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sexta-feira, 2 de maio de 2014

Gabriel García Márquez / Boa viagem, senhor presidente


Gabriel García Márquez
Boa viagem, senhor presidente



Estava sentado no banco de madeira debaixo das folhas amarelas do parque solitário, contemplando os cisnes empoeirados com as mãos apoiadas no pomo de prata da bengala, e pensando na morte. Quando veio a Genebra pela primeira vez o lago era sereno e diáfano, e havia gaivotas mansas que se aproximavam para comer nas mãos, e mulheres de aluguel que pareciam fantasmas das seis da tarde, com véus de organdi e sombrinhas de seda. Agora a única mulher possível, até onde a vista alcançava, era uma vendedora de flores no embarcadouro deserto. Ele custava a crer que o tempo tivesse podido fazer semelhantes estragos não apenas em sua vida, mas no mundo. Era um desconhecido a mais na cidade de desconhecidos ilustres. Estava de terno azul-escuro com listras brancas, colete de brocado e o chapéu duro dos magistrados aposentados. Tinha um bigode altivo de mosqueteiro, o cabelo azulado e abundante com ondulações românticas, as mãos de harpista com a aliança de viúvo no anular esquerdo, os olhos alegres. A única coisa que delatava o estado de sua saúde era o cansaço da pele. E ainda assim, aos 73 anos, continuava sendo de uma elegância clássica. Naquela manhã, no entanto, sentia-se a salvo de toda vaidade. Os anos de glória e poder haviam ficado para trás sem remédio, e agora só permaneciam os da morte.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Gabriel García Márquez / Maria dos Prazeres

Henri Matisse
Seated Pink Nude.

Gabriel García Márquez

Maria dos Prazeres




O homem da agência funerária chegou tão pontual que Maria dos Prazeres ainda estava de roupão de banho e com a cabeça cheia de bobes, e mal teve tempo de pôr uma rosa vermelha na orelha para não parecer tão indesejável como se sentia. Lamentou ainda mais seu estado quando abriu a porta e viu que não era um tabelião lúgubre, como supunha que deveriam ser os comerciantes da morte, e sim um jovem tímido com um paletó quadriculado e uma gravata com pássaros coloridos. Não vestia sobretudo, apesar da primavera incerta de Barcelona, cujo chuvisco de ventos enviesados fazia quase sempre com que fosse menos tolerável que o inverno. Maria dos Prazeres, que havia recebido tantos homens a qualquer hora, sentiu-se envergonhada como muito poucas vezes. Acabava de completar 76 anos e estava convencida de que ia morrer antes do Natal, e ainda assim esteve a ponto de fechar a porta e pedir ao vendedor de enterros que esperasse um instante enquanto se vestia para recebê-lo de acordo com seus méritos. Mas depois pensou que ele iria congelar no vestíbulo escuro e o fez entrar.
- Perdoe essa cara de morcego – disse -, mas estou há mais de cinqüenta anos na Catalunha e é a primeira vez que alguém chega na hora anunciada.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Assombrações de Agosto

Portrait of A Lady
Rogier van der Weyden
Gabriel García Márquez
Assombrações de Agosto



ESPANTOS DE AGOSTO
GHOSTS OF AUGUST

Chegamos a Arezzo pouco antes do meio-dia, e perdemos mais de duas horas buscando o castelo renascentista que o escritor venezuelano Miguel Otero Silva havia comprado naquele rincão idílico da planície toscana. Era um domingo de princípios de agosto, ardente e buliçoso, e não era fácil encontrar alguém que soubesse alguma coisa nas ruas abarrotadas de turistas. Após muitas tentativas inúteis voltamos ao automóvel, abandonamos a cidade por uma trilha de ciprestes sem indicações viárias, e uma velha pastora de gansos indicou-nos com precisão onde estava o castelo. Antes de se despedir, perguntou-nos se pensávamos dormir por lá, e respondemos, pois era o que tínhamos planejado, que só íamos almoçar.
- Ainda bem – disse ela -, porque a casa é assombrada.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Dezessete ingleses envenenados


Gabriel García Márquez
DEZESSETE INGLESES ENVENENADOS



A primeira coisa que a senhora Prudencia Linero notou quando chegou ao porto de Nápoles foi que tinha o mesmo cheiro do porto de Riohacha. Não contou a ninguém, é claro, pois ninguém teria entendido naquele transatlântico senil abarrotado de italianos de Buenos Aires que voltavam à pátria pela primeira vez depois da guerra, mas de todo modo sentiu-se menos só, menos assustada e distante, aos 72 anos de sua idade e a dezoito dias de mar ruim de sua gente e de sua casa.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Tramontana



Gabriel García Márquez

Vi o rapaz uma única vez no Boccacio, o cabaré da moda em Barcelona, poucas horas antes de sua morte ruim. Estava acossado por uma quadrilha de jovens suecos que tentavam levá-lo às duas da madrugada para terminar a festa em Cadaqués. Eram onze, e dava trabalho distingui-los, porque os homens e as mulheres pareciam iguais: belos, de cadeiras estreitas e longas cabeleiras douradas. Ele não devia ter mais do que vinte anos. Tinha a cabeça coberta de cachos engordurados, a cútis melancólica e polida dos caribenhos acostumados por suas mães a caminhar pela sombra, e um olhar árabe capaz de transtornar as suecas, e talvez vários suecos. Haviam-no colocado sentado no balcão como um boneco de ventríloquo, e cantavam para ele canções da moda acompanhadas de palmas, para convencê-lo a ir com eles. Ele, aterrorizado, explicava seus motivos. Alguém interveio aos gritos para exigir que o deixassem em paz, e um dos suecos enfrentou-o morrendo de rir.
- É nosso – gritou. – Nós o encontramos na lata de lixo.

domingo, 27 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / O Verão Feliz da Senhora Forbes


Gabriel García Márquez 
O Verão Feliz da Senhora Forbes



De tarde, de regresso à casa, encontramos uma enorme serpente-do-mar pregada pelo pescoço no batente da porta, e era negra e fosforescente e parecia um malefício de ciganos, com os olhos ainda vivos e os dentes de serrote nas mandíbulas escancaradas.
Eu andava, na época, com uns nove anos, e senti um terror tão intenso diante daquela aparição de delírio que fiquei sem voz. Mas meu irmão, que era dois anos menor que eu, soltou os tanques de oxigênio, as máscaras e as nadadeiras e saiu fugindo com um grito de espanto. A senhora Forbes ouviu-o da tortuosa escada de pedras que trepava pelos recifes do embarcadouro até a casa e nos alcançou, arquejante e lívida, mas bastou que visse o animal crucificado na porta para compreender a causa do nosso horror. Ela costumava dizer que quando duas crianças estão juntas, ambas são culpadas do que cada uma fizer sozinha, de maneira que repreendeu a nós dois pelos gritos de meu irmão, e continuou recriminando nossa falta de domínio. Falou em alemão, e não em inglês, como estava estabelecido em seu contrato de preceptora, talvez porque ela também estivesse assustada e se negasse a admitir. Mas assim que recobrou o fôlego voltou ao seu inglês pedregoso e à sua obsessão pedagógica.
- É uma Moréia helena – nos disse -, assim chamada porque foi um animal sagrado para os gregos antigos.

sábado, 26 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Só Vim Telefonar


Gabriel García Márquez
Só Vim Telefonar




Numa tarde de chuvas primaveris, quando viajava sozinha para Barcelona dirigindo um automóvel alugado, Maria de la Luz Cervantes sofreu uma pane no deserto dos Monegros. Era uma mexicana de 27 anos, bonita e séria, que anos antes tivera certo nome como atriz de variedades. Estava casada com um prestidigitador de salão, com quem ia se reunir naquele dia após visitar alguns parentes em Saragoça. Depois de uma hora de sinais desesperados aos automóveis e caminhões que passavam direto pela tormenta, o chofer de um ônibus destrambelhado compadeceu-se dela. Mas avisou que não ia muito longe.
- Não importa – disse Maria. – Eu só preciso de um telefone.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / A santa

Albert Anker
Gabriel García Márquez
A SANTA
Vinte e dois anos depois, tornei a ver Margarito Duarte. Apareceu de repente numa das ruazinhas secretas do Trastevere, e tive trabalho em reconhecê-lo à primeira vista por seu castelhano difícil e seu jeito ameno de romano antigo. Tinha o cabelo branco e escasso, e não restavam nele rastros da conduta lúgubre e das roupas funerárias de advogado andino com que havia vindo a Roma pela primeira vez, mas no curso da conversa fui resgatando-o pouco a pouco das perfídias dos anos e tornei a vê-lo como era: sigiloso, imprevisível, e de uma tenacidade de quebrador de pedra. Antes da segunda xícara de café num dos nossos bares de outros tempos, me atrevi a fazer-lhe a pergunta que me carcomia por dentro.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Me alugo para sonhar


Gabriel García Márquez

Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / A luz é como a água


A luz é como a água

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.
— De acordo — disse o pai —, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.
Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam.
— Não — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui.
— Para começar — disse a mãe —, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / O avião da bela adormecida

Sleeping Nude, 1950
Lucian Freud
Private Colletion, Canada
Gabriel García Márquez
O avião da bela adormecida



Era ela, elástica, com uma pele suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da cor das buganvílias. "Esta é a mulher mais bela que vi na vida", pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu na multidão do saguão.

domingo, 20 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / O rastro do teu sangue na neve


Gabriel García Márquez
O RASTRO DO TEU SANGUE NA NEVE

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Ao anoitecer, quando chegaram à fronteira, Nena Daconte notou que o dedo com a aliança de casamento continuava sangrando. O guarda-civil com a manta de lã sobre o chapéu de três pontas e verniz-charão examinou os passaportes à luz de uma lanterna de carbureto, fazendo um grande esforço para não ser derrubado pela pressão do vento que soprava dos Pireneus. Embora fossem dois passaportes diplomáticos em regra, o guarda levantou a lanterna para comprovar que os retratos se pareciam às caras. 
Nena Daconte era quase uma menina, com uns olhos de pássaro feliz e uma pele de melaço que ainda irradiava o sol do Caribe no lúgubre anoitecer de janeiro, e estava agasalhada até o pescoço com um abrigo de nucas de visom que não poderia ser comprado com o salário de um ano da guarnição inteira da fronteira. Billy Sánchez de Ávila, seu marido, que dirigia o automóvel, era um ano mais jovem que ela, quase tão belo, e usava um paletó escocês e um boné de jogador de beisebol. Ao contrário de sua esposa, era alto e atlético e tinha as mandíbulas de ferro dos valentões tímidos. Mas o que revelava melhor a condição de ambos era o automóvel platinado cujo interior exalava um hálito de animal vivo, como não se havia visto outro por aquela fronteira de pobres. Os assentos traseiros iam atopetados de maletas demasiado novas e muitas caixas de presentes que ainda não tinham sido abertas. Lá estavam, além disso, o sax-tenor que tinha sido a paixão dominante de Nena Daconte antes que sucumbisse ao amor contrariado de seu doce bandoleiro de balneário.