pobreza, as desigualdades e as injustiças de uma sociedade. Não há um só exemplo que prove o contrário e, sim, na realidade, seria bem o oposto: se tivessem triunfado, as FARC teriam feito da Colômbia uma segunda Cuba ou uma segunda Venezuela, ou seja, uma ditadura brutal e paupérrima.
Com todas as deficiências que uma maioria de colombianos vê nos acordos de paz, estes serviram pelo menos para algo evidente: que, apesar do que a propaganda revolucionária e extremista fazia crer, as FARC, longe de representarem o “povo”, eram uma organização subserviente e temida, e ao mesmo tempo desprezada. O povo colombiano em sua imensa maioria a repudia e, em vez de aplaudir sua incorporação à vida política, a vê com ódio e temor. Por isso o candidato presidencial da antiga guerrilha, Rodrigo Londoño (Timochenko), teve de renunciar a sua candidatura, e os únicos parlamentares das FARC no novo Congresso serão só aqueles que preencherão o número mínimo de cadeiras garantidas pelos acordos de paz, embora os votos dos eleitores os tenham rejeitado.
Os acordos de paz não teriam sido possíveis sem os duros golpes que o Governo de Álvaro Uribe impôs à guerrilha, um Governo do qual, convém recordar, Juan Manuel Santos foi um enérgico ministro da Defesa. “Faltou apenas isto para acabar com as FARC”, me disse um amigo, apertando os dedos. Não sei se é correto, mas sei que, sem aqueles graves reveses militares que o anterior Governo lhes assestou, e que devolveram a confiança e recuperaram as estradas e boa parte do território que os guerrilheiros terroristas ocupavam, estes não teriam jamais chegado a sentar-se à mesa de negociações.

Os acordos de paz não teriam sido possíveis sem os duros golpes que o Governo de Álvaro Uribe impôs à guerrilha

O que acontecerá agora? Se as pesquisas são mais ou menos exatas, Iván Duque deverá ganhar com folga e, talvez, até no primeiro turno. Apesar de sua juventude, é um homem muito capaz e, além de sua formação econômica e a experiência financeira em organizações internacionais, é um homem culto, que não se envergonha de ler poesia e romances. Na chapa presidencial é acompanhado por uma mulher que conheço bem e não vacilo em dizer que é admirável: Marta Lucía Ramírez. O risco de populismo e extremismo, encarnado por Gustavo Petro, parece, portanto, descartado em boa hora para os colombianos. Duque e Ramírez não propõem desconsiderar os acordos, mas aperfeiçoá-los.
Não será fácil a tarefa para o futuro governante desse país que fala tão bem e de tão sólida entranha democrática. Há um milhão de venezuelanos que, ao fugirem da fome, do desemprego e da repressão que transformaram seu país em um inferno, escaparam para a Colômbia, que os acolheu generosamente. Mas, entre aqueles exilados, Maduro, seguindo o exemplo de Fidel Castro quando dos famosos marielitos, aproveitou para esvaziar suas prisões de criminosos e foragidos e incentivá-los a escapar para o país vizinho. Deste modo, deixa espaço nos ergástulos para enchê-los com os opositores democratas que se multiplicam a cada dia, enquanto a Venezuela afunda na miséria e no caos, e castiga um país vizinho que abriu os braços às infelizes vítimas de sua demagogia e desvarios. Não só a Venezuela precisa livrar-se o quanto antes de Maduro e da gangue que o acompanha em suas ações malignas, mas também a Colômbia e o restante da América Latina, que sofrem por igual com a tragédia que vive a terra de Bolívar.