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sábado, 19 de novembro de 2022

Roberto Bolaño / As agruras do verdadeiro tira / Resenha





Roberto Bolaño
AS AGRURAS DO VERDADEIRO TIRA
Resenha

As agruras do verdadeiro tira, de Roberto Bolaño. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 320 pgs. R$ 44,50

Por Antonio Marcos Pereira

Consta que uma das maiores preocupações de Bolaño em seus últimos dias era garantir o sustento da família. Preocupou-se à toa. Com o sucesso da recepção de sua obra quando estava vivo, e que só se multiplicou, e com a notável astúcia gerencial dos administradores de seu espólio literário, recursos não hão de faltar para seus dependentes. É por força do trabalho desses gestores que podemos ter acesso a este “As agruras do verdadeiro tira”, e isso merece menção por estar associado a uma característica marcante do livro: seu caráter de esboço, material de trabalho, papéis em processo de uso e elaboração pelo autor.

Provavelmente o texto jamais seria publicado como está aqui, malgrado as mil justificativas para chancelar a publicação mobilizadas tanto no demasiado didático prólogo, do ficcionista e crítico barcelonês Juan Antonio Masoliver Ródenas, quanto na nota final, da viúva de Bolaño, Carolina López. O livro se assemelha ao que conhecemos do trabalho de competentes jazzistas, que criam a partir da improvisação de temas sobre os quais vão elaborando até encaminharem a música no sentido que intuem ser certo. E talvez o mais impressionante seja que, independente desse caráter de esboço, a narrativa seja tão capaz de magnetizar e manter o interesse do leitor, evidência da mandinga de Bolaño em ação, que é também uma assinatura, parte do que esperamos de seus livros.

Vários temas e personagens presentes em outros textos aparecem aqui, e a leitura, para quem já passou por outros trabalhos de Bolaño, oferecerá a graça adicional do reconhecimento desses trechos, da observação de semelhanças e diferenças. Esse jogo encanta, pois nos momentos de pura reprodução — como na taxonomia que abre o livro, associando cada poeta a uma variante de performance homossexual, e que já vimos em “Os detetives selvagens”; ou na narrativa que reproduz creio que exatamente o “Outro conto russo”, de “Chamadas telefônicas” —, parece que estamos medindo a familiaridade com sua obra pela extensão de nossa capacidade de reconhecimento.

Trata-se, sabemos, não de matéria exclusivamente associada a este livro, mas de um modus operandi do autor, do qual são os exemplos mais claros as novelas “Estrela distante” e “Amuleto”, expansões de trechos de, respectivamente, “La literatura nazi en America” e “Os detetives selvagens”. Se as semelhanças são notáveis, há também refrações curiosas e surpresas — em particular na maneira como se articulam no livro os dois protagonistas, Amalfitano e Arcimboldi, que remetem a dois dos personagens principais de “2666”.

É na maneira como Amalfitano é tratado aqui que, talvez, apareça a maior razão para o interesse do livro. Apresentado sob uma luz trágica algo distinta da que inferimos em “2666”, Amalfitano é um personagem movido pela descoberta algo tardia, algo casual, de sua homossexualidade, transformada em escândalo pelo fato de que o alvo de seu desejo é um aluno e jovem poeta, Padilla, coisa que o pudibundismo do mundo universitário espanhol não tolera e que motiva sua expulsão da universidade e sua migração para o México.

A relação entre os dois constitui o núcleo dramático mais produtivo, e é apresentada como uma mescla de revelação, ignorância e tragédia. Ao descrever Amalfitano, um homem de 50 anos, como um sujeito ainda capaz de aprendizado a respeito de si, a narrativa projeta no adulto uma condição de instabilidade, uma contemplação da possibilidade de abertura para o mais imprevisível e improvável: Amalfitano vive, com relação a seu desejo por Padilla, uma surpresa branda, como se percebesse a própria história como um capítulo ínfimo de um texto mais amplo e apenas eventualmente decifrável.

Circundam essa relação os demais personagens: a filha de Amalfitano, Rosa, que vive as dificuldades do deslocamento de Barcelona para o México e da descoberta da homossexualidade do pai; os personagens de Sonora, como Pancho Monje e os gêmeos Pedro e Pablo, um policial e um acadêmico; o escritor francês J. M. G. Arcimboldi, que tem várias obras descritas e comentadas, e cuja biografia é esboçada a partir de listas de amigos, inimigos, e de com quem se correspondia. Todos têm seu lugar, e contribuem para o que há de trama aqui, mas estão certamente à periferia do drama do professor de filosofia que se descobre homossexual aos 50 anos, e que ao tentar explicar à filha o que ocorreu consigo, imagina que se até o Muro de Berlim veio abaixo, “isso também podia acontecer com sua até então inequívoca heterossexualidade”, ambos manifestações da mesma contingência, sujeitos aos mesmos imponderáveis.

Padilla comenta com Amalfitano um projeto de romance que ambiciona escrever, “O deus dos homossexuais” (“o deus dos mendigos, o deus que dorme no chão, nas portas do metrô, o deus dos insones, o deus dos que sempre perderam”). Essas alusões parecem retratar o Grande Romance ambicionado por Bolaño por muito tempo, que encontrou aqui nesse “Agruras” seu espaço de exercício e experimentação: um livro capaz de ser generoso o suficiente para contemplar o que há de enigmático nas mais triviais experiências do mais ínfimo e esquecido dos humanos. Tal ambição, que se espalhou por toda sua obra, é admirável, e rara, e onde quer que se manifeste merece distinção.

Antonio Marcos Pereira é professor da UFBA




terça-feira, 10 de julho de 2018

Resenha / "O Trânsito de Vênus" de Shirley Hazzard

RESENHA: Livro "O Trânsito de Vênus" de Shirley Hazzard



Olá crianças! Tudo bem? Hoje é dia de resenha e o livro da vez virou definitivamente um dos meus xodós! Acho que foi dado com tanto amor que rendeu uma leitura adorável. Vem conferir...
A impressão de vida predestinada é o tema profundo deste que é o livro mais aplaudido de Shirley Hazzard. Caroline e Grace Bell são duas jovens irmãs que deixam a Austrália e vão para a Grã-Bretanha em busca de um recomeço. Órfãs desde muito cedo, elas anseiam por uma vida nova, enquanto a Europa começa a acordar do pesadelo da Segunda Guerra Mundial.

O título se refere a um raro mas constante fenômeno astronômico, que só se repete um par de vezes por século, em datas pré-determinadas. Nas suas poucas horas de duração, o planeta Vênus pode ser visto da Terra como uma pequena mancha preta atravessando o disco solar. Paralelos aos movimentos celestes, os personagens de Hazzard parecem atraídos por diferentes fatalidades. Seus destinos nunca deixam de se entrelaçar com as turbulências e os absurdos da história da segunda metade do século xx, num romance que começa na Inglaterra rural, retorna à Sidney da memória e aos fronts do trauma de guerra, viaja a Nova York e continua seu curso até Estocolmo. Um retrato pungente dos torneios do amor e do deslocamento geográfico e social, tema tão caro à narrativa australiana. 

O Trânsito de Vênus é um livro do gênero drama narrado em terceira pessoa. Assim como já cita na sinopse, o título é apenas uma referência à essência do livro. Ou seja, não é uma história sobre ficção científica ou astrologia. Shirley Hazzard é uma autora Australiana muito premiada com suas obras, inclusive esta citada. A edição lida por mim foi lançada pela editora Companhia das Letras e possui 476 páginas.


A trama acompanha a vida das irmãs Caroline e Grace tentando se restabelecer na Inglaterra após deixar sua terra natal, a Austrália. Num cenário de Pós II Guerra, quando o mundo ainda está tomando os eixos, o país ainda parece um pouco confuso e agitado, fazendo com que seus habitantes vejam tudo com mais cuidado. É assim que as jovens irmãs se posicionam em meio as dificuldades e surpresas que a vida lhe oferecem.

Ainda jovem, Grace tem a sorte de encontrar em Christian Thrale um relacionamento amoroso sólido e um tanto tradicional com todas as imperfeiçoes que se tem direito. Das irmãs, ela tem a descrição de ser a mais bonita e a menos atraente. Christian, seu futuro marido é filho de um influente astrônomo, que abriga em seu castelo as irmãs posteriormente.

Caroline, frequentemente chamada de Caro, é a principal personagem da história. Possui uma beleza exótica e é tão esperta quanto todos os personagens que a julgam menos que isso. Toda as aventuras amorosas e riscos que sua irmã não viveria foi para ela. Sendo a mais velha das duas, Caro terá um destino incerto, totalmente o oposto da vida previsível e confortável de Grace.

Ainda no Castelo da família de Christian, Caro conhecerá dois dos personagens mais constantes e contraditórios entre si que virá a ser na vida da moça. Ted Tice, um jovem astrônomo convidado pelo patriarca da família, que se apaixonará plena e perdidamente por ela e Paul Ivory, um lindo rapaz no início de sua carreira como escritor de peças de teatro, noivo de uma pomposa (e nojenta) moça, chamada Tertia.

As experiências vividas por Caro, mendigando o amor de um e ignorando o do outro trará muito pano pra manga pra essa história. Mas o livro traz momentos interessantíssimos de todos os personagens, cada um com seu teto de vidro, seu passado e seus segredos. Há uma mudança de ambiente na trama que fica entre Estados Unidos e a Inglaterra, criticando um pouco o estilo  dos americanos, talvez por influência indireta, ou não da autora.


Nos primeiros capítulos não senti nenhuma atração pelo livro, achei arrastado e político demais. Mas logo o interesse veio com tudo, me dei conta que tive uma visão prévia errada da obra. É um livro adulto, um romance adulto, com pessoas adultas vivendo uma vida difícil e adulta. Nada de draminhas ou cenas hot para apimentar a parte romântica. Existem dramas familiares, políticos, tragédias e amores não correspondidos. 
Só de pensar que quase abandonei essa leitura chega dá um aperto no coração rsrs. O livro é totalmente envolvente, os personagens são singulares e as reviravoltas na vida de Caro e envolvidos são um prato cheio! Uma leitura madura e rica para minha experiência literária. A narrativa é elegante e sagaz ao mesmo tempo, faz o leitor suspirar quando vê que a vida não deixa as coisas darem certo e faz suspirar mais forte ainda quando você vê que dá certo sim! 










segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Katherine Mansfield / Felicidade e Outros Contos / Resenha

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Katherine Mansfield

Felicidade e Outros Contos

Terminei a leitura do livro “Felicidade e outros contos”, da escritora Katherine Mansfield, uma das minhas preferidas.  O livro é composto por oito contos, alguns eu já havia lido em outras traduções, outros foram novas leituras. Abaixo alguns comentários sobre os contos:
Felicidade: Esse conto é um dos mais famosos de Katherine Mansfield, pois através da personagem Bertha Young é possível captar o que é a felicidade, no sentido mais simples. A personagem principal é uma mulher comum, casada, com filhos e está contente porque irá receber visitas em sua casa. Me lembra um pouco a Mrs. Dalloway de Virginia Woolf, apesar do tom melancólico que não existe no conto de K. Mansfield.
Psicologia: é um conto que busca analisar a empatia que sentimos por alguém. Sabe aquela sensação boa de estar perto de alguém simplesmente por estar? Sem precisar dizer, explicar ou ir além? É isso.
Um dia de Reginald Peacock: Um dos mais interessantes do livro. Conta a história de um músico egocêntrico, suas aulas, suas apresentações e sua vida em família. Tudo com muito sarcasmo e humor. É excelente!
A pequena governanta: Este conto pode ser resumida por aquela sábia frase de nossos avós: “não fale com estranhos”! É ótimo.
As filhas do falecido coronel: Este conto eu não gosto muito, mas muitos dizem que é um dos melhores de Katherine. Como o título sugere, narra a histórias das filhas de um coronel que acabou de falecer e os impasses que elas precisam vencer entre elas e a sociedade da época.
Marriage à La mode: Uma mulher feliz demais, livre demais, despreocupada demais que fica um pouco (eu disse um pouco) dividida entre os seus amigos e o seu marido, que sempre viaja, causando uma ausência em sua vida que, então, os amigos sobrepõem.
Um tanto infantil, mas muito natural: A história de dois jovens que se apaixonam numa viagem de trem e de repente, plaft. Leiam, leiam, leiam.
O canário: Um conto que revela o que pode existir através do canto de um canário. É poético, singelo e triste.




sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Katherine Mansfield / Contos / Resenha

Katherine Mansfield


KATHERINE MANSFIELD
CONTOS
DEZEMBRO 27, 2014 | LUALIMAVERDE
02_mansfEsta coletânea de contos de Katherine Mansfield cobre textos de vários momentos de sua vida como escritora e nela é possível perceber uma certa diferença entre os primeiros e os últimos, já que a autora parece se preocupar mais e mais com a linguagem e com o mundo interior dos seus personagens.
Nos primeiros contos, existe uma tendência em retratar viagens, situações em cafés, hotéis e trens, ambientes com pessoas desconhecidas, estrangeiras. São momentos em que o personagem está muito atento ao seu redor, pois tudo é novo e estranho. As pessoas são inéditas e as circunstâncias, mesmo corriqueiras para quem é do local, são curiosas para quem é forasteiro. Em “Alemães comendo”, uma mulher inglesa, durante uma refeição num café ou pousada, se vê diante de uma atitude de superioridade de alguns alemães, pouco antes da Primeira Guerra. Já durante a guerra, temos “Uma viagem indiscreta”, um conto com atmosfera um tanto onírica, que inicia com uma viagem de trem e culmina em outro café: uma mulher se utiliza de alguns disfarces para encontrar-se com um jovem cabo.
“A pequena governanta” também se passa em grande parte durante uma viagem de trem, ainda que aqui essa viagem tenha uma importância maior, pois ela não serve apenas como um meio de chegar a um lugar, ela representa todas as mudanças que irão ocorrer na vida da personagem. É um conto cheio de símbolos e assinala bem o medo de uma mulher diante de um mundo governado pelos homens, mas também a esperança, a busca pela felicidade nas coisas simples. Com uma carga semelhante de ingenuidade à da pequena governanta, mas sem a desculpa da juventude, a “Srta. Brill” também busca ser feliz com as pequenas coisas, mas aqui ela se limita a observar a vida em vez de vivê-la. Uma triste história sobre solidão, assim como “Je ne parle pas français”, em que um jovem parisiense, supostamente escritor, conta sua história malfadada com um casal inglês.
“Prelúdio”, “Na Baía”, e “A Casa de Bonecas” compõem uma trilogia de contos ou noveletas baseadas na infância da autora na Nova Zelândia. Basicamente apresentam pequenos momentos familiares dos Fairfields: o casal Linda e Stanley Burnell, seus filhos, a mãe de Linda, a Sra. Fairfield, a irmã Beryl e os funcionários da casa. No primeiro acompanhamos a mudança deles da cidade para o campo. No segundo, um dos mais belos contos do livro, vemos o dia nascer e morrer na praia, quando a família está em alguma casa de veraneio. A narrativa guarda um tema que se repete: a vida das mulheres (e crianças) sem os homens, a liberdade feminina. E no último, o foco é nas crianças, o mundo infantil como espelho do mundo adulto: a revolução que causa a chegada de uma linda casa de bonecas para as meninas. Estes contos são marcados pelos problemas femininos da época que retrata, que não são tão diferentes dos de hoje: mulheres que têm filhos mas que não apreciam ser mães, mulheres que vivem a serviço de um “chefe de família”, mulheres que acreditam que só terão valor quando casarem.
O casamento, inclusive, também é tema em “Marriage à la mode” e “Conto de homem casado”. Ambos falam sobre máscaras na vida conjugal, e enquanto em um não sabemos o que é máscara e o que é verdadeiro, pois há uma personagem que acha mais importante alimentar sua vaidade que dar atenção ao marido que ama, em outro a máscara está bem clara, pois trata-se de um relato de alguém que vê muito claramente que seu casamento é apenas uma farsa. Infelizmente este conto é incompleto e assim como “A Mosca”, que conta da angústia de um pai que perdeu seu filho para a guerra, o leitor não tem como saber a que fim as histórias iriam chegar.
Por fim, um conto que já comentei aqui, “As filhas do falecido coronel”, que conta as reações de duas irmãs ao se depararem com a morte do pai, já que elas não sabem o que fazer com a liberdade conquistada. Assim como em vários outros contos da coletânea, o que mais percebemos é que aquilo que é mais importante nunca é dito, é sempre sugerido, subentendido. O essencial está sempre escondido nos pequenos gestos e Mansfield se mostra uma sábia ilusionista que mostra com uma mão enquanto esconde com a outra.
LUA LIMAVERDE
FICÇÕES DO INTERLÚNIO


segunda-feira, 26 de maio de 2014

Do amor louco e outros amores / O amor em tempos das almas puras


14.04.09_Christian Dunker_O amor nos tempos das almas puras[Fotografia de Chema Madoz, que ilustra a capa de Do amor louco e outros amores, de Ricardo Goldenberg]

O amor em tempos das almas puras

Resenha de Do amor louco e outros amores, de Ricardo Goldenberg
Por Christian Ingo Lenz Dunker*

O novo livro de Ricardo Goldenberg, Do amor louco e outros amores (Editora Instituto Langage, São Paulo, 2013), é uma grata surpresa no cenário de publicações psicanalíticas sobre o amor. Há algum tempo este tema vem sendo parasitado por uma glosa, mais ou menos repetitiva, sempre em tom sapiental, sobre como Lacan ou Freud, podem nos alumiar nas trevas líquidas e desencontradas que tomaram conta de nossa época em matéria de amor. A coisa caminha de tal forma que quando conseguimos dizer alguma coisa a mais, e ademais interessante, geralmente é para nos reconhecermos como parte da grande narrativa moderna, que é o romance. Os romances nos ensinam a amar, um pouco mais do que os manuais de arserotica e os guias de sexologia, e um tanto menos do que as palavras íntimas, cada vez mais raras, entre amigos, amantes e quejandos.
A novidade no livro é que ele resolve colocar as coisas pelo lado mais difícil, ou seja, pelo lado do amor, do desejo ou do gozo que o analista experimenta em sua aventura reversa que são as análises que ele conduz. Há pouquíssimos precedentes nesta matéria: Ferenczi de Diário Clínico, Theodore Reik deEscutando com o terceiro ouvido e mais recentemente Stephen Mitchell e a psicanálise relacional. A raridade se explica, em parte, pelo fato de que a tarefa exige altas doses de franqueza e honestidade para falar da experiência tal comoela se dá, para aquele que a narra e problematiza, mais do que de como eladeveria se dar, segundo aqueles que nos precederam e em acordo com ideias que cultivamos. Goldenberg tem esta vocação para a pahresia, a fala franca que os latinos exigiam daqueles que se dedicavam a cuidar da alma. Isso se combina com as oscilações entre alta e a baixa cultura, entre exegese talmúdica e Janis Joplin. Quiçá esta atitude tenha sido formada nos tempos dourados em que foihold da legendária banda de rock Emerson, Lake and Palmer, ou então nos anos de chumbo da psicanálise argentina engajada.
No famoso axioma lacaniano de que “a impossibilidade de sustentar autenticamente uma práxis se transforma no exercício de um poder, como é comum na história dos homens”, o termo que me parece mais problemático é este “autenticamente”. A autenticidade não é apenas um problema de boa vontade e disposição moral à transparência. A autenticidade é um problema formal de alta dignidade literária. Ou seja, Ricardo se coloca a questão de como falar de amor desta posição na qual faltam palavras. Posição difícil, pois se deixamos as palavras virem, espontaneamente, como na análise, faremos romance, conto ou autobiografia e se as levamos a sério demais entramos na prosa deontológica, moral ou universitária. Resta a carta. A carta como tensão entre forma e conteúdo, entre ato e discurso. Restância. Por isso, coerentemente, o livro é composto por uma série de quase-cartas: de um homem para as mulheres, de analista para analisante, de analisante para analista, de um homem para uma mulher.
A solução encontrada para imiscuir desequilíbrios formais com desenvolvimento de teses, envolve uma inteligente combinação entre certos experimentos formais e elevada agilidade frasística e aforismática que vão compondo a casuística das cartas. O livro é um verdadeiro experimento diagramático conduzido por este, antes chamado de enfant terrible da psicanálise paulista. Senão vejamos. A introdução é impressa em páginas negras com letras em branco. Seguem-se dois intrólitos: um em alinhamento poemático, preto no branco, sobre o sultão Xeriar e Sherazade. Depois disso, em páginas azuis com tipos em branco, encontramos o pequeno e erudito excurso sobre a deserotização calculada pelo cristianismo do pequeno tratado bíblico sobre o amor, o “O cântico dos cânticos”.
O primeiro introduz, em estilo ligeiro, a oposição entre a obrigação de cumprir a masculinidade e o gozo contínuo, ilimitado e indiscreto do lado feminino. Aqui somos introduzidos à ideia de que os amores loucos são também os vividos pelas almas impuras, as únicas realmente dotadas de existência. O segundo ensaio recoloca no centro da interpretação do texto sagrado, a mulher e a carne como um tema político. Lido em nada menos do que 11 traduções, verifica-se que entre Salomão e Sulamita não se trata de sedução, o soberano “não foi enganado senão loucamente vencido pelo encanto de uma mulher”. Aqui começa a fazer comichão a ideia de que assim como a morte é o mestre absoluto, o amor produz o escravo absoluto.
Se o volume se abre com a paginação em preto no branco, seguido pelo branco no azul, ele se fecha, de forma quase simétrica, com outros dois pequenos estudos sobre Lolita, de Nabocov e sobre A hora e a vez de Augusto Matraga. Os quatro pequenos estudos sobre a literatura de amor, mais as duas cartas, que abrem e fecham o livro, incursionam por um modo de apropriação da literatura que não a coloca em situação subalterna. Essa inversão, quase simétrica, da forma impressa e concreta do texto, combina-se com titulações dispostas de modo contra-intuitivo, alterações do tipo de letra usada para grafar cartas, citações, diálogos interpostos e conceitos. Sem falar nas desafiadoramente longas notas de rodapé, em minúsculas letras incomiseráveis, onde encontramos, à custa de infinita perseverança ocular, a chave inesperada do texto, ou aquela enunciação fundamental que o esclarece. Justa lembrança de que o tão badalado conceito lacaniano de letra (lettrel´etre), ou de carta de amor (lettre d´amour) se antecipa nos experimentos formais de Mallarmé e Pound antes de se consagrar na caligrafia oriental. Ponto para a renovação concretista da psicanálise brasileira. O formalismo de Lacan seria, neste ponto, mais propedêutico do que propriamente substancial. Dele Ricardo relembra preceitos de método, há muito esquecidos, sempre em nome do último Lacan: textos não são casos, personagens não são pacientes, analistas não são críticos literários e o romance, escrito e fixado como um “eterno já acontecido”, não é “a vida ela mesma”.
A oposição entre as bordas feitas de branco no preto e o miolo do livro onde o amor é trabalhado preto no branco, é suplementada pela incrível carta de despedida ao analista, sensível e corajosa, e que fará qualquer analista tremer no juízo mais íntimo de seu ser quando pensa na ultima sessão de sua própria análise. A graça final: ela vem diagramada de modo quase ilegível, na formapreto no preto. A forma e a cor das cartas de amor não são indiferentes ao seu conteúdo.
Entre a abertura e o fechamento temos o cerne do livro. No inquieto e irreverente ensaio “Uma carta de amor”, o autor prescreve que sua leitura seráintensificada, se nos fizermos acompanhar da audição de Miles Davis, Leonard Cohen e Winton Marsalis (segui à risca, sem arrependimento). O conteúdo é uma anatomia crítica da moral psicanalítica. Uma renovação impiedosa do Freud deMoral sexual civilizada e doença nervosa moderna, mas agora incluindo a psicanálise como parte do problema e sem o final otimista. Parafraseando o problema central: “análise boa é análise que continua”, fora disso é o fracasso. É como se estivéssemos em uma nova forma de patologia que concede ao amor infinito todas as forças. E na beatitude do final de análise, bem questionada pela experiência, o antídoto para este mal, bem ilustrado pelo caso deste paciente cuja única dedicação na vida é amar sua Dama. Contra essa espécie de doença incurável a psicanálise acabou acreditando demais em sua própria mitologia maquínica, de que o amor é uma repetição, e que uma boa análise acrescentaria a isso um: “Edição revisada pelo autor”.
Conveniência teórica ou álibi para o amor que causamos em transferência? Onde estariam então os amores não regressivos, mais além da neurose, que dariam corpo à promessa lacaniana de um Novo amor?
Neste clima de “inversão completa de valores” Ricardo escava os meandros dos impasses transferenciais que levaram à teoria da transferência como forma de amar. Ele mostra como o imbróglio de Freud com Ferenczi, Jung, Jones e Abraham exigia uma conceitualização que, de certa maneira, devia estar à frente da própria experiência. Disso avançamos para a situação real de amor erotizado sob transferência. Amor que apavorou Breuer. Amor que deu luz ao mito fundador da transferência. Amor que teria levado à formulação da regra da abstinência e o seu corolário psicanalítico das almas penadas, errante e puras. Abstinência paradoxal se cotejamos o que seria a suposta falsa satisfação com o metro de platina, guardado em algum recanto suíço, onde estaria o verdadeiro padrão ouro da satisfação da pulsão do amor. Nem falso no sentido de contrário ao verdadeiro, nem ideal na acepção de contrário ao real, seria preciso pensar o novo amor lacaniano, como novo e inédito. Isso significa ir bem mais além de sua forja corrente no molde da indiferença, na decepção, na frustração hipócrita ou empobrecida imposta pela moral dietética de nossa época em matéria de amor (não falamos em gozo). Responda o analista à demanda ou não, se é que isso é possível.
Exemplo perfeito: Elfriede Hirschfeld, o sexto, e até pouco tempo inédito, caso clínico escrito por Freud, abandona a análise justamente quando ele “está pronto a lhe dizer a última palavra sobre a sua doença”. Uma palavra que seria “o substituto do amor que ela espera dele”. Só assim poderíamos saber se a psicanálise é de fato uma erótica, uma ars amatória, e não apenas uma ars consolatória, para nossos pacientes.
“Até Lacan fazer do analista um desejante na década de setenta, ele era tido um homem sem desejo. Mais tarde o anátema caiu sobre seu gozo, e este último não seria levantado. [...] Defendo então um psicanalista qualificado e profissional, que também seja um diletante e um amador da psicanálise.” (p.88)
Concordo amplamente. Sempre desconfiei dos psicanalistas profissionais, prefiro os amadores. Aqueles cuja única promessa é a de que um dia poderemos nos separar deste amor que virá. No contexto destas ligações perigosas aparece então uma psicanálise com menos ideais de pureza e purificação. Para ela, um analista que tenha por condição de autenticação sua capacidade de amar. Afinal, este era o único critério decente de normalidade que encontramos em Freud (além de trabalhar). Aqui reencontramos a tese destilada nos ensaios mais literários do livro. O amor nos rende. Aquele que quer ser o soberano e supremo senhor do amor, que jamais se deixa cair e que imagina-se imune à queda (fall in lovetomberamoureux) no fundo é alguém que perdeu sua capacidade de amar, alguém que está curado de sua transferência, mas também de sua loucura, e com ela de sua humanidade. Esse tipo de psicanalista não corresponde à bela alma hegeliana, mas à alma pura que jamais se deixa cair como objeto, nem cair em luto, com a última sessão de um analisante.
O livro-carta enviado por Ricardo é um mergulho nas águas profundas cheias de moreias e corais, um livro no qual está o fôlego e o sangue frio, necessário para as grandes perguntas, e para os grandes amores, não sem uma pitada de histeria.
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Confira a aula Žižek e a psicanálise de Christian Dunker ministrada no “Curso de introdução à obra de Slavoj Žižek” do Seminário Internacional Marx: a criação destruidora, que trouxe, entre outros, David Harvey e o filósofo esloveno ao Brasil.
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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano, fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.





sexta-feira, 10 de maio de 2013

Coetzee / A infância de Jesus / Resenha




Novo romance do escritor sul-africano vira do avesso alusões à religião para tocar em temas universais e urgentes, como crença, liberdade e tolerância

Por Kelvin Falcão Klein

Um homem e um menino chegam a uma cidade chamada Novilla, vindos de um campo de refugiados. Chegaram ao campo depois de atravessarem o mar, e foi no navio que se conheceram — o menino tinha uma carta que explicava sua origem, mas ela se perdeu. Em Novilla, recebem novos nomes (o homem se chamará Simón, o menino, David), novas datas de nascimento e devem sempre falar em espanhol, a língua comum desse estranho mundo que J.M. Coetzee constrói em “A infância de Jesus”.

Não há dúvidas de que se trata do relato de uma infância, a de David, mas seria ele, em um universo alternativo, o Jesus que conhecemos? Talvez um dos objetivos de Coetzee seja justamente questionar aquilo que conhecemos da História, aquilo que vem de forma automática ou instintiva quando se pensa no passado. Porque a leitura de “A infância de Jesus” oferece um contínuo jogo entre expectativa e realização, um jogo exasperante, no qual Coetzee arma uma série de atrasos e adiamentos que carregam de tensão o romance.

Existem muitos elementos reconhecíveis, ainda que o período histórico da narrativa não seja especificado. O cenário lembra o dos regimes totalitários: comida racionada, controle estatal, maquinário defasado, vestuário simples, generalizada falta de humor, ironia e afeto nas relações entre os indivíduos. Mas essa é apenas a moldura para aquilo que se crê o mais importante, ou seja, a infância de Jesus. David é sensível e inteligente, mas sofre com dificuldades para aprender a ler, escrever e contar. Alguns meninos da escola e da vizinhança o recebem mal (“todo mundo acha que ele é maluco, até os grandes”, conta um deles), outros o encaram com devoção (“ele era o favorito, o favorito de todos”, diz a professora a Simón).

Em uma das cenas do romance, Simón e David estão conversando, “atravessando o playground vazio”. “No tanque de areia”, escreve Coetzee, “o menino se agacha, alisa a superfície, e começa a escrever com o dedo”. Só que Simón não entende nada, pois David escreve com caracteres aleatórios, em um idioma inventado por ele. “Sei que você é muito inteligente e aprendeu sozinho a ler e escrever”, fala Simón, “mas na vida real você precisa escrever igual aos outros”. Além dessa passagem da areia, que evoca o Evangelho de João, várias remissões bíblicas vão dando ao romance sua feição alegórica — desde a presença constante do pão, até o amor do menino pelos animais, os episódios em que ele deseja salvar, curar e ressuscitar e, finalmente, uma série de tentações com um personagem (o señor Daga) que, com suas insinuações obscenas e seus oferecimentos materiais, lembra muito Satanás.

Usando um procedimento recorrente em sua poética, Coetzee recusa posições fixas para seus personagens ou o andamento da história. Todos os elementos, desde as características de um indivíduo até a materialidade do ambiente descrito, são virados do avesso e postos em dúvida. Este é o romance mais dialógico de Coetzee, contando com capítulos formados só por falas. A baixa interferência do narrador contribui para o tom de fábula que o romance por vezes adquire, já que se percebe mais uma interlocução de ideias sobre o mundo do que uma representação realista desse mesmo mundo. Mais um exemplo da recusa de fixidez em Coetzee, que mescla tanto o registro realista (a arquitetura repetitiva, o sistema de sucção dos grãos do navio) quanto a torção imaginativa de uma escritura que se reconhece como artifício (os estivadores que param o trabalho para um debate filosófico).

Em “A infância de Jesus”, sob a capa temática de um homem empenhado em proteger e amar uma criança, confluem temas ao mesmo tempo universais e urgentes para nosso presente, como aqueles que dizem respeito a crença, honra, liberdade e tolerância. Coetzee não faz uso nem da paródia, nem da ironia, recursos comuns na ficção contemporânea, mas sim de uma aguda solenidade, uma espécie de ética do trabalho ficcional. Ao mesmo tempo em que está ligado a seus temas e obsessões, e a um deliberado exercício de não se repetir de um romance ao outro, Coetzee cultiva um contato estreito com a tradição literária ocidental, especialmente com grandes romancistas como Musil e Tolstói. A atualização de Coetzee passa pela forma e pelo conteúdo, mas se resolve sobretudo em uma noção de permanência, em seu desejo de extrapolar, a partir da literatura, a duração restrita de uma vida e de uma noção de tempo e História.

Kelvin Falcão Klein é crítico literário e doutor em Teoria Literária pela UFSC