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segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O dia em que conheci Pepe Mujica


O registro do encontro com Mujica em sua chácara.


O dia em que conheci Pepe Mujica

Um inesperado encontro com o ex-presidente uruguaio que faz a simplicidade parecer coisa de louco


Breiller Pires
Montevidéu, 25 NOV 2017 - 09:44 COT


Pegamos um Uber do aeroporto rumo ao centro de Montevidéu. Em fluido portunhol, engatamos papo com o motorista sobre a admiração dos brasileiros – Maracanazo à parte – pela garra dos jogadores de futebol uruguaios. Maxi, nosso condutor, lembra então de outro compatriota que também costuma ser aclamado em conversas com passageiros provenientes do BrasilJosé “Pepe” Mujica. Sem demonstrar muito entusiasmo ao falar de seu ex-presidente, ele insinua que o antigo guerrilheiro tupamaro é mais querido fora que dentro do Uruguai. “É um louco”, disse Maxi, mudando de assunto.



Denise, minha companheira de aventuras e loucuras da vida, e eu fomos ao país vizinho a passeio. Depois de alguns dias de turismo convencional, de um jogo do Peñarol e uma visita ao estádio Centenário, nos restava um par de horas na capital uruguaia antes de partir. Decidimos aproveitar o tempo livre para visitar a famosa chácara de Mujica e a escola agrária idealizada por ele, que cedeu parte de seu terreno para construí-la. Não fui até lá como jornalista. Fui movido unicamente pela curiosidade despertada por um político que vive sem luxos, por sua apologia à sobriedade – não à pobreza –, por seus valores em defesa da liberdade de escolha individual, que permitiram ao Uruguai legalizar o aborto e o consumo de maconha, e das obrigações do Estado em garantir direitos básicos das pessoas mais pobres.


Não alimentamos a ilusão de encontrá-lo. Afinal, Mujica hoje é senador e uma das figuras mais populares do cenário político mundial. Percorremos os 20 quilômetros que separam o centro de Montevidéu da chácara, instalada numa comunidade rural da periferia, e chegamos por volta das 10h da última segunda-feira. Para desavisados, a estrada de terra termina em uma enorme placa de “pare” com o alerta escrito à mão: “Disculpen, el senador Pepe Mujica no puede recibirlos por falta de tiempo. Gracias”. O segurança sai de uma guarita em frente à entrada da chácara e nos aborda com cordialidade. Dissemos que não queríamos importunar. O intuito era apenas conhecer a escola e contemplar o lugar onde mora o sujeito que ficou conhecido como “o presidente mais pobre do mundo”. Ele responde que não vê problema, desde que a gente não ultrapasse a placa. Conta que cumpre a função há três meses, quando Lucía Topolansky, esposa de Mujica, assumiu o cargo de vice-presidente do país. Uma de suas tarefas é despachar visitantes de vários cantos que peregrinam até a chácara. Recentemente, passaram por ali grupos de japoneses, sauditas, marroquinos e até um ônibus de turismo lotado de indianos em busca do líder que se converteu em uma celebridade.
Brincamos com os cachorros de Mujica, que foi presidente entre 2010 e 2015, marcando uma geração dentro e fora do Uruguai. Atestamos a simplicidade de sua casa, que tem um telhado verde musgo, e vimos a fachada da escola, onde adolescentes aprendem a manusear uma roçadeira. Depois de nos despedirmos do segurança, entramos no carro. Viro a chave da ignição. Do meu lado, para um trator com dois homens. Um deles estica o pescoço como quem quer dizer algo. Era Pablo, outro funcionário da segurança de Pepe e Lucía. Desço do carro e ele me pergunta se sou cubano. Explica-se: eu usava um casaco da delegação de Cuba nas Olimpíadas de 2012.
– Vieram ver o Pepe? – questiona Pablo.
– Seria uma honra, mas viemos só dar uma passada e conhecer a escola. Já estamos de saída.
– Bem, se vocês não têm pressa, por que não esperam um pouco? Quem sabe ele não aparece para dar um ‘oi’?
Se o próprio funcionário de Mujica estava sugerindo, por que não esperar? Decidimos ficar por no máximo 20 minutos. Nesse meio tempo, um dos cachorros do senador deita sobre o meu pé e só sai para perseguir, aos latidos, um motoqueiro que cruza a estrada. Um caminhão-reboque estaciona em frente à chácara para trocar o pneu do carro de uma das professoras da escola. Pablo manobra o trator dentro de um galpão. A bucólica rotina campesina transcorre normalmente até que todos os cachorros rumam em bando na direção da casa. O segurança torna a deixar a guarita. De repente, por entre as árvores que cercam a chácara, surge como um personagem dos contos de realismo fantástico de Gabriel García Márquez a figura mítica de Pepe Mujica. Levo alguns segundos para concluir que aquele senhor de agasalho e calças dobradas na altura das canelas atravessando a estrada a passos lentos se trata do ex-presidente do Uruguai.
Ele entra na guarita com Pablo, o segurança e outros dois homens. Sua aparição sem alarde continua martelando em minha cabeça. A palavra “mito”, tão banalizada e cada vez mais usada para definir oportunistas que não fazem jus à distinção, se aplica perfeitamente a Mujica. Muitos duvidam de que sua retórica do desapego aos bens materiais seja praticada, de fato, longe das câmeras e microfones. Mas a realidade se revela bem ali, diante dos nossos olhos, assim como o sinal de Pablo com a mão nos chamando até a guarita. Mujica está sentado à beira da janela. Nos apresentamos, acanhados. E eu me apresso em dizer que não queremos incomodá-lo. O suor escorre por suas bochechas caídas, e ele, sujo de terra, com carrapichos grudados na calça, se mostra um pouco ofegante. Antes de político, o homem do campo, que cultiva flores e hortaliças na chácara.




O alerta na estrada que dá acesso à propriedade de Mujica.
O alerta na estrada que dá acesso à propriedade de Mujica.


Apesar de sua enorme capacidade de improvisar discursos, Mujica emana um ar tímido e sereno. Diferentemente do estereótipo de líder popular, seu carisma reside na fala pausada, singela, e não nas pregações inflamadas. Ele pede para que a gente tome assento em duas cadeiras à sua frente. “O Brasil agora anda bem”, diz, referindo-se à seleção brasileira comandada por Tite. Ele é torcedor do Cerro, um pequeno time da região, que disputa a primeira divisão uruguaia. Não é algo que o entusiasme como a política, mas gosta do jogo. “Não há uruguaio que não goste. Nosso futebol é meio milagroso. Somos um país tão pequeno e sempre estamos aí, chegando, chegando...” Mujica espreita sobre o quadro eleitoral no Brasil para 2018. Ao saber que o deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro desponta em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás somente do ex-presidente Lula, faz uma pausa, tira o boné com a marca da Antel, estatal uruguaia de telecomunicações, coça a cabeça e lamenta: “¡Qué horrible!Já tinha ouvido falar, mas não pensei que ele fosse tão bem cotado”. Ainda solta um suspiro em forma de “Qué raro, Brasil, ¿no?”. Emendo com outra pergunta: como avalia o governo Michel Temer? “Ah, um desastre”, replica, justificando. “Retrocedeu ao que era o país antes de Getúlio Vargas [em alusão à recém-aprovada reforma trabalhista]. E vão pressioná-lo para que faça ainda mais reformas neoliberais.”
Embora não tenha tido filhos, Mujica parece um vovô experimentado, daqueles que andam de Fusca azul, mimam os netos e sempre carregam doces no bolso para arrancar um sorriso. Os doces de vô Pepe são palavras. Sobram-lhe poucos dentes na boca, mas seu espírito ainda conserva muito de utopia, da crença de que pequenos gestos, como interromper o trabalho no roçado para conversar com gente que nunca viu, podem mudar o mundo. Não é justo tomar tanto tempo de alguém que se dedica a causas nobres, de representar o povo uruguaio no Parlamento a plantar flores na chácara. Encerro a conversa, mas, em nenhum momento, Mujica parece demonstrar incômodo com a nossa presença. Pelo contrário. Quer saber de que cidade somos e o que fazemos no Brasil.


Mujica: “Os únicos derrotados são aqueles que deixam de lutar”

Depois, nos lamentaríamos pelas perguntas que não fizemos, por não ter esticado a conversa com um ex-presidente que parecia disposto a uma manhã inteira de prosa. Porém, um homem com sua história, do alto de seus 82 anos marcados pela resistência e a militância, diz mais pelo modo de agir do que pelas palavras. Viver como ele vive é seu maior ato político. Nunca me esquecerei de sua roupa salpicada pela terra, das botinas sem cadarço e do trato amável que dispensa às pessoas ao seu redor. Em um tempo de descrença e frustrações com a classe política, sentimento que se espalha por todo continente, a confirmação de que o Mujica do imaginário realmente existe é a maior recompensa que poderíamos levar daquele encontro. Ele se despede apertando nossa mão direita e, com a esquerda, dá dois leves tapinhas sobre o braço. Nos deseja sorte, “sorte na vida, jovens”.
Denise ficou paralisada diante de Mujica. De tão incrédula, não conseguiu pronunciar nada além de “gracias, gracias”. Saímos da guarita em êxtase e passamos o resto do dia anestesiados pela experiência que vivemos na chácara. Foram pouco mais de cinco minutos com Pepe, poucas palavras que valeram a viagem. A mensagem célebre de Mujica faz ainda mais sentido: “Os únicos derrotados são aqueles que deixam de lutar”. Fiel a seu estilo, Pepe segue na luta, segue inspirando. Há quem o chame de louco. Mas, ao que tudo indica, sua única loucura é não se curvar à lógica das aparências. É ser simples demais.


domingo, 9 de setembro de 2018

José Mujica: “Depois da pena de morte, a solidão é um dos castigos mais duros”






José Mujica: “Depois da pena de morte, a solidão é um dos castigos mais duros”

Ex-presidente do Uruguai protagoniza no festival de Veneza um documentário e um filme sobre seu longo período na cadeia




TOMMASO KOCH
Veneza 2 SET 2018 - 15:07 COT

Os ratos sempre chegavam na mesma hora, por volta de uma da madrugada. Visitavam a cela todas as noites, com missão idêntica: caçar migalhas. Mesmo que servisse para o prisioneiro José Mujica se sentir menos sozinho. E se agarrar ao contato com a realidade. “Era uma referência. Outra era a troca da guarda. Você vai criando o ofício de ser preso”, diz Mujica (Montevidéu, 1935), sentado no elegante sofá de um hotel e de um festival em que parece um intruso e, entretanto, é protagonista.
Diz que não apresenta “nada”, mas o certo é que dois filmes da Mostra falam dele: Uma Noite de 12 anos, do uruguaio Álvaro Brechner —na sessão Horizontes, e com coprodução espanhola—, recria sua odisseia como preso político, detido em 1972 por pertencer à guerrilha dos Tupamaros, e libertado somente em 1985. El Pepe, Uma Vida Suprema, de Emir Kusturica, é um documentário sobre o ex-presidente do Uruguai e sobre a maneira de ser e pensar que conquistou seu país e o mundo inteiro. Veneza também o coroou como uma de suas estrelas. Ainda que ele diga que na verdade é “estrelado”.
O diretor sérvio deve conhecer bem seu amigo. De modo que o chantageou: ‘Se não vier a Veneza para uma entrevista coletiva, eu também não vou”. Mujica diz que para não ofendê-lo, e como agradecimento pelos dois filmes, fez uma longa viagem que é cada vez mais difícil e da qual gosta cada vez menos. Em um encontro com a imprensa espanhola, olha para frente e para trás, à política e ao cinema, à Europa e à América Latina. Com humor —“uma arma defensiva brutal”—, citando poetas e sempre matizando no final, como se desse pouca importância. “Bom, é como eu vejo”. Ao modo de Mujica.
“Depois da pena de morte, a solidão é um dos castigos mais duros”, defende. Esteve com ela dos 37 aos 50, sofreu torturas, comeu sabão, perdeu os dentes pelas surras, e frequentemente a lucidez. Agora chama tudo aquilo de “peripécia”. “Isso que aconteceu conosco é pouco. Existem muitos outros que ficaram pelo caminho”, acrescenta. Não sabe muito bem como sobreviveu, mas tem algumas hipóteses: “Cada um se agarra no que pode. Quando era muito jovem, li muito. E nesses anos de solidão refleti. Repensar e reconsiderar coisas não é o mesmo que ler, é reconstruir. Acho que o homem aprende mais na adversidade, sempre que não o destrua, do que na bonança”.




Na América acontecem coisas que também se dão na Europa. Mas aqui são bem dissimuladas.


Entre outras lições, Mujica concluiu que a vingança não serve para nada: “Não sei se perdoo. Mas a natureza nos colocou os olhos na parte da frente, e existem contas que ninguém paga e não devem ser cobradas”. Fiel a isso, só viu Uma Noite de 12 Anos uma vez —não participou da estreia no festival, onde foi muito aplaudido—. Melhor não “remexer os sentimentos” que traz sobre sua mãe, os soldados, seus outros colegas presos e aqueles que já não estão.
Tanto isolamento também forjou parte de quem ele é hoje. “Quando tinha um colchão estava contente. Ou um copo de água. Ou se podia urinar. Descobri que brigamos muito por nada”, diz. E cita um estudo que sustenta que, a partir de certos níveis, os aumentos do PIB já não aumentam a felicidade: “Acho que a sentimos quando resolvemos questões básicas; depois, nem sinal”.

O poder e o estilo

“Quando era jovem pensava que a luta era pelo poder. Agora vejo que a história dos lutadores sociais e políticos é um monte de vidros quebrados, dos quais vão ficando pedacinhos: as oito horas de trabalho por dia, os direitos trabalhistas, a aposentadoria... eu me sinto irmão de tudo isso”, diz Mujica. Durante sua presidência, entre outras coisas, legalizou o casamento homossexual e a maconha, descriminalizou o aborto, e declarou guerra à pobreza e à indigência. Mesmo que a oposição tenha lhe acusado algumas vezes de esvaziar suas palavras ecologistas e anticapitalistas com decisões no sentido contrário. De seus mandatos, ele destaca “furos” e sonhos não cumpridos. “Seria preciso nomear o chefe dos bombeiros. O presidente é um apagador de incêndios”, afirma.




Eu tiro essa conclusão: tudo o que incomoda, com o que não se está de acordo, é populista

Também renunciou à mansão presidencial e a 90% de seu salário. E ficou na casa em que sempre morou, com sua mulher, a política e ex-guerrilheira Lucía Topolansky, e sua adorada cachorra Manuela. O recente falecimento do animal o fez refletir sobre a morte. E talvez daí venha o adeus a sua cadeira no Senado: “Às vezes você sente que está desempenhando um papel que já não te motiva. Você está atrapalhando, como uma árvore velha que não deixa ver o que está por baixo”.
Se deixou a política ativa para trás, falar dela ainda acende sua paixão. Perguntado pela crise na Venezuela e na Nicarágua, responde: “Na América acontecem coisas que também se dão na Europa. Mas aqui são bem dissimuladas. A Volkswagen recebe uma multa de 7 bilhões de dólares (28 bilhões de reais) e ninguém é preso, continuam como se nada houvesse. Não venham me dizer que a América está cheia de defeitos e a Europa é corretíssima. Não estou defendendo a deformação que temos, digo que está presente no mundo em que vivemos”. E diante de uma pergunta sobre o auge do populismo, coloca a própria questão em dúvida: “Não utilizo essa palavra porque a usam a torto e direito. São populistas na Nicarágua, e os que votam na direita na Alemanha meio neonazistas. Então, é qualquer coisa. Eu tiro essa conclusão: tudo o que incomoda, com o que não se está de acordo, é populista”.

Partidário da UE

Mujica apoia com convicção o projeto da União Europeia, apesar de seus “defeitos”: “O ser humano é o único animal que tropeça nas mesmas pedras. Nos últimos mil anos a Europa viveu em guerra e agora parecem se esquecer disso. Eu gostaria de ter algo assim na América Latina”. E sobre a Espanha afirma que tem “vários problemas com a memória”, e que sobrevive sua eterna contradição entre o país de “festa e alegria” e o da “raiva e ódio”. “A Espanha feudal ainda é muito forte”, diz. E em relação às turbulências com a Catalunha, afirma: “O nacionalismo dos jovens é algo bom porque serve para moldar caráter e identidade. Mas quando se exacerba se transforma em algo perigoso. Mas atenção: uma coisa é o nacionalismo de um país pequeno e outra o de um grande e de terror para os vizinhos”.
A última pergunta recai sobre a marca de Mujica, aos seus 83 anos. Ele não dá muita importância. “O que é o legado de uma pessoa no universo? Somos menos do que um piolho. O legado é ter vivido intensamente, com acertos e erros. Vencer não é ter dinheiro, é se levantar sempre que se cai”. A poucos quilômetros, o carpete vermelho de Veneza prepara outro desfile de estrelas. Resta saber quantas estão de acordo com o estrelado.


sábado, 28 de dezembro de 2013

Vargas Llosa / O exemplo uruguaio

José Mujica
Mario Vargas Llosa

O exemplo uruguaio

A liberdade tem seus riscos, e quem acredita nela deve estar disposto a corrê-los. Assim entendeu o Governo de José Mujica ao legalizar a maconha e o casamento gay. E é preciso aplaudi-lo



FERNANDO VICENTE
Fez bem a The Economist ao declarar o Uruguai como o país do ano e ao qualificar de admiráveis as duas reformas liberais mais radicais tomadas em 2013 pelo Governo do presidente José Mujica: o casamento gay e a legalização e regulamentação da produção, venda e consumo da maconha.
É extraordinário que ambas as medidas, inspiradas na cultura da liberdade, tenham sido adotadas pelo Governo de um movimento que em sua origem não acreditava na democracia, e sim na revolução marxista-leninista e no modelo cubano de autoritarismo vertical e de partido único. Desde que ascendeu ao poder, o presidente José Mujica, que em sua juventude foi guerrilheiro tupamaro, assaltou bancos e passou muitos anos na prisão, onde foi torturado durante a ditadura militar, tem respeitado escrupulosamente as instituições democráticas – a liberdade de imprensa, a independência dos poderes, a coexistência de partidos políticos e as eleições livres –, assim como a economia de mercado e a propriedade privada, e estimulado o investimento estrangeiro. Essa política do simpático e ancião estadista, que fala com uma sinceridade insólita para um governante, embora isso o leve a meter os pés pelas mãos de vez em quando, e que vive muito modestamente em sua pequena chácara na periferia de Montevidéu e viaja sempre de segunda classe nas suas viagens oficiais, deu ao Uruguai uma imagem de país estável, moderno, livre e seguro, o que lhe permitiu crescer economicamente e avançar na justiça social ao mesmo tempo em que estendia os benefícios da liberdade a todos os campos, vencendo as pressões de uma minoria recalcitrante da aliança.
É preciso recordar que o Uruguai, diferentemente da maior parte dos países latino-americanos, tem uma antiga e sólida tradição democrática, a ponto de que, quando eu era criança, o país oriental costumava ser chamado de “a Suíça da América”, pela força da sua sociedade civil, pela legalidade arraigada e por ter Forças Armadas respeitosas em relação aos governos constitucionais. Além disso, sobretudo depois das reformas do batllismo, que reforçaram o laicismo e desenvolveram uma poderosa classe média, a sociedade uruguaia tinha uma educação de primeiro nível, uma riquíssima vida cultural e um civismo equilibrado e harmonioso, que era a inveja de todo o continente.
Eu me recordo da impressão que significou para mim conhecer o Uruguai, em meados dos anos sessenta. Não parecia um dos nossos esse país onde as diferenças econômicas e sociais eram muito menos descarnadas e extremas do que no resto da América Latina, e onde a qualidade da imprensa escrita e radiofônica, seus teatros, suas livrarias, o alto nível do debate político, sua vida universitária, seus artistas e escritores – sobretudo o punhado de críticos e a influência que eles exerciam sobre os gostos do grande público – e a irrestrita liberdade que se respirava em qualquer parte o aproximavam muito mais dos mais avançados países europeus do que de seus vizinhos. Lá descobri o semanário Marcha, uma das melhores revistas que conheci, e que se transformou para mim desde então uma leitura obrigatória para estar a par do que ocorria em toda a América Latina.
Essa política do ancião estadista deu ao Uruguai uma imagem de país estável, moderno, livre e seguro
Entretanto, já naquele tempo tinha começado a se deteriorar essa sociedade que dava ao forasteiro a impressão de estar se afastando cada vez mais do Terceiro Mundo e se aproximando cada vez mais do Primeiro. Porque, apesar de tudo de bom que acontecia ali, muitos jovens, e alguns não tão jovens, sucumbiam ao fascínio pela utopia revolucionária e iniciavam, segundo o modelo cubano, as ações violentas que destruiriam aquela “democracia burguesa” para substituí-la não pelo paraíso socialista, e sim por uma ditadura militar de direita, que encheu as cadeias de presos políticos, praticou a tortura e obrigou milhares de uruguaios a se exilarem. A drenagem de talentos e dos seus melhores profissionais, artistas e intelectuais que o Uruguai padeceu naqueles anos foi proporcionalmente uma das mais críticas já vividas na história um país latino-americano. Entretanto, a tradição democrática e a cultura da legalidade e da liberdade não foram totalmente eclipsadas naqueles anos de terror e, ao cair a ditadura e se restabelecer a vida democrática, floresceriam de novo com mais vigor e, diria-se, com uma experiência acumulada que sem dúvida educou tanto a direita como a esquerda, vacinando-as contra as ilusões violentas do passado.
De outro modo, não teria sido possível que a esquerda radical, que chegara ao poder com a Frente Ampla e os tupamaros, desse demonstrações, desde o primeiro momento, de um pragmatismo e um espírito realista que têm permitido a convivência na diversidade e aprofundado a democracia uruguaia em lugar de pervertê-la. Esse perfil democrático e liberal explica a valentia com que o Governo do presidente José Mujica autorizou o matrimônio entre casais do mesmo sexo e fez do Uruguai o primeiro país do mundo a alterar radicalmente sua política diante do problema da droga, crucial em todas as partes, mas de uma agudeza especial na América Latina. Ambas são reformas muito profundas e de longo alcance, as quais, nas palavras da The Economist, “podem beneficiar o mundo inteiro”.
O matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, já autorizado em vários países do mundo, tende a combater um preconceito estúpido e a reparar uma injustiça pela qual milhões de pessoas já padeceram (e continuam padecendo na atualidade), arbitrariedades e discriminação sistemática, da fogueira inquisitorial até a prisão, o assédio, a marginalização social e atropelos de toda ordem. Inspirada na absurda crença de que há uma só identidade sexual “normal” – a heterossexual – e que quem se distancia dela é um doente ou um delinquente, homossexuais e lésbicas ainda enfrentam proibições, abusos e intolerâncias que os impedem de ter uma vida livre e aberta, embora felizmente nesse campo, pelo menos no Ocidente, os preconceitos e tabus homofóbicos foram desmoronando, para dar lugar à convicção racional de que a opção sexual deve ser tão livre e diversa quanto a religiosa ou a política, e que os casais homossexuais são tão “normais” quanto os heterossexuais. (Em um ato de pura barbárie, o Parlamento de Uganda acaba de aprovar uma lei estabelecendo a prisão perpétua para todos os homossexuais.)

A repressão não funcionou, e o narcotráfico é hoje o principal fator para a corrupção na América Latina
Em relação às drogas, ainda prevalece no mundo a ideia de que a repressão é a melhor maneira de enfrentar o problema, embora a experiência tenha demonstrado à exaustão que, não obstante a enormidade de recursos e esforços investidos em reprimi-las, sua fabricação e consumo continuam aumentando em todo lugar, engordando as máfias e a criminalidade associada ao narcotráfico. Esse é nos nossos dias o principal fator para a corrupção que ameaça as novas e antigas democracias e que vai cobrindo as cidades da América Latina de pistoleiros e cadáveres.
Será bem-sucedido o audaz experimento uruguaio de legalizar a produção e o consumo da maconha? Seria muito mais, sem dúvida nenhuma, se a medida não ficasse confinada a um só país (e não fosse tão estatista), e sim que compreendesse um acordo internacional do qual participassem tanto os países produtores quanto os consumidores. Mas, mesmo assim, a medida vai golpear os traficantes e, portanto, a delinquência derivada do consumo ilegal, e demonstrará em longo prazo que a legalização não aumenta notavelmente o consumo, a não ser em um primeiro momento, embora depois, desaparecido o tabu que costuma conferir prestígio à droga perante os jovens, ele tenda a diminuir. O importante é que a legalização seja acompanhada de campanhas educativas – como as que combatem o tabaco ou explicam os efeitos nocivos do álcool – e de reabilitação, de modo que quem fuma maconha o faça com perfeita consciência do que faz, assim como ocorre hoje em dia com quem fuma tabaco ou bebe álcool.
A liberdade tem seus riscos, e quem acredita nela deve estar disposto a corrê-los em todos os domínios, não só no cultural, religioso e político. Assim entendeu o Governo uruguaio, e é preciso agora aplaudi-lo por isso. Tomara que outros aprendam a lição e sigam seu exemplo.

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