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quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

John Le Carré: “O Brexit é a maior idiotice já perpetrada pelo Reino Unido”

 

John Lhe Carré, retratado em Deia (Maiorca) em agosto.
John Le Carré, retratado em Deia (Maiorca) em agosto.SAMUEL SÁNCHEZ

John Le Carré: “O Brexit é a maior idiotice já perpetrada pelo Reino Unido”

Romancista britânico publica seu novo livro, ‘Agent Running in the Field’, enquanto mostra sua indignação com a saída britânica da UE


Guillermo Altares
21 Oct 2019

Em seu romance anterior, Um Legado de Espiões, John Le Carré ressuscitou seu emblemático personagem George Smiley. E anunciou então que talvez fosse seu último livro. Entretanto, aos 88 anos, este clássico vivo das letras britânicas e uma referência pela teimosia e sinceridade com que defendeu seu senso de ética e um modelo de sociedade mais justo, retornou com um novo livro, Agent Running in the Field (“agente correndo no campo”), ainda inédito no Brasil. Trata-se de uma história de espiões, semelhante à suas míticas obras sobre a Guerra Fria, como O Espião que Veio do Frio e O Espião que Sabia Demais, com a diferença de que o Brexit paira sobre este. De gargalhada fácil e extremamente educado, Le Carré (pseudônimo literário de David Cornwell, nascido no Poole, Dorset, em 1931) não oculta sua irritação quando fala do Brexit ou do Governo de Boris Johnson, sobre o qual solta todo tipo de impropérios. De fato, custa-lhe falar de seu livro sem mudar de assunto e inflamar-se ao refletir sobre o que ocorre em seu país. O Parlamento britânico reuniu-se no sábado para tentar acabar com a crise política, constitucional e emocional que fraturou o Reino Unido nos últimos três anos e meio. A Câmara dos Comuns, por 322 votos a favor e 306 contra, aprovou uma emenda que obriga o primeiro-ministro a pedir uma nova prorrogação à UE.

A entrevista foi feita em Mallorca (Espanha) no começo de agosto, durante férias do escritor nas ilhas Baleares, mas foi atualizada neste domingo por telefone. Le Carré acabava de participar no sábado, em Londres, de uma manifestação contra o Brexit, mas já se esfumaram as chances de que seu país permanecesse na União Europeia – algo que ele esperava que fosse possível dois meses atrás. Inclusive, considera que a própria sobrevivência do Reino Unido está em perigo.

Pergunta. O senhor disse certa vez que viu o Muro de Berlim ser construído quando tinha 30 anos, e derrubado quando tinha 60. Imaginou alguma vez a Europa em que vivemos agora e a crise provocada pelo Brexit?

Resposta. Parece-me algo impensável. É sem dúvida alguma a maior idiotice e a maior catástrofe que o Reino Unido já perpetrou desde a invasão de Suez [1956]. Para mim é um desastre autoinfligido, pelo qual não podemos culpar ninguém, nem os irlandeses, nem os europeus... Somos uma nação que sempre esteve integrada no coração da Europa. Podemos ter tido conflitos, mas somos europeus. A ideia de que podemos substituir o acesso ao maior tratado comercial do mundo pelo acesso ao mercado norte-americano é aterradora. A instabilidade que Donald Trump provoca como presidente, suas decisões de egomaníaco… Realmente vamos nos colocar à mercê disso em vez de continuar como membros ativos da UE? É uma loucura, é terrível e é perigoso. Eu não gosto politicamente, nem acredito nisso economicamente, e não entendo. Não entendo como chegamos a essa situação em que temos um Governo do Mickey Mouse de gente de segunda categoria. O secretário [ministro] de Relações Exteriores é alguém a quem realmente desprezo, nunca conheci essa gente, mas só produziu relatórios de segunda categoria, e é um homem muito estúpido e um péssimo negociador. Isso é que o penso sobre essa situação.

P. “Quando chegamos a uma idade provecta, os grandes espiões nos pomos a procurar as grandes verdades”, diz seu personagem, George Smiley, ao final de Um Legado de Espiões, seu romance anterior. Isso é verdade também para os escritores?
"O novo acordo é uma traição à Irlanda do Norte, um prego a mais no caixão da união do Reino Unido"


R. É verdade para mim. Conforme a vida avança, me tornei mais radical, mais contrário à guerra, desesperadamente preocupado com a ecologia e a mudança climática. Tenho 14 netos e três bisnetos, e suas vidas estão em perigo, e a vida da civilização. O planeta sobreviverá, claro, mas não tenho certeza de que a humanidade conseguirá sobreviver. Você mencionou Smiley no final de Um Legado de Espiões. É interessante para mim agora, retrospectivamente, porque Smiley, pelo que sabemos, termina sua vida na Alemanha. É lá onde o encontramos ao final daquela novela, e este novo livro conta a história de alguém a quem é preciso tirar do Reino Unido. Agora mesmo é muito difícil ser britânico e europeu. A demonização da Europa por esta horrível imprensa britânica parece incontrolável. É preciso recordar que 80% da mídia britânica estão nas mãos de oligarcas que vivem em paraísos fiscais. Quem se beneficia do Brexit? É algo que não posso entender. Se você estiver em um paraíso fiscal e puder apostar contra a libra, se gerir recursos de investimento e observar de onde sopra o vento, pode ganhar muito dinheiro. É isto que faz estes oligarcas da imprensa apostarem no Brexit? Temos que recordar que tratamos com gente de segunda, começando por Johnson. Acho muito importante que os europeus compreendam isso. Não é nossa primeira escalação, é nossa terceira escalação.

P. Que acha do novo acordo de saída alcançado entre o Reino Unido e Bruxelas?

"Boris Johnson é um moleque fazendo-se passar por primeiro-ministro"


R. É uma traição à Irlanda do Norte, um prego a mais no caixão da união do Reino Unido. O interessante é o que Boris Johnson fará agora, porque ele deu uma resposta de colegial ao não querer assinar a carta a Bruxelas. É um moleque fazendo-se passar por primeiro-ministro. O principal é evitar que se produza uma saída sem acordo, e nisso apoio as medidas que o Parlamento tomou ao pedir uma nova prorrogação.

P. Há cerca de dois meses, o senhor considerava existir uma remota possibilidade de que a saída se tornasse impossível e que houvesse um novo referendo. Perdeu a esperança?

R. Temo que a realidade seja a que é. Há muito cansaço pelo Brexit, muita impopularidade das instituições. Embora a medida tenha sido desautorizada pelos juízes do Supremo Tribunal, em certa medida Johnson está cada vez mais forte. Vão lhe fechar a porta da saída sem pacto, mas temo que em poucos dias ele ganhe. Enfrentamos um aumento do neofascismo: a maior ameaça terrorista atualmente no Reino Unido vem da ultradireita, e isso quem diz é a polícia. Essa gente envenenou a atmosfera. Primeiro tocaram as velhas de canções de eurofobia, e depois criaram esses sentimentos de rejeição ao outro através da imprensa popular, e agora o estão explorando. Em algum lugar do nosso país se esconde a velha estabilidade e o senso comum, mas ele desapareceu do discurso político.
"Existe um perigo real de desintegração do Reino Unido"


P. O Reino Unido está realmente em perigo?

R. Existe um perigo real de desintegração no Reino Unido. O que estamos dizendo à Irlanda do Norte é que se danem. E tudo isto aproxima mais do que nunca a possibilidade de reunificação da Irlanda, e na Escócia podem aproveitar-se desta situação. Acredito que existe a possibilidade de o Reino Unido se desmantelar. Em longo prazo, é possível que o problema catalão se torne muito pior como consequência do que ocorrer aqui. Johnson é uma pessoa que não tem nenhuma relação com a verdade, votou contra muitas das coisas que agora mesmo está oferecendo. obteve um pacto muito pior que o anterior. É muito deprimente.

P. Acha que Donald Trump, inclusive Boris Johnson, podem ser agentes russos?

R. Não vejo por que Johnson seria, exceto pelo fato de que sempre viveu de forma muito desatada, que é um indiscreto e que tem uma personalidade muito desagradável. Trump é um assunto completamente diferente. Tem enormes interesses econômicos na Rússia, existem indicações de que sua gente tratou de especular no mercado imobiliário em Moscou, e a vida do Trump é muito desordenada. Se Vladimir Putin tivesse provas de irregularidades financeiras e estivesse disposto a divulgá-las, talvez pudesse derrubá-lo. Mas por que o faria? É muito melhor dominar o personagem. Sempre que aparece a questão russa no horizonte, Trump se comporta com uma proximidade irracional em relação a Putin. Fantasio às vezes com o que aconteceria se a inteligência britânica, que tem ótimas fontes na Rússia, conseguisse provas irrefutáveis de que Trump está controlado por Putin. Quem a escutaria? Como lidariam com isso?
"Fiz coisas no serviço secreto das quais agora me envergonho"


P. Seus últimos dois livros recuperaram o ambiente da velha Guerra Fria, neste último inclusive entre a Alemanha e o Reino Unido. Acredita que haja atualmente uma desconfiança profunda contra o Reino Unido por parte seus ex-sócios?

R. Enfrentamos um sistema de propaganda horrível. A maioria dos jornais apoia o Brexit, demoniza o primeiro-ministro irlandês e toda a Europa, embora seu pior inimigo seja a Alemanha. Não deixam de falar do espírito de Dunquerque, de como a Europa deixou a Inglaterra sozinha. É pura porcaria. Mas estamos nas mãos de manipuladores, e a Rússia colaborou nesta manipulação. Não foi totalmente admitida a dimensão da intervenção russa naquele referendo. Cada vez há mais evidências. Convocar um referendo no Reino Unido, onde existe uma democracia parlamentar, é absurdo. Fazemos um referendo sobre a pena de morte e começamos a pendurar gente nas ruas? A chave da democracia parlamentar é que se escolhem pessoas competentes para representar sua comunidade. O que aconteceu conosco, o que aconteceu com a gente moderada, decente, com os pragmáticos? Temos uma tradição nisso. O aroma de autocracia está aí. Estou furioso com tudo isto: nós não somos isso.

P. O senhor escreveu que a eficácia dos serviços secretos reflete a capacidade de um país. Neste romance não parece que os serviços secretos britânicos sejam os mais eficazes do mundo...

R. Falta-nos direção. Depois da Guerra Fria ficamos desarmados de pensamento. Atualmente não encontro nenhum idealismo, exceto a confiança no Brexit. Não existe nenhum líder com força suficiente que nos mostre a realidade do que ocorre. No livro vemos essa absoluta falta de direção. Se o MI6 fosse capaz de mostrar as verdadeiras intenções de Trump, seu acordo com Putin, a que governo apresentaria? A que entidade dos Estados Unidos? O terrível em ambos os lados do Atlântico é a ausência de coragem moral.

P. Um dos grandes tema de sua literatura é a capacidade das pessoas em continuarem sendo morais em um mundo imoral. É também um dos temas deste livro?

R. Sem dúvida. Embora agir de forma consiste e moral posa ser tremendamente perigoso em um mundo real... No período que vai do final da Guerra Fria até agora, queríamos sentir que tínhamos um objetivo moral, um grande líder e um plano Marshall. Queríamos nesse momento alguém que agarrasse a oportunidade de refazer o mundo. Era possível. Um grande momento e um grande líder. Ninguém apareceu.

P. No seu livro há uma cena muito emocionante e que, ao mesmo tempo, sinto que é muito pessoal para o senhor, quando o protagonista confessa à família que é um espião por tudo o que implica de mentiras dentro da família, como aconteceu com o senhor em relação ao seu próprio pai. É assim?

R. Nos serviços secretos sempre era um problema, porque em algum momento você tinha de falar com os filhos e normalmente se esperava que tivessem passado a puberdade... Era aí que acontecia essa conversa. Isso não aconteceu comigo porque ele já havia saído do serviço na época. Mas muita gente teve de passar por isso e muitas vezes a reação dos jovens era muito difícil: ‘Você mentiu para mim durante toda a juventude’. Em um sentido mais amplo, fiz coisas no serviço das quais agora me envergonho, coisas totalmente justificáveis pela ética do serviço, mas que agora as olho nuas. Em certa medida, Nat também está um pouco envergonhado e suas últimas palavras para Ed são: “Eu queria dizer que fui um homem decente, mas que já era tarde demais”. O que significa decência?

P. Voltando à cena do seu livro na República Tcheca que citou anteriormente, mostra que os russos perderam a Guerra Fria, mas venceram a pós-guerra?

R. A Rússia, graças a uma maciça operação de relações públicas, dá a sensação de que controla tudo, na realidade está falida e a situação de sua economia é terrível. Mas conduz sua política de expansão territorial, por exemplo, na Ucrânia, que está em vias de desaparecer. E os russos parecem apresentar uma frente unificada diante da desunião do Reino Unido, Europa, Estados Unidos... Putin não tem escrúpulos e pensa apenas em termos de conspiração...





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RIMBAUD

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Escritor John Le Carré morre aos 89 anos


Escritor John Le Carré morre aos 89 anos

Autor, cujo nome real era David Cornwell, vendeu milhões de livros e era um mestre admirado no gênero dos romances de espionagem


Rafa Miguel
Londres, 13 dec 2020

John Le Carré, cujo nome real era David Cornwell, faleceu aos 89 anos em um hospital da Cornualha, onde morava, após uma breve doença, como informou no domingo em uma nota Jonny Geller, presidente da Curtis Brown, a agência que o representava atualmente.

A vida de Carré foi tão apaixonante como seus numerosos romances, em que combinava uma destreza literária imensa para apresentar o complicado, enigmático e traiçoeiro mundo da espionagem junto com uma força moral que cativou milhões de leitores de todo o mundo. Começou a trabalhar para os serviços secretos britânicos enquanto estudava alemão na Suíça, no final dos anos quarenta. Foi enquanto dava aulas no elitista colégio privado de Eton, berço do poder conservador no Reino Unido, que foi recrutado pelo Serviço Externo Britânico. De um pequeno escritório no MI5 (a agência de inteligência interna) em Curzon Street (Londres), David Cornwell captava, instruía e ensinava espiões do outro lado da Cortina de Ferro atraídos ao lado do Ocidente. Foi aí que começou a escrever, sob o pseudônimo John Le Carré.

Seu primeiro romance, O Morto ao Telefone, introduziu o protagonista de várias de suas obras mais universais: George Smiley. Metódico, inteligente, anódino em sua vestimenta e em sua fisionomia, sua constante batalha contra seu rival, inimigo e espelho, o agente soviético Karla.

O ator Alec Guinness foi um dos que tentaram encarnar Smiley nas adaptações cinematográficas da obra Le Carré. Gary Oldman foi o último a tentar a sorte em O Espião Que Sabia Demais.

O Espião que Veio do Frio, O Espião Que Sabia Demais, Sempre Um Colegial e A Vingança de Smiley consagraram Carré como o mestre indiscutível de um gênero de imensa popularidade durante a década dos anos sessenta e setenta.

A queda do muro de Berlim e o final da Guerra Fria poderiam ter sido o final de uma trajetória muito identificada com essa Europa da pós-guerra, mas Le Carré demonstrou que continuava existindo um imenso caudal de maldade no mundo, e que sua habilidade literária lhe permitiria denunciá-lo com sucesso, com obras como A Casa da Rússia, O Jardineiro Fiel e Nosso Fiel Traidor.


O desmembramento caótico da União Soviética, o mundo dos traficantes de armas, a corrupção das gigantes farmacêuticas nos países do terceiro mundo e o terrorismo islâmico: Le Carré fincou os dentes em todos os assuntos. Investigava a consciência antes de escrever, e nunca se furtou de assumir um posicionamento moral que irritava seus críticos —o mundo é mais complexo do que tudo isso, lhe diziam—, mas entusiasmou milhões de admiradores e construiu lealdades. A ambiguidade de seus primeiros livros foi substituída gradualmente por um posicionamento cada vez mais inequivocamente político.

Enquanto seus romances tinham sucesso global e seu talento era tão elogiado quanto sua capacidade de produzir best-sellers, Le Carré optou por sair de cena e evitar a popularidade. Isso apenas aumentou o mistério que o autor despertava entre seus leitores. Casado por duas vezes, ele viveu seus últimos 20 anos recluso em sua casa na Cornualha, na Inglaterra, enquanto continuava a escrever.

EL PAÍS

segunda-feira, 28 de julho de 2014

John Le Carré / Philip Seymour Hoffman

Philip Seymour Hoffman
Philip

A partir das visitas de Le Carré à filmagem da adaptação cinematográfica de seu romance 'O homem mais procurado’, o escritor cria um grande retrato do protagonista, morto em fevereiro




Philip Seymour Hoffman, em 'O Homem Mais Procurado'
Calculo que, no total, passei cinco horas falando pessoalmente com Philip Seymour Hoffman, no máximo seis. O resto do tempo, durante a filmagem de O homem mais procurado, me dediquei a me misturar com os demais, a observá-lo no monitor e dizer depois a ele que havia estado estupendo, ou a não dizer-lhe nada. E nem sequer isso aconteceu muitas vezes: um par de visitas ao set e um papel tonto sem diálogo que me obrigou a deixar uma barba repugnante, levou o dia todo para filmar e produziu uma imagem borrada de alguém que agradeci por não reconhecer. No mundo do cinema seguramente não existe ninguém que seja tão supérfluo como o autor do livro original na rodagem do filme baseado em seu texto, coisa que aprendi na minha própria dor. Alec Guinness me fez o favor de pedir que me tirassem do set em que se filmava a adaptação de El topo para a BBC. E eu só queria irradiar a admiração que sentia, mas Alec disse que meus olhares eram intensos demais.
Agora que penso, Philip fez o mesmo favor a uma amiga minha durante aquela filmagem de O homem mais procurado em Hamburgo, numa tarde de inverno em 2012. A mulher estava de pé a uns 30 metros dele, olhando e passando frio, como todos os outros. Mas havia nela algo que incomodou Philip, e pediu que a retirassem de lá. Foi uma reação curiosa, curioso, quase clarividente e muito acertada, porque minha amiga é também romancista, e pode ser mais intensa do que qualquer um. Philip não sabia. Mas intuiu.

Muitos atores fingem ser inteligentes, mas Philip era de verdade: culto, multifacetado, artístico e brilhante, com uma inteligência avassaladora
Em retrospectiva, não deveria ter me surpreendido com esse tipo de coisas em Philip porque, não sabendo de nada, sua intuição se destacava de forma luminosa, assim como sua inteligência. Muitos atores fingem ser inteligentes, mas Philip era de verdade: culto, multifacetado, artístico e brilhante, com uma inteligência que te avassalava e te envolvia desde o instante em que segurava sua mão, te enrolava o pescoço com seu enorme braço e colocava sua bochecha contra a sua; ou te abraçava como um menino grande e gorducho, e depois se separava e sorria encantado enquanto estudava o efeito que havia causado.


Os atores Philip Seymour Hoffman (esq.), como Truman Capote, e Catherine Keener, em uma cena do filme 'Capote', dirigido por Bennett Miller. Esta interpretação lhe rendeu o Oscar e o Globo de Ouro em 2005.
Philip estudava tudo, o tempo todo. Era um esforço doloroso e cansativo, que provavelmente acabou sendo sua ruína. O mundo era reluzente demais para ele. Tinha que apertar os olhos ou morrer deslumbrado. Como Chatterton, quando você ia, ele já estava de volta, e cada vez que ele desaparecia, você não tinha certeza de que voltaria, o mesmo que diziam, acho, do poeta alemão Hölderlin: que quando saía de uma casa, os que ficavam tinham medo de não voltar a vê-lo. E se parece que é fácil dizer a posteriori, não é assim. Philip estava se queimando vivo diante dos nossos olhos. Era impossível viver aquele ritmo e aguentar muito tempo, e de vez em quando tinha uns flashes surpreendentes de intimidade, os quais sabíamos que precisava.
Nenhum ator havia me impressionado tanto como me impressionou Philip em nosso primeiro encontro: nem Richard Burton, nem Burt Lancaster, nem sequer Alec Guinness. Philip me cumprimentou como se estivesse a vida toda desejando me conhecer, e suspeito que cumprimentava todo mundo assim. Mas eu sim que queria conhecê-lo fazia tempo. Seu Capote me parecia a melhor interpretação que já havia visto na tela. No entanto, não me atrevi a dizer a ele, porque com os atores, quando se diz a eles que estavam bem em um papel de nove anos atrás, sempre existe o perigo de que te perguntem o que houve de ruim em suas intepretações seguintes.
O que disse a ele foi que era o único ator norte-americano que considerava capaz de interpretar meu personagem George Smiley, um papel que foi encarnado pela primeira vez por Alex Guinness na versão da BBC de El topo e há alguns anos por Gary Oldman no cinema; claro que, como bom britânico, considero Gary Oldman um dos nossos.

Philip estudava tudo, o tempo todo. Era um esforço doloroso e cansativo, que provavelmente acabou sendo sua ruína
Talvez lembrei também que Philip, como Guinness, não era um grande amante nas telas, mas, por sorte, não precisávamos nos preocupar com isso em nosso filme. Se Philip tinha que pegar uma mulher em seus braços, não sentíamos vontade de virar o rosto como acontecia com Guinness, mas era inevitável a sensação de que estava fazendo pelo espectador mais do que por si próprio.
Os responsáveis por nosso filme debateram muito se podiam fazer com que Philip se deitasse com alguém, e é interessante pensar que, quando por fim propuseram uma possibilidade, tanto ele como sua parceira saíram correndo. Somente quando viram a magnífica atriz Nina Hoss a seu lado compreenderam que estavam diante de um pequeno milagre de fracasso romântico. Em seu papel, ao que em seguida se deu mais importância, Nina é apaixonada por Philip, sua discípula e braço direito, e ele parte seu coração.

'O quarteto', de Yaron Zilberman. Com Mark Ivanir, Philip Seymour Hoffman (segundo à esquerda), Christopher Walken e Catherine Keener (2013).2013).

Era perfeito para Philip. Seu papel de Günther Bachmann, um espião alemão de meia idade à deriva, não permitia amores duradouros nem de nenhum outro tipo. Philip havia tomado essa decisão desde o primeiro dia e, para deixá-la clara, levava a todas partes um exemplar manuseado do meu romance —o que mais pode querer um autor?— para hasteá-lo ante qualquer um que quisesse que houvesse mais sexo.
O filme O homem mais procuradoconta também com Rachel McAdams e Willem Dafoe. Foi filmado quase que por completo em Hamburgo e Berlim, e em seu elenco estão vários dos melhores atores da Alemanha em papeis relativamente humildes, não apenas a sublime Nina Hoss, mas também Daniel Brühl.

É difícil escrever com objetividade sobre a interpretação que Philip faz desse homem de meia idade que vai perdendo o controle sobre como perfila o rumo de autodestruição de seu personagem
No romance, Bachmann é um agente secreto que foi transferido a seu país desde Beirute após perder sua valiosa rede de espionagem devido à falta de jeito ou algo pior da CIA. Vive retirado em Hamburgo, a cidade que recebeu os conspiradores do 11 de Setembro. A seção regional dos serviços de inteligência e muitos de seus cidadãos ainda vivem envergonhados por isso.
A missão que se propõe a Bachmann é dar a volta na situação: não com equipes de sequestradores, torturas com água e execuções extrajudiciais, mas sim mediante a hábil penetração de integração dos espiões, utilizando o próprio peso do inimigo para derrubá-lo e acabar desarmando o jihadismo de dentro para fora.
Durante um jantar elegante com os responsáveis pelo filme e os principais membros do elenco, não lembro que Philip nem eu conversamos muito sobre o personagem concreto de Bachmann; falamos mais em geral, sobre coisas como a atenção e o cuidado que requerem os agentes secretos e o papel de guias e conselheiros que assumem seus chefes diretos. Esqueça as chantagens, eu disse. Esqueça as bravatas. Esqueça a falta de sonho, as pessoas fechadas em caixas, as execuções simuladas e outras técnicas reforçadas. Os melhores agentes, espiões, informantes ou como se quiser chamar —pontifiquei— precisam de paciência, compreensão e afeto. Gostaria de acreditar que o convenci com minha homilia, mas o mais provável é que estivesse pensando se poderia usar alguma vez essa expressão espessa que adoto quando estou tratando de impressionar alguém.

Joaquin Phoenix e Philip Seymour Hoffman em uma cena do filme 'The master',
dirigida por Paul Thomas Anderson (2013).


É difícil escrever com objetividade sobre a interpretação que Philip faz desse homem de meia idade que vai perdendo o controle sobre como perfila o rumo de autodestruição de seu personagem. Tinha um diretor, é claro. E o diretor Anton Corbijn, um homem tão culto e multifacetado como Philip, é maravilhoso em muitos aspectos: fotógrafo de prestígio mundial, pilar da cena musical contemporânea e objeto, ele mesmo, de um documentário. Seu primeiro filme, Control, em preto e branco, é emblematico. Atualmente está rodando um filme sobre James Dean. No entanto, quando o vi trabalhar, seu talento criativo me pareceu sempre introvertido e soberano. Acho que ele seria o primeiro a reconhecer que não é um dramaturgo teórico nem sabe transmitir com eloquência o que pensa da vida interior de um personagem. Philip tinha que manter esse diálogo consigo mesmo, e devia ser um diálogo macabro, cheio de perguntas como: “Em que momento exato perco todo o sentido da moderação?” Ou: “Por que insisto em seguir em frente com tudo isto quando, no fundo, sei que não posso acabar mais do que em tragédia?”. Mas a tragédia atraia Bachmann, e Philip também, como as luzes falsas atraem os barcos naufragados.
Houve um problema com os sotaques. Tínhamos alguns atores alemães muito bons que falavam inglês com sotaque alemão. A opinião geral era, de forma um pouco arriscada, que Philip deveria fazer o mesmo. A primeira vez que o ouvi foi estranho. Não conhecia nenhum alemão que falasse inglês assim. Fazia algo estranho com a boca, uma espécie de biquinho. Parecia beijar suas frases, mais do que dizê-las. Mas então, pouco a pouco, começou a fazer o que só os melhores atores sabem fazer. Conseguiu que sua voz fosse a única autêntica, a solitária, a peculiar, a que te obrigava a depender dela em meio a todas as demais. E cada vez que saia de cena, como cada vez que saia seu dono, nos deixava esperando sua volta com impaciência e cada vez mais com inquietude.
Levaremos muito tempo para conhecer outro Philip.
© David Cornwell, 2014


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