Mostrando postagens com marcador Auschwitz. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Auschwitz. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 7 de abril de 2016

‘O Filho de Saul’ / Como descrever o indescritível


‘O Filho de Saul’: como descrever o indescritível

Longa sobre o Holocausto, que concorre ao Oscar de filme estrangeiro, gera debate sobre limites da representação do horror


JOSÉ EMILIO BURUCÚA
12 FEV 2016 - 13:27 COT










É provável que nenhuma proibição cultural tenha motivos para ser respeitada além de certo tempo após o fenômeno, sem dúvida terrível, que a engendrou. A exceção a isso seria a ruptura simbólica do Quinto Mandamento de Moisés e dos dois maiores tabus da civilização – o parricídio e o incesto. Por ruptura simbólica seria preciso entender uma apologia, acima de tudo estética, da matança dos nossos semelhantes, das relações incestuosas ou do assassinato do pai. Isto não significa que as artes e o pensamento se abstenham de refletir sobre esses crimes ou de representá-los. Pelo contrário. A poesia, o teatro, as artes visuais, o cinema e o exame ético ou antropológico provaram-se os instrumentos mais eficazes para educar os seres humanos sobre o espanto racional que os atos bárbaros devem nos inspirar, em nome da continuidade da nossa vida social.
Entretanto, foi compreensível e até necessário que, ao escolher o Holocausto como matéria-prima, o ato estético tenha procurado evitar durante duas ou três gerações a abordagem ficcional do ocorrido nos campos de extermínio e sua representação em imagens, sobretudo a do núcleo infernal, o do abismo que devorou todo rastro do humano nas câmaras de gás. A premissa do filme húngaro Filho de Saul – que estreou no Brasil em 4 de fevereiro e é um dos favoritos a levar o Oscar de melhor filme estrangeiro – desobedece tanto o dictum de Adorno sobre a impossibilidade de fazer poesia depois de Auschwitz como a oposição tenaz de Claude Lanzmann a incluir em seu filme Shoah fotos ou cenas documentais tomadas nos Lager [campos de concentração]. Ambas foram formas quase coercitivas de expressar a certeza de que o respeito às vítimas exigia transformar tais precauções em mandamentos.
O ensaio de Georges Didi-Huberman intitulado Imagens Apesar de Tudo, sobre as fotos que Alex, um Sonderkommando (prisioneiro obrigado pelos nazistas a colaborar na execução e ocultação do extermínio de seus semelhantes), tirou do interior de uma câmara de gás para revelar à resistência polonesa e aos aliados o que estava ocorrendo em Birkenau, abriu uma polêmica entre o autor, um historiador da arte, e dois seguidores da postura de Lanzmann, Gérard Wajcman e Élisabeth Pagnoux. Foi tão áspero o debate que Didi-Huberman chegou a ser identificado com são Paulo, uma espécie de traidor irredimível da proibição de fabricar imagens. Sua resposta ao ataque foi contundente: a valentia e o risco enfrentado pelo Sonderkommando Alex, que fez as fotos para mostrar ao mundo fatos inconcebíveis que deveriam ser conhecidos, justificam não só nosso interesse em observar e compreender as imagens possivelmente mais perigosas da história como também nosso agradecimento reverencial por elas.









Talvez Filho de Saul passe a formar parte da série histórica de descrições infernais explícitas assumidas por Dante

A verdade é que já em 1955 – bem antes, portanto, desse debate travado nos anos 2001-2003 – o cineasta Alain Resnais e o músico Hanns Eisler, no filme Noite e Neblina, haviam quebrado o tabu das imagens e da metamorfose estética do Holocausto. Claro que agora Filho de Saul, que recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2015, foi muito mais longe ao inventar a história desse homem no último grupo de Sonderkommandos, rebelado contra as SS em 7 de outubro de 1944. O personagem Saul acredita reconhecer seu filho entre um dos cadáveres da câmara e busca para ele a redenção minúscula de celebrar o rito judaico do sepultamento.
O despontar de uma piedade absurda e deslocada é o tema deste filme de ficção, porque só um impulso, uma emoção, ou melhor, um paroxismo anímico dessa natureza parece concebível naquela circunstância. Além do recurso à poiesis[criação artística] em um marco histórico estrito, ou seja, uma ficção que ultrapassa por completo o documentário, László Nemes, seu diretor, um estreante de 38 anos, ambientou a trama no cenário mais recôndito, maldito e indescritível do devir humano. Mas nunca vemos esse espaço de tal modo a podermos percorrê-lo, desenhá-lo em nossas mentes, porque é mostrado fora de foco, em uma gama de verdes e ocres neutralizados no cinza, e porque a passagem de um ambiente a outro é sempre vertiginosa e caótica. Nem sequer os gritos e golpes nas portas da câmara – abafados sob as palavras que os personagens trocam – nos permitem captar pela audição as dimensões do lugar.
Quando a ação se transfere para o exterior, os incêndios e os uivos prevalecem nas visões noturnas. Claustrofobia, desintegração espaço-temporal, escuridão, fogo: acumulam-se os elementos da antiga fórmula infernal para representar os locais do massacre, os fios e nós da rede de palavras, metáforas, imagens e movimentos que, desde os tempos de Bartolomé de las Casas, os europeus utilizaram na hora de se referirem à destruição de seres humanos indefesos. Frei Bartolomé talvez tenha sido o primeiro escritor a conceber o disparate factível de um inferno vivido por inocentes, e pôde, então, comparar o aniquilamento dos povos com as violências imaginárias do reino do diabo.
Talvez Filho de Saul passe a formar parte da série histórica de descrições infernais explícitas assumidas por Dante, El Bosco, Beccafumi, Rubens e Milton, e das metafóricas de Joseph Conrad, Francis Ford Coppola e os romances sobre o ciclo da borracha na América Latina. Assim como estas, Filho de Saul constrói – apesar de, e também devido a, seu caráter estético – uma representação do verdadeiro ocorrido em um fenômeno de crueldade em massa e radical (o Holocausto, neste caso), capaz de competir com o relato historiográfico. Mas há algo mais. Os episódios diurnos na floresta nos preservam das visões infernais – como, por exemplo, a do final, quando os rebeldes do Sonderkommando buscam refúgio dentro de uma cabana semidestruída entre as árvores. A aparição fugaz de um menino rechonchudo e curioso no meio da natureza, que Saul contempla por um momento, corresponde a um menino de verdade ou é mais uma projeção ilusória do protagonista, um fantasma no sentido epicurista, um sósia do filho de suas fantasias cuja volta à vida vislumbrada substitui a multidão incontável de vítimas?










Creio que nesse caso a ruptura dos tabus representada por Filho de Saul vale a pena por dois motivos: primeiramente, por nos proporcionar um conhecimento válido, lúcido, coerente e impregnado de emoção de um momento paralisante da História, o Holocausto; e em segundo lugar, porque nos reconcilia com a esperança da recuperação de um sentido, graças ao regresso imaginário da figura do menino durante o repouso sob a cabana na floresta. Não há nele nenhuma falta de respeito para com os mortos. Atrevo-me a pensar que, pelo contrário, as vidas interrompidas dos Sonderkommandos reais terminaram de se configurar na narração fictícia sobre Saul e seus companheiros.
Pelo episódio sobre Elpenor contado por Homero na Odisséia, pelas respostas que, segundo Heródoto, Sólon deu a Creso a respeito da felicidade e da morte, pelo relato de são Lucas sobre o peregrino cujo reconhecimento completou o arco e o significado da existência de Jesus, sabemos que toda vida humana exige a representação completa outorgada a ela pelo fato de os sobreviventes poderem nos contar sobre as condições de sua morte, compreender sua passagem pela Terra, e construir, real ou simbolicamente, um monumento em sua memória. Filho de Saul é um passo na direção desse saber histórico e estético cada vez mais abrangente sobre a dor e a vergonha do Holocausto.









O longa húngaro constrói uma representação do verdadeiro ocorrido em um fenômeno de crueldade em massa e radical

Caberia expor uma terceira razão para dar as boas-vindas ao filme de Nemes. A produção nos permite realizar comparações (exercício que nós, historiadores, consideramos fundamental em nossa ciência) com outros relatos excêntricos do Holocausto, e com narrações de outros genocídios e assassinatos em massa sistemáticos de pessoas. Em tal operação também se leva a cabo a quebra de um terceiro tabu relativo ao Holocausto: a proibição de compará-lo aos demais massacres da era contemporânea. No campo da historiografia, apenas o israelense Omer Bartov se atreveu a superar essa imposição.
Em relação às representações excêntricas do Holocausto, me ocorre citar Maus: A Survivor’s Tale (Maus: História de um sobrevivente, em tradução literal), livro em quadrinhos de Art Spiegelman, e o filme A Vida É Bela (Roberto Benigni, 1997), premiado com o Oscar. Quanto às catástrofes humanas produzidas em outros contextos, a transformação em ficção e a exibição do perigo foram ferramentas básicas em filmes como Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999), sobre os desaparecimentos na Argentina; Valsa com Bashir (2008), animação de Ari Folman que trata dos massacres de Sabra e Chatila, ocorridos no Líbano em 1982; e ainda A Imagem que Falta (Rithy Panh, 2013), que combina documentários autênticos e personagens animados para nos contar de maneira comovente o genocídio do Camboja, indo mais a fundo do que havíamos presenciado na produção Os Gritos do Silêncio (Roland Joffé, 1984).

José Emilio Burucúa é historiador e escritor argentino. Junto com Nicolas Kwiatkowski, é autor deCómo Sucedieron Estas Cosas – Representar Masacres y Genocidios.
EL PAÍS



‘O Filho de Saul’, a um metro do inferno





quarta-feira, 6 de abril de 2016

O horror sem adjetivos de um testemunho inédito de Primo Levi






Primo Levi

O horror sem adjetivos de um testemunho inédito de Primo Levi

Escritor relatou sua experiência de Auschwitz em depoimentos para julgamentos de criminosos



Como ocorre com outros grandes escritores que relataram sua experiência de sobreviventes do Holocausto, como Elie Wiesel e Imre Kertèsz, o valor da obra do italiano Primo Levi vai muito mais além do literário (mesmo sendo imenso nesse terreno). A era dos que presenciaram a Shoah está prestes a acabar. Os últimos sobreviventes, e também os últimos carrascos, vão pouco a pouco se apagando e a memória desaparece com eles. Por isso obras com a Trilogia de Auschwitz são mais importantes do que nunca: somente através da leitura dos relatos dos que lá estiveram é possível tentar entender, mesmo remotamente, o horror incompreensível do nazismo e do Holocausto, cujo dia internacional se comemora nesta quarta-feira.

Primo Levi (1919-1987) escreveu também uma série de relatórios para diferentes instituições e para prestar depoimentos em processos penais contra criminosos de guerra, nos quais descreve sua passagem pelos campos da morte, que acabam de ser resgatados em um volume, Assim foi Auschwitz (Editora Península, na tradução ao espanhol de Carlos Gumpert; e traduzido ao português pela Companhia das Letras). Secos, quase sem adjetivos, carregados de horror, uma leitura que é difícil de esquecer.
Primo Levi

Químico de formação, o escritor de Turim foi membro da resistência italiana. Em um obscuro episódio resgatado recentemente por Sergio Luzzato em seu livro Partisanos, sua brigada executou dois homens acusados de roubo, mas tudo indica que Levi não participou diretamente. Em setembro de 1943 foi preso pela polícia fascista e, ao se declarar judeu, ao invés de ser imediatamente executado por ser guerrilheiro, foi deportado a Auschwitz. Sobreviveu graças ao seu ofício de químico e a grandes doses de força e sorte no campo satélite de Monowitz (Auschwitz III). Nesse local eram colocados os que, como relata o próprio Levi, estavam condenados a ser exterminados ao longo de vários meses com o trabalho escravo, não imediatamente nas câmaras de gás.
Ao voltar dos campos escreveu É isso um Homem?, um dos livros mais importantes do século XX que, entretanto, demorou muito tempo a encontrar um editor, talvez por ser ainda muito cedo para que a sociedade enfrentasse a magnitude do ocorrido durante a noite do terror nazista. A Trilogia de Auschwitzse completa com A trégua e Os afogados e os sobreviventes, apesar de Levi também ter escrito livros muito diferentes como A tabela periódica e Se não agora, quando? sobre um grupo de guerrilheiros. Em 11 de abril de 1987 se suicidou atirando-se da escada de sua casa em Turim.
A obra de Levi obteve um impacto gigantesco e pode-se dizer que passou a fazer parte da memória do horror da humanidade. Nunca deixou de ser traduzida, reeditada e, sobretudo, lida. Suas obras completas acabam de ser publicadas em inglês, com um prólogo de Toni Morrison, vencedora do Prêmio Nobel. Em uma das resenhas, publicada no The New York Review of Books, o tradutor, romancista e especialista em literatura italiana Tim Parks escreve que “Levi sempre quis colocar o leitor diante do Holocausto com toda a crueza, sem jamais lhe oferecer uma zona de conforto”. Este princípio se aplica especialmente aos documentos contidos em Assim foi Auschwitz, vários deles escritos em parceria com seu amigo, o médico Leonardo De Benedetti, com quem compartilhou o cativeiro.
Primo Levi

“Informe sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz”, o texto central do volume, escrito a pedido do Exército soviético, é um dos primeiros relatos que descrevem o sistema de funcionamento de Auschwitz, desde a atuação dos Sonderkommando, os internos obrigados a cuidar das câmaras de gás, e os crematórios que aparecem no impactante filme O filho de Saul, até a anulação da vontade dos prisioneiros, que se tornavam zumbis capazes apenas de esperar a morte, a fome e o castigo. Também é devastador quando descreve a procedência dos presos com quem compartilhou aquele campo satélite de Auschwitz: judeus de toda a Europa, de todos os ofícios e classes sociais, arrastados pelos nazistas até os confins da Polônia para serem assassinados.
São também muito interessantes seus testemunhos para diferentes processos, entre eles o de Adolf Eichmann, sobre o qual Hannah Arendt escreveu sua famosa teoria da banalidade do mal. Naqueles textos, alguns muito precoces, tanto De Benedetti como Levi já consideravam que a responsabilidade do horror “recai de forma coletiva sobre todos os soldados, suboficiais e oficiais das SS ali atuantes”. Nos últimos dois anos vários guardas de Auschwitz foram processados na Alemanha com base nesse mesmo princípio: o fato de terem trabalhado no campo de extermínio, independentemente do cargo ou da missão, já é um crime em si. Levi também denuncia um assunto crucial: o papel da indústria alemã no trabalho escravo. “Os campos não eram um fenômeno marginal: a indústria alemã se baseava neles; eram uma instituição fundamental da Europa marcada pelo fascismo e parte dos nazistas não escondia que o sistema se manteria, melhor dizendo, se estenderia e se aperfeiçoaria”. São textos que carecem da intensidade literária de É isso um homem?, mas que colocam o leitor diante do horror, sem concessões ou filtros, só com a memória de uma testemunha.








INESGOTÁVEL HOLOCAUSTO


Em um de seus textos, Levi lamenta que “a dez anos da libertação dos campos de concentração é triste e significativo ver-se obrigado a constatar que, na Itália pelo menos, o tema dos campos de extermínio, longe de terem virado história, se encaminha ao mais absoluto esquecimento”. É uma das poucas coisas sobre as quais o escritor italiano se engana: 70 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a Shoah continua sendo objeto de atenção constante em novos livros e filmes.
Em 2015, foram publicadas duas obras muito importantes, KL. A história dos campos de concentração (publicada na forma de e-book no Brasil), de Nikolaus Wachsmann, e Terra negra (Galaxia Gutenberg, ainda não editado no Brasil), enquanto em 15 de janeiro estreou na Espanha O filho de Saul, um filme do húngaro László Nemes que ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes (estreia prevista para fevereiro de 2016). O filme acompanha um membro do Sonderkommando e tenta refletir o horror de Auschwitz aos olhos de um prisioneiro. O filme obteve um enorme impacto e revitalizou a interminável polêmica sobre a legitimidade de narrar o holocausto por meio da ficção.

EL PAÍS




segunda-feira, 4 de abril de 2016

Auschwitz protege sua sobrevivência






Auschwitz protege sua sobrevivência

Mais de 30 países aportam recursos para garantir a conservação do museu no antigo campo nazista, que quase fechou as portas

TEREIXA CONSTENLA
Auschwitz 15 NOV 2014 - 18:00 COT







pulsa en la foto

O lugar mais cruel da Terra recebe mais de um milhão de visitas por ano. Quase tantas quanto o número de pessoas que pereceram em seu interior. No meio de uma planície polonesa, a 70 quilômetros de Cracóvia, o Terceiro Reich desenvolveu sobre antigas instalações militares de Oswiecim – que renomearam como Auschwitz – uma indústria sofisticada da morte, tão eficaz como macabra. O antigo campo de extermínio, que completará 70 anos de libertação em 27 de janeiro de 2015, esteve prestes a desaparecer como espaço de memória devido às dificuldades econômicas para garantir a conservação de seus 155 edifícios, 300 ruínas (entre elas, dois fornos e câmaras de gás de Birkenau que foram explodidos pelos nazistas) e milhares de objetos pessoais que em si mesmos condensam o espanto: minúsculos sapatos infantis, próteses de mutilados, montanhas de óculos redondos, toneladas de cabelo, as maletas de Klara Golosein, Georg Weiss e Else Meier, cartas de vítimas, anotações de carrascos... “Antes da criação do Fundo Perpétuo, a situação era crítica. Hoje em dia, graças à compreensão geral do quanto é importante preservar a autenticidade para as futuras gerações, começamos a ver a proverbial luz no fim do túnel”, afirma Piotr M. A. Cywinski, diretor do Museu de Auschwitz-Birkenau.
A conservação de um complexo que ocupa 200 hectares — os nazistas construíram três campos, apesar de o museu atual só incluir visitas ao I e ao II (Birkenau) — requer uma injeção financeira que recaiu essencialmente sobre a Polônia, forçada por razões geográficas, apesar de sua nula responsabilidade política no genocídio. Pouco receptiva aos pedidos do Governo polonês (“Cada nação tem o dever inalienável de proteger estes lugares”, dizia o ministro da Cultura e Patrimônio), a contribuição internacional até 2009 tinha representação irrisória — entre 1% e 3% de um orçamento anual de 8 milhões de euros (26 milhões de reais). Naquele ano, os responsáveis pelo museu, aberto em 1947 e com acesso gratuito (paga-se apenas pelo serviço de guia), lançaram um aviso claro: teriam de fechar Auschwitz em pouco tempo diante da falta de meios para preservar seus barracões, cercas, escritórios e demais restos materiais.



Até 2009, quase todos os custos do museu eram arcados pela Polônia

Empurrado pelo temor de que o desaparecimento das últimas testemunhas se traduzisse na morte da memória do que aconteceu, Wladyslaw Bartoszewski, prisioneiro 4.427 entre setembro de 1940 e abril de 1941 e responsável pelo Conselho Internacional de Auschwitz, promoveu então a formação de uma fundação internacional que deveria arrecadar 120 milhões de euros (391 milhões de reais) para constituir um capital (o chamado Fundo Perpétuo) que permitisse financiar com seus rendimentos anuais os trabalhos necessários de restauração e manutenção. Em suas intervenções, Bartoszewski expunha sua preocupação: “O momento em que não vão mais restar testemunhas se aproxima inexoravelmente. Entre nós permanece a convicção de que, quando as pessoas se forem, as pedras vão gritar. Está ligado à natureza humana, porque quando não resta vestígio tangível os acontecimentos do passado caem no esquecimento”.
Desde a criação da fundação, em janeiro de 2009, somaram-se a ela 31 países cujos aportes econômicos alcançaram 102 milhões de euros, o que não está longe da meta (120 milhões). Por razões óbvias, a Alemanha foi o Estado mais generoso e diligente ao receber a petição do então primeiro-ministro polonês, Donald Tusk: doou a metade do valor requerido (60 milhões de euros). Mais tarde se somariam numerosos países de distintos continentes, tamanhos e poderio econômico para respaldar a sobrevivência de Auschwitz. Também algumas cidades, como Paris (310.000 euros), e contribuintes particulares. A Espanha, apesar dos contatos mantidos com a fundação, permaneceu à margem. Quando uma delegação visitou Madri em setembro de 2010 para explicar o projeto, o Governo espanhol se mostrou receptivo e se comprometeu a tomar uma decisão até o fim daquele ano. “Desde então, não fizeram nenhum aporte financeiro”, assinala o relatório anual do organismo polonês. Fontes diplomáticas espanholas afirmam que a natureza da fundação dificulta o ajuste jurídico para fornecer-lhe ajuda econômica – e assinalam que as fórmulas alternativas oferecidas foram rejeitadas. A União Europeia superou seus obstáculos jurídicos contribuindo com 4 milhões de euros (13 milhões de reais) para os projetos de conservação que o Museu de Auschwitz executa por conta própria.



Para preservar o local, a Alemanha contribuiu com 60 milhões de euros

O certo é que, cinco anos depois da criação da fundação, a Espanha é um dos poucos países grandes da União Europeia que não contribuiu para o Fundo Perpétuo (a outra exceção que chama a atenção é a Itália, pátria de Primo Levi, autor de uma das crônicas mais impressionantes sobre Auschwitz em É Isto um Homem?).
“Não sou eu quem deve julgar”, afirma Cywinski, que além de diretor do museu é presidente executivo da fundação. “Muitos grupos de jovens vêm da Espanha para conhecer este lugar, por isso parece que as instituições governamentais deveriam ter consciência do papel que tem essa experiência no processo de amadurecimento dos jovens para que sejam cidadãos conscientizados”, acrescenta. “A Espanha se manteve em grande medida fora do alcance desta história, mas o Fundo também foi constituído graças às contribuições do Canadá, Austrália, Suécia e Suíça, entre outros.”






ampliar foto

Visitantes na entrada do museu de Auschwitz.  Reuters


Em 2013, visitaram Auschwitz 52.800 espanhóis, a sétima nacionalidade mais interessada em percorrer o tétrico memorial – depois dos poloneses, britânicos, americanos, italianos, alemães e israelenses. Mais inclusive do que os franceses, cujo país teve uma relação mais direta com a Shoá e entregou 5 milhões de euros (16,3 milhões de reais) ao Fundo Perpétuo. Se analisarmos os dados dos últimos cinco anos, veremos que o interesse espanhol vem crescendo desde 2009 – quando 26.700 espanhóis visitaram Auschwitz.
No campo de Auschwitz morreram poucos espanhóis, embora a cifra definitiva seja confusa por causa de algumas ambiguidades sobre deportados da França. Já nos campos de Mauthausen e Gusen, onde foram confinados 7.000 exilados republicanos espanhóis, só 2.000 deles sobreviveram. Nos Arquivos Nacionais dos Estados Unidos está guardado um revelador discurso de 27 de junho de 1941 de August Eigruber, governador nazista da região do Alto Danúbio: “Quando ocupamos a França no ano passado, o senhor Pétain nos deu esses 6.000 espanhóis vermelhos e declarou: ‘Não preciso deles, não os quero’. Oferecemos esses 6.000 espanhóis ao chefe de Estado Franco, o caudilho espanhol. Ele recusou e declarou que nunca admitiria esses espanhóis vermelhos que lutaram por uma Espanha soviética. Então oferecemos os 6.000 espanhóis vermelhos a Stalin e à Rússia soviética (…) e o senhor Stalin, com seu Komintern, não os aceitou. Agora estão estabelecidos em Mauthausen esses 6.000 combatentes vermelhos, trabalhadores (…); ali estão para sempre”.






FRÁGIL CAMPO DA MORTE


Birkenau é uma grande intempérie. Uns trilhos, que dividem o campo, conduziam à câmara de gás, embora os passageiros daqueles trens acreditassem que levavam a locais de asseio e desinfecção. Diferentemente do primeiro, onde em parte foram utilizadas instalações preexistentes, o campo de Birkenau nasceu para matar judeus, ciganos e inimigos políticos do Terceiro Reich.
Suas construções, que começaram a ser feitas em outubro de 1941, são as mais precárias e as que mais precisam de conservação. Uma das primeiras intervenções financiadas graças ao Fundo Perpétuo se destinou a restaurar os barracões de tijolo das mulheres, que se encontravam em péssimas condições por causa de sua frágil estrutura e também pelas características do chão.
Há também edificações de madeira, como a destinada à latrina coletiva, onde se amontoavam os prisioneiros em horas predefinidas e sem nenhuma intimidade. Eram muitos os que suspiravam de alívio por integrar-se ao comando de limpadores de latrina. A possibilidade de sobrevivência aumentava: cheiravam tão mal que os guardas não costumavam se aproximar deles e, no meio daquela planície gélida, onde as temperaturas chegam a 17 graus abaixo de zero no inverno, passavam as horas sob um teto.
O Museu dedica também uma atenção especial ao cuidado dos arquivos, que fornecem mais informações para a História, e dos milhares de objetos deixados em Auschwitz pelas vítimas e por seus carrascos.
EL PAÍS