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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Rubem Fonseca / Vida




Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
VIDA

No meu caso sou alertado pelo ruído causado pelo movimento de gases nos intestinos. Mas há pessoas que não são beneficiadas por esse sinal prodrômico — minha mulher diz que isso não é uma doença, e não sendo uma doença não tem um pródromo, como o aviso que um epiléptico recebe momentos antes de ter sua crise, como ocorria com o nosso filho, que Deus o tenha, mas minha mulher dedica-se a me contrariar em tudo o que digo, a me hostilizar constantemente, esse é o passatempo da vida dela —, mas eu dizia que a minha flatulência é anunciada por esses ruídos dos gases se deslocando no abdome, e isso me permite, quase sempre, uma retirada estratégica para ir expelir os gases longe dos ouvidos e narizes dos outros. Aliás, prefiro fazer isso isolado, pois os flatos ao serem expulsos dão-me um grande prazer que se manifesta no meu rosto, sei disso pois na maioria das vezes eu os libero no banheiro, o melhor lugar para fazê-lo, e posso notar na minha face, refletida no espelho, a leniência do alívio, a deleitação provocada por sua essência odorífera, e também uma certa euforia, quando são bem ruidosos. E, sendo um ambiente fechado, tenho outra emoção, talvez mais prazerosa, que é a de fruir com exclusividade esse odor peculiar. Sim, eu sei que para a maioria das pessoas — certamente não para quem o expeliu — o aroma da flatulência alheia é ofensivo e repugnante. Minha mulher, por exemplo, quando estamos deitados na cama e ela ouve o barulho dos meus intestinos, grita comigo, sai da cama e vai peidar longe de mim, seu nojento. Saio correndo da cama e vou para o banheiro, nessas ocasiões, como já disse, prefiro ficar sozinho, e após expelir os gases no banheiro, com a porta fechada, quando nem acabei de gozar a satisfação que aquilo me propicia, ela grita do quarto, meu Deus, estou sentindo o fedor daqui, você está podre mesmo. O cheiro não é tão forte assim, eu até que gostaria que fosse mais intenso pois me daria maior prazer, mas às vezes é tão suave que tenho que me curvar e fungar com o nariz quase colado no púbis para sentir o aroma desprendido pelo flato, mas mesmo assim, nesses dias ela grita palavras injuriosas do quarto, como se odor tão fraco pudesse fazer percurso tão longo sem esvaecer pelo caminho. Outro dia, no jantar, aliás isso ocorre quase todos os dias, ao repetir o prato de feijão, ela disse, come mais, enche as tripas, para depois peidar mais forte, mas ela diz a mesma coisa se repito a sobremesa, sou magro e não consigo deixar de ser magro, não importa o que eu coma, ela é gorda e não consegue deixar de ser gorda, mas vive fazendo tortas, pudins de leite e musses de chocolate, e se repito o pudim ou a musse ela diz, você vai passar a noite peidando como um cavalo, e ainda por cima ela me culpa de ser gorda, que a faço infeliz e ela come para compensar as frustrações causadas por mim, e ela tem razão, pois não consigo cumprir as minhas obrigações de marido, por mais que tente, e na verdade já nem tento mais. Eu poderia sair de casa, pedir divórcio, mas lembro o que ela sofreu durante a doença do nosso filho, acho que nunca existiu no mundo mãe mais dedicada, e ela ficou gorda depois que nosso filho morreu, e às vezes eu a surpreendo chorando com o retrato dele na mão, eu não devo abandoná-la nessa situação, não posso ser tão desalmado e egoísta, e ainda mais sendo magro e elegante poderia arrumar outra mulher, mas ela não conseguiria arranjar outro homem e a solidão aumentaria ainda mais o seu sofrimento e ela é uma boa mulher, não merece isso. Estamos deitados, ela de costas para mim, pensei que estivesse dormindo, mas meus intestinos começaram a produzir borborigmos e ela, sem se virar, gritou ai meu Deus que vida a minha, vai peidar no banheiro, e eu fui e fiz o que ela mandou e contemplei no espelho a felicidade que o forte ruído e o intenso odor estampavam no meu rosto.


Rubem Fonseca
Secreções, excreções e desatinos, 2001



quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Rubem Fonseca / Sopa de pedra



Rubem Fonseca
BIOGRAFIA

SOPA DE PEDRA

Um escrevia o nome da mulher amada com letras de macarrão

Enquanto a sopa esfriava no prato.

Outro era metade solidão e metade multidão.

Estou de olho neles.

Um andava com a espada sangrenta na mão.

Outro fingia que sentia o que de verdade sentia.

Este dizia que não cabe no poema o preço do feijão.

Estou de olho neles.

Este vê a vida como origem da sua inspiração,

A vida que é comer, defecar e morrer.

Todo poeta é maluco.

Estou de olho neles.

E também tem que ser maluco o pintor

E o músico e o prosador.

A loucura é muito boa.

Para todo o criador.

Mesmo para os cozinheiros

Ou qualquer inventor.

Estou de olho neles.

É melhor ser capenga do que cego.

A poesia é uma sopa de pedra.

Cabe tudo dentro dela.




Rubem Fonseca
Amálgama
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2013



quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Rubem Fonseca / Ela



Rubem Fonseca
BIOGRAFIA

ELA



Na cama não se fala de filosofia.
Peguei na mão dela, coloquei sobre meu coração, disse, meu coração é seu, depois pus sua mão sobre minha cabeça e disse, meus pensamentos são seus, moléculas do meu corpo estão impregnadas com moléculas do seu.
Depois botei a mão dela no meu pau, que estava duro, disse, é seu esse pau.
Ela nada disse, me chupou, depois chupei sua boceta, ela veio por cima, fodemos, ela ficou de joelhos, rosto no travesseiro, penetrei por trás, fodemos. Fiquei deitado e ela de costas para mim sentou-se sobre o meu púbis, enfiou meu pau na boceta.
Eu via meu pau entrando e saindo, via o cu rosado dela, que depois lambi. Fodemos, fodemos, fodemos. Gozei como um animal agonizando.
Ela disse, te amo, vamos viver juntos.
Perguntei, não está tão bom assim? Cada um no seu canto, nos encontramos para ir ao cinema, passear no Jardim Botânico, comer salada com salmão, ler poesia um para o outro, ver filmes, foder.
Acordar todo dia, todo dia, todo dia juntos na mesma cama é mortal. Ela respondeu que Nietzsche disse que a mesma palavra amor significa duas coisas diferentes para o homem e para a mulher. Para a mulher, amor exprime renúncia, dádiva. Já o homem quer possuir a mulher, tomá-la, a fim de se enriquecer e reforçar seu poder de existir.
Respondi que Nietzsche era um maluco.
Mas aquela conversa foi o início do fim.
Na cama não se fala de filosofia.

Rubem Fonseca
Ela e Outras Mulheres
Cia. das Letras, São Paulo, 2006



sábado, 25 de julho de 2015

Rubem Fonseca / Os músicos

Picasso
Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
OS MÚSICOS


Faz calor. Os grandes espelhos da parede vieram da Europa no fundo do porão; cristal puro. “Tua avó fez risinhos e boquinhas, namorou dentro desse espelho”. Respondo: “minha avó nunca viu esse espelho, ela veio noutro porão”. Nesse instante chegam os músicos, três: piano, violino, bateria; o mais moço, o pianista tem quarenta anos, mas é também o mais triste, um rosto de quem vai perder as últimas esperanças, ainda tem um restinho mas sabe que vai perdê-las num dia de calor tocando os Contos dos Bosques de Viena, enquanto lá embaixo as pessoas comem bebem suam sem ao menos por um instante levantar os olhos para o balcão onde ele trabalha com os outros dois: Stein, no violino – cinquenta e seis anos, meio século atrás: espancado com uma vara fina, trancado no banheiro, privado de comida “nem que eu morra você vai ser um grande concertista” e quando Sara, sua mãe, morreu, ele tocou Strauss no restaurante com o coração cheio de alegria – Elpídio na bateria, cinquenta anos, mulato, coloca um lenço no pescoço para proteger o colarinho, o gerente não gosta, mas ele não pode mudar de camisa todos os dias, tem oito filhos, se fosse rico - “fazia filho na mulher dos outros, mas sou pobre e faço na minha mesmo” - e todos começam, não exatamente ao mesmo tempo, a tocar a valsa da Viúva Alegre. Na mesa ao lado está o sujeito que é casado com a Miss Brasil. Todas as mesas estão ocupadas. Os garçons passam apressados carregando pratos e travessas. No ar, um grande burburinho.


Rubem Fonseca
Lúcia McCartney, 1967


sexta-feira, 24 de julho de 2015

Rubem Fonseca / O desempenho



Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
O DESEMPENHO



Consigo agarrar Rubão, encurralando-o de encontro às cordas. O filho da puta tem base, agarrase comigo, encosta o rosto no meu rosto para impedir que eu dê cabeçadas na cara dele; estamos abraçados, como dois namorados, quase imóveis — força contra força. O público começa  a vaiar. Rubão me dá um pisão no dedo do pé, afrouxo, ele se solta, me dá uma joelhada no estômago, um pontapé no joelho, um tapa na cara. Ouço os gritos. O público está torcendo por ele. Outro bofetão: um esporro danado nas arquibancadas. Não posso dar bola pra isso, não posso dar bola pra isso, não posso dar bola para esses filhos da puta chupadores. Tento agarrá-lo mas ele não deixa, ele quer brigar em pé, ele é ágil, a cutelada dele é um coice.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Rubem Fonseca / A Caminho de Assunção


Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
A Caminho de Assunção


Meu dólmã azul-ferrete de alamares brancos estava puído nos punhos e na gola. Minhas botas não tinham saltos, e estavam furadas nas solas. O punho da minha espada partira-se. Os soldados tinham os pés descalços e os uniformes remendados pelas mãos das chinas que seguiam voluntariamente nosso exército ou eram arrebatadas nos povoados que atravessávamos a caminho de Assunção.

domingo, 19 de julho de 2015

Rubem Fonseca / Decisão



RUBEM FONSECA
BIOGRAFIA
DECISÃO

Estou esperando. O quê? Uma coisa que ainda não aconteceu, é claro. Vou confessar: estou emboscado. Se fosse antigamente, muito antigamente, isso significaria que eu estava escondido num bosque, mas eu estou de tocaia na casa do sujeito que vou matar. 

sábado, 18 de julho de 2015

Rubem Fonseca / Amor


Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
AMOR

Nunca vejo o umbigo, a blusa deixa à mostra apenas quatro dedos de ventre e de dorso. Ela é branca, não uma alvura de lírio, há a radiância do sangue deslizando sob a pele que não sei descrever. Dá vontade de cheirar, de lamber. Às vezes a blusa que usa permite ver a fenda que separa os seios, e posso imaginar a curvatura, a sinuosidade que termina nos mamilos. Sinto mais do que desejo, sinto estupor quando imagino os seios dela. Qual a cor dos mamilos? Devem ter a mesma cor da aréola. Seus cabelos são castanho-escuros, aréolas e mamilos não devem ter um tom rosa muito forte. 

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Rubem Fonseca / O filho

Ilustração de Triunfo Arciniegas
Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
O FILHO

Jéssica tinha 16 anos quando ficou grávida.

É melhor tirar, disse a mãe dela. Você sabe quem é o pai?

Jéssica não sabia. Respondeu, não interessa quem é o pai, são todos uns merdas.

Combinaram que iam fazer o aborto na casa da mãe de santo d. Gertrudes, que fazia todos os partos e abortos daquela comunidade.

D. Gertrudes era uma mulher gorda, muito gorda, preta, muito preta, e suas rezas para afugentar os maus espíritos eram extremamente eficazes. D.Gertrudes fazia esconjurações, proferindo imprecações e rogando pragasmisturadas com bênçãos; fazia orações contra o quebranto e o mau-olhado;orações contra os espíritos obsessivos; orações para fechar o corpo contra todosos males; orações para exorcizar o demônio. E tinha uma oração especial, a Oração da Cabra Preta.

Na véspera de realizar o aborto, Jéssica falou com a mãe que havia decidido ter o filho e que se fosse menino ia se chamar Maicon e se fosse menina, Daiana. 

Vai ter o filho? 

Vou.

Ficou maluca. Como é que você vai criar? 

Qual o problema? Se der muito trabalho eu posso dar o bebê, ou melhor, posso vender. Tem um monte de gente interessada em comprar bebês. A Kate vendeu o bebê, você sabia? 

Vendeu? 

Vendeu. Mas não conta para ninguém. Ela me pediu segredo.

Naquele mesmo dia a mãe de Jéssica, d. Benedita, foi procurar a Kate.

Quando d. Benedita falou sobre a venda do bebê, Kate ficou branca. 

O pessoal não pode saber, pelo amor de Deus, o pessoal não pode saber. Por quê? Qual o problema?

Eu não disse lá em casa que tinha vendido, disse que tinha dado. Fiquei com o dinheiro só para mim, se o meu pai e a minha mãe souberem vão me encher de porrada. 

Quanto lhe pagaram? 

Não digo, não digo. 

Quem comprou? 

Chega, d. Benedita.

Kate se afastou correndo.

D. Benedita não desistiu. Foi procurar a mãe de santo d. Gertrudes e disse que queria fazer Kate lhe contar quem havia comprado o seu bebê. 

Misifia, isso é coisa de Satanás, disse d. Gertrudes, é preciso uma oração contra o demônio. Deve-se repetir muitas vezes, misifia.

D. Gertrudes fez repetidas vezes o sinal da cruz e começou a orar em voz alta: 

Eu, como criatura de Deus, feita à Sua semelhança e remida com o Seu santíssimo sangue, vos ponho preceito, demônio ou demônios, para que cessem os vossos delírios, para que esta criatura não seja jamais por vós atormentada com as vossas fúrias infernais. Pois o nome do Senhor é forte e poderoso, por quem eu vos cito e notifico, que vos ausenteis deste lugar que Deus Nosso Senhor vos destinar; porque com o nome de Jesus vos piso e rebato e vos aborreço do meu pensamento para fora. O Senhor esteja comigo e com todos nós, ausentes e presentes, para que tu, demônio, não possas jamais atormentar as criaturas do Senhor. Amarro-vos com as cadeias de São Paulo e com a toalha que limpou o santo rosto de Jesus Cristo para que jamais possais atormentar os viventes. 

Depois de recitar a sua oração, d. Gertrudes rodopiou pela sala e caiu no chão, desmaiada.

D. Benedita voltou a se encontrar com Kate, que, como se estivesse em transe, lhe contou quem comprara o bebê, a quantia, tudo.

Mas d. Benedita não disse isso para Jéssica. Estava decidida a vender o bebê ela mesma, pois precisava de dinheiro para comprar uma dentadura. 

O tempo foi passando e a barriga de Jéssica crescendo. Jéssica era uma menina miúda, raquítica, não chegava a ter um metro e meio de altura, mas a sua barriga era imensa, e as pessoas diziam que nunca tinham visto uma barriga daquele tamanho.

É mnino, dizia Jéssica, e vai ser grandão, grandão e bonito, vocês vão ver. Jéssica foi se arrastando ao cafofo de d. Gertrudes para ser examinada. 

Vai ser amanhã, disse d. Gertrudes. Venha preparada.

Jéssica dormiu mal aquela noite, pensando no filho. Não ia vender o bebê, queria lhe dar de mamar, seus peitos já estavam cheios de leite. 

No dia seguinte, levando um pequeno cobertor e um lençol rendado para agasalhar o bebê, Jéssica foi para a casa de d. Gertrudes.

D. Benedita fez questão de acompanhá-la. Seu plano era pegar o bebê imediatamente após o parto e sair correndo com ele debaixo do braço para se encontrar com o comprador de bebês, com quem ela já havia combinado tudo. Ela também havia levado panos para envolver o bebê. 

O parto correu normal. O bebê nasceu, era menino. 

D. Benedita imediatamente olhou o bebê e saiu correndo da casa de d. Gertrudes.

Mas d. Benedita saiu correndo sem levar o bebê. Saiu sozinha com o olho arregalado como se Satanás tivesse entrado no seu corpo. 

D. Gertrudes envolveu o bebê nos panos que Jéssica trouxera. 

Pode levar o bebê para casa, disse d. Gertrudes.

Jéssica então olhou o filho. Não disse uma palavra. Pegou o bebê envolto no cobertor e no pequeno lençol de renda e saiu da casa de d. Gertrudes. 

Foi caminhando lentamente pela rua até que encontrou a primeira lata de lixo grande. Então jogou o bebê na lata de lixo. 

O bebê era aleijado. Só tinha um braço. Ela não ia dar de mamar nem ninguém ia querer comprar aquela coisa.


Rubem Fonseca
Amálgama
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2013



quinta-feira, 16 de julho de 2015

Rubem Fonseca / Livro de Ocorrências



Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
Livro de Ocorrências


1.


Investigador Miro trouxe a mulher à minha presença.

Foi o marido, disse Miro, desinteressado. Naquela delegacia de subúrbio era comum briga de marido e mulher.

Ela estava com dois dentes partidos na frente, os lábios feridos, o rosto inchado. Marcas nos braços e no pescoço.

Foi o seu marido que fez isso?, perguntei.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Rubem Fonseca / Passeio noturno / Parte II



Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
PASSEIO NOTURNO 
PARTE II



Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o que ela dizia. Uma lufada de arquente entrou com o som da voz dela: Não está mais conhecendo os outros?



Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros buzinaram atrás dos nossos. A avenida Atlântica, às sete horas da noite, é muito movimentada.

A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o braço direito para fora e disse, olha um presentinho para você.

Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão. Depois arrancou com o carro, dando uma gargalhada.

Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver o que estava escrito. Ângela, 2287-3594.

À noite, saí, como sempre faço.

No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se Ângela estava. Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a empregada. Perguntei se Ângela era estudante. Ela é artista, respondeu a mulher.

Liguei mais tarde. Ângela atendeu.

Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse.

Você sabe que eu não consegui identificar o seu carro?

Apanho você às nove horas para jantarmos, eu disse.

Espera aí, calma. O que foi que você pensou de mim?

Nada.

Eu laço você na rua e você não pensou nada?

Não. Qual é o seu endereço?

Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar.

Estava na porta me esperando.

Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que em qualquer restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano.

Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula. Aula de quê?, eu disse.

Impostação de voz.

Tenho uma filha que também estuda impostação de voz. Você é atriz, não é?

Sou. De cinema.

Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que você fez?

Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O nome é meio bobo, As virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou começando, posso esperar, tenho só vinte anos.

Na semiescuridão do carro ela parecia ter vinte e cinco.

Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a pé na direção do restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva.

Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse.

O porteiro guarda o carro, você não sabia?, ela disse.

Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu.

Quando entramos, Ângela lançou um olhar desdenhoso sobre as pessoas que estavam norestaurante. Eu nunca havia ido àquele lugar. Procurei ver algum conhecido. Era cedo ehavia poucas pessoas. Numa mesa um homem de meia-idade com um rapaz e uma moça.Apenas três outras mesas estavam ocupadas, com casais entretidos em suas conversas. Ninguém me conhecia.

Ângela pediu um martíni.

Você não bebe?, Ângela perguntou.

Às vezes.

Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo, quando eu te passei o bilhete?

Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse.

Pensa, Ângela disse.

Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no carro e se interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher agressiva, impulsiva e decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva.

Apanhou um pedaço de papel arrancado de um caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não deu para eu decifrar o nome que você escreveu.

E a segunda hipótese?

Que você é uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel escritos com o seu nome e o telefone. Cada vez que você encontra um sujeito num carro grande, com cara de rico e idiota, você dá o número para ele. Para cada vinte papelinhos distribuídos, uns dez telefonam para você.

E qual a hipótese que você escolhe?, Ângela disse.

A segunda. Que você é uma puta, eu disse.

Ângela ficou bebendo o martíni como se não tivesse ouvido o que eu havia dito. Bebi minha água mineral. Ela olhou para mim, querendo demonstrar sua superioridade, levantando a sobrancelha — era má atriz, via-se que estava perturbada — e disse: você mesmo reconheceu que era um bilhete escrito às pressas dentro do carro, quase ilegível.

Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa maneira, antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse.

E se eu jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira. Você acreditaria?

Não. Ou melhor, não me interessa, eu disse.

Como que não interessa?

Ela estava intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo que a ajudasse a tomar uma decisão.

Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse.

Com um gesto chamei o maître. Escolhemos a comida.

Ângela tomou mais dois martínis.

Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela soava ligeiramente pastosa.

Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em condições de fugir de mim, na hora em que for preciso, eu disse.

Eu não quero fugir de você, disse Ângela esvaziando de um gole o que restava na taça. Quero outro.

Aquela situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois ia ser bom. Mas conversar com Ângela não significava mais nada para mim, naquele momento interlocutório.

O que é que você faz?

Controlo a distribuição de tóxicos na zona sul, eu disse.

Isso é verdade?

Você não viu o meu carro?

Você pode ser um industrial.

Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse.

Industrial.

Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a minha cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso.

Não acredito numa só palavra do que você diz.

Foi a minha vez de fazer uma pausa.

Você tem razão. É tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se você consegue descobrir alguma coisa, eu disse.

Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio de luz que descia do teto e me olhou intensamente.

Não vejo nada. Teu rosto parece o retrato de alguém fazendo uma pose, um retrato antigo, de um desconhecido, disse Ângela.

Ela também parecia o retrato antigo de um desconhecido.

Olhei o relógio.

Vamos embora?, eu disse.

Entramos no carro.

Às vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e dá errado, disse Ângela.

O azar de um é a sorte do outro, eu disse.

A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse.

Vou deixar você um pouco antes da sua casa, eu disse.

Por quê?

Sou casado. O irmão da minha mulher mora no teu edifício.

Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que ele me visse. Ele conhece o meu carro. Não há outro igual no Rio.

A gente não vai se ver mais?, Ângela perguntou.

Acho difícil.

Todos os homens se apaixonam por mim.

Acredito.

E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você, disse Ângela.

Um completa o outro, eu disse.

Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde.

Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia escapado.

Bati em Ângela com o lado esquerdo do para-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente — e senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando — e logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade.

Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um filme colorido, dublado.

Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse.

Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia terrível na companhia.


Rubem Fonseca
Feliz Ano Novo, 1975




terça-feira, 14 de julho de 2015

Rubem Fonseca / Passeio noturno / Parte I


Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
PASSEIO NOTURNO 
PARTE I


Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa-de-cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando empostação de voz, a música quadrafônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala? Perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.

Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?

A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescidos, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.

Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu carro. Tirei o carro dos dois, botei na rua, tirei o meu e botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico, Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na Avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher?, realmente não fazia grande diferênça, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mail fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som das borrachas dos pneus batendo no meio-fio. Pequei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em onze segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de vermelho, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.


Rubem Fonseca
Feliz Ano Novo, 1975


Os melhores contos brasileiros de 1973 
Porto Alegre, Editora Globo, 1974, p. 179-181


segunda-feira, 13 de julho de 2015

Rubem Fonseca / O vendedor de Seguros



Rubem Fonseca
BIOGRAFIA

O Vendedor de Seguros


Renata, de vestido novo, ficou de lado na frente do espelho, virou o pescoço para ver o traseiro, era um espelho grande que dava para ela ver o corpo por inteiro. Quando coloquei meu paletó, nem sei como me notou, quando olhava para o espelho ela não via mais nada, perguntou você vai sair a esta hora para trabalhar?

Meu negócio é vender seguros, você sabe disso, não tenho horário, respondi.

Eu preferia que tivesse, são cinco horas da tarde, não sei a que horas vai voltar, já vi que não vamos sair hoje à noite, de que adianta eu comprar roupas novas se não saio com elas?

terça-feira, 7 de julho de 2015

Rubem Fonseca / O ensino da gramática



Rubem Fonseca 
BIOGRAFIA

O ensino da gramática



Você está triste?


Não sei. Talvez.

Tristeza dá câncer, sabia?

Pensei que dava verruga no nariz.

Estou falando sério.

Ultimamente você vive falando sério.

Quando eu brincava você reclamava.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra.

Você colocou vírgula depois de mar.

Estou falando, não estou escrevendo.

Mas na sua fala tinha uma vírgula depois de mar?

Não. Você está fazendo uma análise sintática e morfológica da frase?

Na frase há o uso da figura de sintaxe chamada elipse.

Chega. É por coisas assim que eu não quero mais viver com você.

Porque eu sei gramática e você não?

Entre outras coisas.

Não gosta mais de foder comigo?

Usarei uma elipse aqui. Ou melhor, uma zeugma.

Zeugma é um substantivo masculino.

Um zeugma, então.

Significando?

Que é fácil subentender.

Subentender por que você não gosta mais de foder comigo?

Precisamente. Pensa.

Estou pensando e não consigo.

Pensa em nós dois na cama.

Você sempre se manifesta pomposamente na hora do orgasmo.

Pomposamente? Explica.

Exibição de magnificência sensual. Mímica.

Mímica?

Mímica. Muito bem-feita.

Vou fazer as malas. Diga: já vai tarde.

Já vai tarde.

E esses olhos úmidos de lágrimas?

Mímica.

Acho que vou ficar mais um pouco.

Um pouco?

Uns dias.

Dias?

Pensando bem, uns meses. Mas você me ensina gramática durante esse tempo.

Então deixa de ficar triste.

Tenho uma razão. Já estou com câncer.

Jura?

Juro. Pulmão. O cigarro.

Meu amor, vou cuidar de você.

Mas antes me ensina gramática.





Rubem Fonseca
Axilas e outras histórias indecorosas
Editora Nova Fronteira, 2011



segunda-feira, 6 de julho de 2015

Rubem Fonsca / Relato de ocorrência


Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
RELATO DE OCORRÊNCIA 
em que Qualquer Semelhança
nãé Mera Coincidência

Na madrugada do dia 3 de maio, uma vaca marrom caminha na ponte do rio Coroado, no quilômetro 53, em direção ao Rio de Janeiro.
Um ônibus de passageiros da empresa Única Auto Ônibus, chapa RF 80-07-83 e JR 81-12-27, trafega na ponte do rio Coroado em direção a São Paulo.
Quando vê a vaca, o motorista Plínio Sérgio tenta se desviar. Bate na vaca, bate no muro da ponte, o ônibus se precipita no rio.
Em cima da ponte a vaca está morta.
Debaixo da ponte estão mortos: uma mulher vestida de calça comprida e blusa amarela, de vinte anos presumíveis e que nunca será identificada; Ovídia Monteiro, de trinta e quatro anos; Manuel dos Santos Pinhal, português, de trinta e cinco anos, que usava uma carteira de sócio do Sindicato de Empregados em Fábricas de Bebidas; o menino Reinaldo de um ano, filho de Manuel; Eduardo Varela, casado, quarenta e três anos.
O desastre foi presenciado por Elias Gentil dos Santos e sua mulher Lucília, residentes nas cercanias. Elias manda a mulher apanhar um facão em casa. Um facão?, pergunta Lucília. Um facão depressa sua besta, diz Elias. Ele está preocupado. Ah! percebe Lucília. Lucília corre.
Surge Marcílio da Conceição. Elias olha com ódio para ele. Aparece também Ivonildo de Moura Júnior. E aquela besta que não traz o facão!, pensa Elias. Ele está com raiva de todo mundo, suas mãos tremem. Elias cospe no chão várias vezes, com força, até que a sua boca seca.
Bom dia, seu Elias, diz Marcílio. Bom dia, diz Elias entre dentes, olhando pros lados. Esse mulato!, pensa Elias.
Que coisa, diz Ivonildo, depois de se debruçar na amurada da ponte e olhar os bombeiros e os policiais embaixo. Em cima da ponte, além do motorista de um carro da Polícia Rodoviária, estão apenas Elias, Marcílio e Ivonildo.
A situação não anda boa não, diz Elias olhando para a vaca. Ele não consegue tirar os olhos da vaca.
É verdade, diz Marcílio.
Os três olham para a vaca.
Ao longe vê-se o vulto de Lucília, correndo.
Elias recomeçou a cuspir. Se eu pudesse eu também era rico, diz Elias. Marcílio e Ivonildo balançam a cabeça, olham para a vaca e para Lucília, que se aproxima correndo. Lucília também não gosta de ver os dois homens. Bom dia dona Lucília, diz Marcílio. Lucília responde balançando a cabeça. Demorei muito?, pergunta, sem fôlego, ao marido.
Elias segura o facão na mão, como se fosse um punhal; olha com ódio para Marcílio e Ivonildo. Cospe no chão. Corre para cima da vaca.
No lombo é onde fica o filé, diz Lucília. Elias corta a vaca.
Marcílio se aproxima. O senhor depois me empresta a sua faca, seu Elias?, pergunta Marcílio. Não, responde Elias.
Marcílio se afasta, andando apressadamente. Ivonildo corre em grande velocidade.
Eles vão apanhar facas, diz Elias com raiva, aquele mulato, aquele corno. Suas mãos, sua camisa e sua calça estão cheias de sangue. Você devia ter trazido uma bolsa, uma saca, duas sacas, imbecil. Vai
buscar duas sacas, ordena Elias.
Lucília corre.
Elias já cortou dois pedaços grandes de carne quando surgem, correndo, Marcílio e sua mulher Dalva, Ivonildo e sua sogra Aurélia e Erandir Medrado com seu irmão Valfrido Medrado. Todos carregam facas e facões. Atiram-se sobre a vaca.
Lucília chega correndo. Ela mal pode falar. Está grávida de oito meses, sofre de verminose e sua casa fica no alto de um morro, a ponte no alto de outro morro. Lucília trouxe uma segunda faca com ela. Lucília corta a vaca.
Alguém me empresta uma faca senão eu apreendo tudo, diz o motorista do carro da polícia. Os irmãos Medrado, que trouxeram vários facões, emprestam um ao motorista.
Com uma serra, um facão e uma machadinha aparece João Leitão, o açougueiro, acompanhado de dois ajudantes.
O senhor não pode, grita Elias.
João Leitão se ajoelha perto da vaca.
Não pode, diz Elias dando um empurrão em João. João cai sentado.
Não pode, gritam os irmãos Medrado.
Não pode, gritam todos, com exceção do motorista da polícia.
João se afasta; a dez metros de distância, pára; com os seus ajudantes, fica observando.
A vaca está semidescarnada. Não foi fácil cortar o rabo. A cabeça e as patas ninguém conseguiu cortar. As tripas ninguém quis.
Elias encheu as duas sacas. Os outros homens usam as camisas como se fossem sacos.
Quem primeiro se retira é Elias com a mulher. Faz um bifão pra mim, diz ele sorrindo para Lucília. Vou pedir umas batatas a dona Dalva, vou fazer também umas batatas fritas para você, responde Lucília.
Os despojos da vaca estão estendidos numa poça de sangue. João chama com um assobio os seus dois auxiliares. Um deles traz um carrinho de mão. Os restos da vaca são colocados no carro. Na ponte fica apenas a poça de sangue.


Rubem Fonseca
Lúcia McCartny (1967) 

Rubem Fonseca
Contos reunidos 
São Paulo, Cia. das Letras, 1994. p. 360-362.