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sábado, 21 de janeiro de 2017

Os últimos dias de Pablo Neruda, segundo seu motorista

Os últimos dias de Pablo Neruda, segundo seu motorista

Manuel Araya, vítima da ditadura de Pinochet, denunciou em 2011 o assassinato do Nobel. “Deram-me uma injeção e estou queimando por dentro”, disse-lhe o poeta


WINSTON MANRIQUE SABOGAL
Madri 9 NOV 2015 - 18:09 COT



Manuel Araya, que foi motorista de Neruda, em Isla Negra.  EL PAÍS


Cerca de quatro horas antes de Pablo Neruda morrer de um “câncer na próstata”, no domingo 23 de setembro de 1973, o homem que cuidava dele não pôde cumprir a sua última missão, interrompida pelos militares: comprar-lhe “um medicamento que, supostamente, aliviaria a dor do poeta”. Quarenta e dois anos depois, Manuel Araya considera que tem de cumprir, ainda, uma última missão para Neruda: “Ajudar a provar que ele foi assassinado”. Ele está convencido de que o poeta não morreu pelas causas divulgadas oficialmente. É a única testemunha direta viva dos últimos dias do Nobel de Literatura, naqueles momentos iniciais do grande túnel que foi a ditadura de Augusto Pinochet, iniciado em 11 de setembro de 1973.
Manuel Araya tinha 27 anos naquele domingo, véspera de uma viagem de Neruda ao México. Dias que ele recorda agora, ao telefone, falando do Chile, aos 69 anos. Por volta das seis e meia da tarde, ele saiu correndo da Clínica Santa María, de Santiago do Chile, pegou o Fiat 125 branco e foi comprar o medicamento. Quatro militares, portando metralhadoras, o fizeram parar. Araya lhes explicou quem ele era: “Sou o secretário, motorista e a pessoa que cuida do senhor Pablo Neruda, o Nobel de Literatura, e estou indo comprar um medicamento para ele com urgência”. Como resposta, fizeram-no descer do veículo, insultaram-no, aplicaram-lhe golpes e deram-lhe um tiro em uma perna... Depois disso, levaram-no a uma delegacia de polícia, onde foi interrogado e torturado, para depois deixa-lo no Estádio Nacional, para onde a ditadura enviava os opositores a fim de lhes aplicar maus tratos ou fazer com que desaparecessem.
Manuel Araya, em Isla Negra, neste mês (20159
Foto de  



Passou a noite ali. No dia seguinte, o arcebispo Raúl Silva Henríquez o reconheceu e, depois da surpresa inicial, lhe disse: “Manuel, veja só, o Pablito morreu esta noite, às dez e meia”. Araya exclamou: “Assassinos!”. O arcebispo pediu aos militares para tirarem o motorista do Estádio. O que só veio a acontecer 42 dias mais tarde, com ele usando roupas emprestadas, uma barba longa e pesando 33 quilos. Seu calvário estava apenas começando.

Única testemunha

Desde a morte de Pablo Neruda até hoje, Manuel Araya se manteve praticamente à sombra, em silêncio. Talvez tenha escapado pela segunda vez da morte quando, em 22 de março de 1976, seu irmão Patricio desapareceu, segundo ele, por terem-no confundido com ele. Nunca mais se soube desse irmão. Para reforçar sua tese, ele recorda que também o secretário pessoal de Neruda, Homero Arce, foi assassinado, em 1977. “Sumiram com todos os colaboradores de Neruda. Eu sou a parte principal do que ainda continua vivo”.
“Certo dia, voltei para Santiago para não continuar expondo minha família. Vivia quase escondido na casa de alguns amigos. Não tinha carteira de identidade nem carta de motorista. Não conseguia trabalho, até que, em 1977, comecei a trabalhar como taxista. A ditadura acabou em 1990. Dois anos depois, comecei a trabalhar na Pullmanbus, no setor administrativo, até 2006, quando me aposentei.”
Seu contato com Matilde Urrutia, a terceira mulher de Neruda, falecida em 1985, se manteve. “Ela nunca quis falar sobre o assassinato. Rompi relações com ela por causa disso. Acabamos criando uma inimizade. Bati em muitas portas esse tempo todo. Inclusive na do presidente Eduardo Lagos. Ninguém me ouviu.”
Passou muitos anos correndo atrás de alguém que pudesse ouvir a sua versão, mas ninguém lhe deu ouvidos: “Nem os políticos, nem os veículos de comunicação. Talvez tivessem medo, não sei”. Até que um jornalista da revista mexicana Proceso publicou a sua história, em 2011. Depois disso, o Partido Comunista e Rodolfo Reyes, sobrinho de Neruda, entraram com um pedido de investigação a partir de seu testemunho. Em 2013, o corpo do escritor foi exumado, mas os médicos legistas não encontraram nele resquícios de envenenamento.
O caso voltou à tona com o lançamento da biografia Neruda. El Príncipe de los Poetas [Neruda, o príncipe dos poetas], do historiador alicantino Mario Amorós, cuja principal revelação foi noticiada em primeira mão pelo EL PAÍS na última quinta-feira: o relatório secreto do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior, enviado em 25 de março de 2015 ao juiz Mario Carroza Espinosa, encarregado do processo. O documento, baseado em provas testemunhais e documentais, afirma que “é claramente possível e altamente provável a intervenção de terceiros” na morte do Nobel. Além disso, uma equipe internacional de legistas investiga a presença do estafilococo dourado no corpo do poeta. Trata-se de um germe que, alterado geneticamente e aplicado em doses elevadas, pode ser letal. A equipe científica definiu o prazo até março de 2016 para emitir um parecer sobre um caso sem precedentes: decifrar o DNA desse germe, detectar a sua presença e se ele foi alterado por alguma equipe militar, levando em consideração que a ditadura chilena usou armas químicas para eliminar pessoas, como admitiu Carroza Espinosa.

O golpe de Estado

Araya nasceu em 29 de abril de 1946, no hospital de Melipilla. Foi batizado como Manuel del Carmen Araya Osorio. Era o primogênito do casal Manuel e María, que teria treze filhos. Não terminou os estudos, mas com 14 anos se mudou para Santiago. Lá começou a trabalhar no Partido Comunista. Quando Salvador Allende foi indicado candidato à presidência, em 1970, Araya o acompanhou na campanha. Todos esses dias voltam agora à sua lembrança:
“Em 1972, quando Neruda retorna ao país, deixando a embaixada na França para ajudar Allende no caos que o Chile vivia, o Partido Unidade Popular me manda para ele. Passo a ser seu guarda-costas, seu secretário e seu chofer. Com ele vivi na casa de Isla Negra. Neruda tinha flebite na perna direita e às vezes mancava. Estava em tratamento de câncer de próstata, mas não estava agonizante. Era um homem de mais de cem quilos, robusto, de boa mesa e festas, e muito cordial e bom com as pessoas.”




HISTÓRIA DE UM CASO


Manuel Araya nasce em Melipilla (Chile), em 1946. Com 14 anos vai para Santiago. Começa a trabalhar no Partido Comunista.
Em 1970, participa da campanha de Salvador Allende à presidência.
Em 1972 é cedido a Pablo Neruda para desempenhar as funções de guarda-costas, secretário e motorista.
Em 11 de setembro de 1973, dia do golpe de Estado de Pinochet, está com Neruda em sua casa de Isla Negra.
Nos dia 12, um navio de guerra com canhões se instala em frente a Isla Negra, e a casa de Neruda é revistada.
No dia 19, Neruda chega à Clínica Santa María, em Santiago. No dia 22, o embaixador do México combina a ida do poeta para o seu país.
No dia 23, Neruda, segundo Araya, recebe uma injeção no estômago e morre seis horas depois.
Na noite do dia 23, Araya é levado a uma delegacia, onde é interrogado e torturado. Sai 42 dias depois. Vive semioculto.
Em 1977, começa a trabalhar como taxista.
Em 2011, Araya denuncia o assassinato na revista Proceso. O Partido Comunista e Rodolfo Reyes, sobrinho de Neruda, abrem um processo.
Em 2016, o juiz Mario Carroza Espinosa ditará o veredicto.

“Em 11 de setembro de 1973, quando Pinochet dá o golpe de Estado, estávamos em Isla Negra. Nesse dia ele ia fazer uma espécie de inauguração de Cantalao, uns terrenos que ele havia comprado, em El Quisco, onde queria construir uma residência para escritores do mundo todo. Mas às quatro da manhã escutei o sininho com que ele me chamava, para me dizer que acabava de escutar numa rádio argentina que um golpe de Estado estava sendo preparado. Nesse dia entram no palácio de La Moneda e assassinam Allende. Eu tinha afrouxado uns tubos da televisão para que ele não visse o que acontecia. Mas fica sabendo, claro. Todo o país entra em toque de recolher. Ficamos sem telefone. Isla Negra se enche de carabineiros. ‘Vão matar todo mundo’, dizia don Pablo. Falava da Guerra espanhola, do que Franco fez… Neruda se dava valor.”
“No dia seguinte, colocam um navio de guerra com canhões em frente a Isla Negra. O embaixador do México lhe oferece asilo. No dia 14 chegam os militares e revistam a casa. Ficamos assustados. Neruda fala com seu médico, o doutor Roberto Vargas Salazar, que lhe diz que em 19 de setembro vagaria o quarto 406 da Clínica Santa María. Os militares não queriam lhe dar o salvo-conduto, então ele precisou dizer que estava mal e que precisava sair para receber tratamento; a única forma de tirá-lo era por razões humanitárias.”
“Nos dia 19 viajamos de carro de Isla Negra a Santiago. Levamos umas cinco horas, quando o normal eram duas. Foi um dia horrível. Pararam-nos várias vezes. Em Melipilla nos fizeram descer e deitar no chão. Fizeram-nos passar medo. A perseguição foi terrível. Chegamos lá pelas seis da tarde. Não deixamos Neruda sozinho em nenhum instante. Todas as noites eu ficava dormindo sentado numa poltrona, e Matilde numa saleta da entrada principal do quarto.”
“Nos dia 22 lhe entregam o salvo-conduto e ele decide com o embaixador mexicano, Gonzalo Martínez Corbalá, viajar na segunda-feira, dia 24. Nesse mesmo dia 22 [o embaixador] o visita na Clínica Radomiro Tomic e lhe conta que Víctor Jara foi assassinado. Neruda se desespera."

Um domingo negro

"No dia seguinte, domingo, dia 23, ele me diz para ir a Isla Negra com La Patoja, como ele chamava Matilde, para trazer a bagagem. Vamos, e ele fica com sua meia irmã Laurita. Quando estamos quase de volta, às quatro da tarde, ele liga para a Hospedaria Santa Helena e pede que digam a Matilde que vá imediatamente para a clínica. Quando chegamos, vejo Neruda com a cara vermelha. ‘O que está havendo, don Pablo!', pergunto. ’Deram-me uma injeção no estômago e estou queimando por dentro’, me respondeu. Fui ao banheiro, peguei uma toalha, molhei-a e a coloquei sobre o estômago. No que estou fazendo isso entra um médico e me diz: ‘Como motorista, você precisa ir comprar Urogotán’. Eu não sabia o que era, só depois soube que era para a gota.”
Manuel Araya, na época em que trabalhava como motorista para Neruda.

Saiu e nunca pôde voltar

“Quando estou no carro, outros dois automóveis me interceptam. Descem quatro homens com minimetralhadoras e me golpeiam. Falam de tudo para mim: filho da mãe, da avó… Digo a eles quem sou. ‘Vamos matar os comunistas!’, gritavam. Levam-me para a delegacia, me interrogam e me torturam. Queriam que eu lhes dissesse onde estavam os líderes comunistas, e com quem Neruda se reunia. Digo a eles que só se reúne com escritores. No final me levam ao Estádio Nacional. No dia seguinte, o arcebispo Silva Henríquez me dá a notícia [da morte de Neruda].”
Em 2011, Manuel Araya diz que Pablo Neruda foi assassinado. Abre-se o processo. O cadáver é exumado em abril de 2013, e em novembro desse mesmo ano a equipe científica opina que não encontrou rastro de veneno. Em janeiro de 2015, a presidenta Michelle Bachelet designa advogados para que investiguem o caso no âmbito do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior. Assim, em 25 de março enviam a conclusão das suas investigações ao juiz Mario Carroza Espinosa, que a incorpora ao sigilo do processo.
Manuel Araya espera o veredicto. Sua última missão com Pablo Neruda está cumprida. Foi ouvido. Em 2016, já com 70 anos, saberá como tudo termina. Agora no Chile é primavera, como naqueles dias de 1973, mas ele sente frio e afirma: “Estou mais tranquilo do que nunca”.



quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Chile celebra o ano de Violeta Parra



Chile celebra o ano de Violeta Parra

País comemora o centenário do nascimento da cantora e compositora com a publicação de livros, concertos e exposições


Rocío Montes
Santiago do Chile 4 JAN 2017 - 11:42 COT

A chilena Violeta Parra (San Fabián de Alico, 1917; Santiago do Chile, 1967) viveu múltiplas vidas ao longo de seus 49 anos. Foi cantora e compositora, ofício pelo qual foi mais reconhecida, mas também compiladora de música folclórica e artista plástica. No centenário de seu nascimento – celebrado neste ano no Chile com a publicação de livros sobre sua obra, festivais, concertos, exposições e congressos internacionais –, o país a homenageia como uma criadora diversa e promove o reconhecimento de seu legado sob uma perspectiva integral. “Por que Violeta Parra transcende?”, pergunta-se a pesquisadora Paula Miranda, uma das maiores especialistas em sua figura. “Porque tem um trabalho com a palavra muito sofisticado. A dimensão poética está presente em toda sua obra”.iranda fala de Violeta Parra como uma das melhores poetas da música e ressalta que a discussão sobre a entrega do Nobel de Literatura a Bob Dylan no ano passado também poderia valer para a cantora e compositora chilena: “Existe muita poesia fora dos livros e a poesia, além do mais, era cantada em sua origem”. Miranda, doutora em Literatura e autora do estudo La Poesía de Violeta Parra, publicado em 2013, cita como exemplo um dos hinos mais conhecidos da criadora: “A poesia em sua máxima expressão é aquela que consegue transformar o mundo, e isso é o que Parra faz em Gracias a la Vida. Por um lado agradece e, por outro, tenta retribuir algo que recebeu da vida. Sua arte não é de adorno, nem de entretenimento, mas de reflexão e emoção. Acompanha as dores e os amores humanos”, diz a pesquisadora.

A força da palavra que marca toda a obra de Violeta Parra está registrada no livro Poesía, editado em 2016 pela Universidade de Valparaíso. Com organização, estudo e notas a cargo de Miranda, Parra é concebida como poeta, como foi reconhecida por contemporâneos seus como Pablo Neruda, Pablo De Rokha e o próprio Nicanor Parra, seu irmão mais velho. É uma das obras que começaram a ser publicadas no Chile por ocasião do seu centenário de nascimento. Nas próximas semanas, a jornalista especializada em música popular chilena Marisol García lançará a pesquisa Violeta en Sus Palabras (Ed. Diego Portales), que reúne 14 entrevistas desconhecidas que a artista concedeu no Chile, na Argentina e na Suíça.

“Violeta Parra nunca foi uma artista oficial”, observa García, também autora do livro Canción Valiente, sobre a história da música política chilena. “No Chile, ela teve um reconhecimento intermitente porque, em alguns momentos, o país foi injusto e tendencioso com relação à arte popular”.

110.000 VISITAS AO MUSEU DA CANTORA

Com um ano e três meses de funcionamento, o Museu Violeta Parra já recebeu 110.000 visitantes. Localizado no centro de Santiago, é o primeiro no país dedicado exclusivamente ao legado da artista.
Para comemorar os 100 anos de seu nascimento, o museu apresentará, em 2017, mais de 80 recitais, oferecerá cerca de 250 visitas guiadas e um programa de cinema, entre outras atividades.
“Encerramos esse bem-sucedido 2016 com muita energia, prontos para o próximo ano, em que renovaremos a oferta museológica e ampliaremos as atividades educativas e de extensão”, diz Cecilia García-Huidobro, diretora da instituição.
Está em preparação uma ambiciosa biografia sobre Parra, ainda sem data para publicação, e em fevereiro será lançado um livro sobre a influência da cultura mapuche na obra da artista, elemento essencial para entender melhor seu legado.

Influência mapuche

Escrita por Paula Miranda e pelas acadêmicas Allison Ramay e Elisa Loncon, a pesquisa, que será publicada pela Pehuén Editores, se baseia nas gravações de 40 canções tradicionais mapuches compiladas por Violeta Parra no sul do Chile entre 1957 e 1958. Desconhecidos até agora, os arquivos sonoros, que incluem suas conversas com cantores indígenas, se tornaram uma espécie de elo perdido.
Para comemorar o centenário de Parra, nascida em 4 de outubro de 1917, o Chile preparou uma extensa programação. “Homenagear Violeta Parra é um dever de nosso país para que as novas gerações tenham a oportunidade de conhecer sua visão de mundo, seu contundente aporte às artes e a força criadora de uma figura que foi capaz de transpor fronteiras”, explica o ministro da Cultura, Ernesto Ottone Ramírez. “Como Conselho da Cultura, trabalharemos em 2017 para que o Chile se vista de Violeta, seja inundado por suas canções e seu nome saia pelo mundo levando parte de nossa identidade a diferentes rincões, divulgando um legado cuja influência permanece viva entre artistas e cidadãos”.

À margem da agenda oficial, a população chilena também começa a se organizar espontaneamente em diferentes localidades para homenagear sua cantora mais internacional e mais querida.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Allende e Neruda, em tinta verde

Salvador Allende e Pablo Neruda

Allende e Neruda, em tinta verde

Um ensaio explora pela primeira vez a relação entre o ex-presidente e o Nobel chilenos e revela as cartas que trocaram entre 1969 e 1973




Eles provavelmente são duas das personalidades chilenas de maior destaque no século XX: o ex-presidente socialista Salvador Allendee o prêmio Nobel de Literatura Pablo Neruda, um militante comunista. Nascido com quatro anos de diferença — o escritor em 1904 e o mandatário em 1908 —, os dois foram dedicados homens de esquerda, que cultivaram por décadas uma relação pouco explorada, que só terminou com suas respectivas mortes: a de Allende no mesmo dia do Golpe de Estado de 1973, e a de Neruda, 12 dias depois, em uma clínica de Santiago. O ensaio Pablo Neruda y Salvador Allende – Una Amistad, una Historia (Pablo Neruda e Salvador Allende – Uma Amizade, uma História), que será lançado nesta semana em Santiago, é a primeira pesquisa em 41 anos sobre a relação dos dois, que se conheceram antes de 1939.
“Como é possível que dois homens da mesma geração, mas de origens sociais distintas — Allende da pequena burguesia e Neruda da classe média baixa —, chegassem a defender com tanta força uma mesma ideologia política nos anos 70?” é a pergunta central que o autor, o historiador chileno Abraham Quezada, tenta responder.


FUNDACIÓN ALLENDE
O texto está cheio de ricos detalhes e, em um de seus capítulos, apresenta 15 cartas trocadas pelos dois homens entre 1969 e 1973, a maioria delas inédita. Como a que Neruda escreveu em setembro de 1970, quando Allende ganhou as eleições presidenciais em sua quarta tentativa, e que denota uma intimidade entre eles. “Querido Salvador: Não fui cumprimentá-lo porque estive cumprimentando a mim mesmo. Suponho que tenhamos conseguido destruir a conspiração. Isso prova que é preciso bater neles com força. O momento já vai chegar”, escreveu o poeta de sua casa em Isla Negra, a cerca de 100 quilômetros de Santiago, com sua tradicional caneta de tinta verde. Nessa carta, o escritor comenta ao presidente eleito alguns detalhes sobre a cerimônia de posse: “Deveríamos convidar alguns intelectuais estrangeiros para a troca da faixa. Para isso, gostaria de conversar com você, mandar uma provável lista. Mas eu teria que fazer os convites desde já ou mandar alguém fazer isso. Eu posso convidar por telegrama”. Neruda também aproveitava para animar Allende a comemorarem juntos a festa da pátria chilena: “No dia 18, comeremos um cervo que Matilde vai preparar. Se você vier com Tencha, seria fantástico comemorar a vitória com um cervo. Abraços entre os abraços, Pablo”.

Querido Salvador: não fui cumprimentá-lo porque estive cumprimentando a mim mesmo
Quezada se especializou durante décadas no estudo da figura de Neruda e, sobretudo, em sua dimensão epistolar: “É a forma mais pura de autobiografia”, afirma. Doutor em Relações Internacionais e diplomata de carreira, escreveu oito livros sobre o Nobel e relata que a relação que cultivou com Allende era de franca amizade e cumplicidade política: “Com as cartas fica em evidência a proximidade entre os dois, não só pelos reconhecimentos, saudações e visitas, mas também porque estão atentos a aspectos privados um do outro, como as datas de aniversário e as de suas respectivas cônjuges. Esmeram-se por conhecer os estados de saúde, trocam opiniões, aconselham-se”. Tinham muitas coisas em comum, como “um profundo interesse social, o gosto pela comida e por coleções — Neruda de objetos e Allende de roupas —, o hábito de fazer a sesta. Apesar de não serem agraciados fisicamente, os dois também eram sedutores e homens de muitas mulheres”.
O presidente e o escritor, no entanto, também tiveram importantes divergências. A mais relevante ocorreu quando Neruda era o embaixador do Governo da Unidade Popular na França e pediu que seu amigo, o escritor Jorge Edwards, fosse transferido a Paris para colaborar com ele. Mas Edwards recentemente tinha sido expulso de Cuba, onde realizava trabalhos diplomáticos, e Fidel Castro pediu a Allende para expulsá-lo do serviço diplomático. Quezada relata que, diante da negativa do presidente em transferi-lo, Neruda ameaçou renunciar. O socialista finalmente cedeu: “Foi a única vez que o poeta deu o braço a torcer ao governante”. De qualquer forma, os conflitos não prejudicaram essa amizade, que teve como elemento-chave a simpatia que a esposa de Neruda tinha por Allende, Hortensia Bussi: “Não era fácil incorporar-se ao círculo íntimo nerudiano nesse momento, se não se contasse com a aprovação de Matilde”, destaca o autor.


FUNDACIÓN ALLENDE
Para escrever o livro, Quezada procurou documentos em diferentes lugares do mundo. O historiador destaca que a carta datada de setembro de 1970 estava entre os documentos que uma das filhas do presidente, Tati Allende, conseguiu salvar depois do Golpe e guardou durante seu exílio em Havana, antes de tirar a própria vida em 1977. O Governo cubano os conservou durante décadas e entre 2008 e 2009 voltaram ao Chile, à Fundação Allende. Desde então, conta Quezada, nunca tinham ido a público.


FUNDACIÓN ALLENDE
No próprio pacote de cartas salvas estava outra que foi escrita por Neruda como embaixador na França, cargo que assumiu no início de 1971. Nessa carta o escritor informava ao presidente de um escritório comercial ligado às autoridades democratas-cristãs anteriores que, segundo Neruda acreditava, uma urna eleitoral poderia ter sido escondida. “É altamente irregular e deve ser resolvido”, destaca o Nobel. O escrito reflete um fato pouco comum no serviço diplomático: que um embaixador escrevesse diretamente ao presidente, pulando toda a linha de comando da Chancelaria. Neruda concluía destacando que “esta carta é confidencial e para o uso pessoal do colega presidente”. “Seguem dois anexos importantes. Um grande abraço para Tencha e, para ti, meus melhores desejos. Não poderíamos ter um Presidente melhor. Pablo Neruda”. O pesquisador afirma que “o poeta costumava concluir suas missivas estimulando-o politicamente”.

Há uma carta importante, segundo o pesquisador, que Neruda escreveu em 3 de novembro de 1972 e na qual expõe as gestões feitas em relação ao embargo de cobre e o papel da justiça francesa. “O objetivo da carta é advertir de alguma maneira o perigo de uma atitude totalmente otimista diante das dificuldades que estamos vendo e sentindo a cada dia”, destaca Neruda, em um franco conselho político em relação ao presidente.
Mas o livro também contempla cartas do chefe de Estado para o poeta. Segundo Quezada, “a redação e o estilo epistolar de Allende são, em geral, de frases breves, mas emotivas”. “Quando escreve à mão, o faz com uma letra emaranhada, de difícil leitura, própria de um médico, ficando a impressão de que escrevia como falava”. Em junho de 1972, por exemplo, o chefe de Estado escreve uma carta que dá conta da preocupação do entorno político por o delicado estado de saúde de Neruda, radicado em Paris, sofrendo de câncer de próstata. “Penso que seria bom para vocês Isla Negra — o calor do povo, o Partido, a terra natal — e os amigos de sempre”, aconselhou-o Allende nessa carta escrita de próprio punho.

No dia 18, comeremos um cervo que Matilde vai preparar. Se você vier com Tencha, será fantástico comemorar a vitória com um cervo
Neruda finalmente voltou ao Chile em novembro de 1972. A última vez que se viram antes do Golpe de Estado foi em julho do ano seguinte, para o aniversário de 69 anos do poeta, seu último. Nessa ocasião, o presidente deu de presente uma fotografia em que aparecem juntos, dedicada com uma caneta de tinta verde, semelhante à que o poeta usava: “Para Matilde e Pablo com carinho e afeto do companheiro presidente”. Dois meses depois, os dois estavam mortos. Nenhum deles chegou a ser testemunha do destino obscuro do Chile nos 17 anos seguintes.




terça-feira, 16 de setembro de 2014

A última manhã de Salvador Allende


A última manhã de Salvador Allende

O diretor chileno Miguel Littín finaliza um filme sobre o ex-presidente, no momento em que se completam 41 anos desde sua morte durante o golpe de Estado



O ator Daniel Muñoz, como Allende, no filme.
O Salão Branco do Palácio de La Moneda no Chile estava cheio de fumaça e efeitos especiais de fogo no sábado passado. O cineasta chileno Miguel Littín (nascido em Palmilla, 1942), concluía as filmagens de Allende en su laberinto (Allende em seu labirinto) e queria que as cenas refletissem exatamente o que aconteceu 41 anos antes no Palácio presidencial, que foi atacado pelas Forças Armadas por volta das 12h e terminou parcialmente destruído pelo fogo. O filme vai mostrar as últimas sete horas de vida do presidente socialista Salvador Allende, sua última manhã em vida, desde que se levantou até sua morte durante o golpe de Estado de 1973. E vai incluir detalhes sutis, como o fato de que em dois momentos, no carro e em seu gabinete, Allende cantou trechos de Tu nombre me sabe a hierba, canção de Joan Manuel Serrat com versos de Antonio Machado.
Essa informação foi passada a Littín por Miria Contreras, “La Payita”, secretária e colaboradora estreita de Allende, que compartilhou com ele as últimas horas no Palácio. Um dos cineastas mais reconhecidos do Chile, colaborador de Allende em suas campanhas e com o Governo em assuntos de imagem e televisão, Miguel Littín, ao longo de quatro décadas, conversou com dezenas de pessoas do círculo íntimo do presidente e que o acompanharam naquela manhã. Depois da revisão bibliográfica – “li todos os livros e não deixei de ouvir nenhuma voz”, diz Littín –, ele formou um olhar pessoal sobre o que aconteceu em La Moneda antes do bombardeio. “Não é um documentário, mas mais precisamente uma reconstrução ficcional do que aconteceu, com uma interpretação, um fato que torna o filme mais complexo”, aponta o diretor.
O filme foi rodado na Venezuela e no Chile em 2014, e seu relato central, Littín adianta, é sobre a decisão de Allende de lutar e morrer “defendendo a honra dos chilenos e dos democratas”. Justamente em relação a esse ponto o diretor tem uma visão diferente à da história, a que foi determinada recentemente pelos tribunais: ele considera que não fica claro se Allende cometeu suicídio. Esse não é o núcleo de seu filme. “Vou apresentar todos os elementos para que o espectador possa deduzir o que aconteceu”, ele diz, mas coloca em dúvida a sentença da Justiça, que em janeiro ratificou que o médico socialista se suicidou. “Digo isso com muita responsabilidade: o juiz Miguel Carroza não investigou os fatos exaustivamente. Na redação do veredicto, ele diz que Allende entrou no Salão Independência e fechou a porta; em seguida o juiz começou a contar o que teria acontecido, como se fosse Deus. Como poderia saber, se nunca ninguém entrou?”, Littín se pergunta. “É impossível uma pessoa se suicidar duas vezes, porque o corpo foi encontrado com disparos diferentes.”
Não é a primeira vez que Littín faz um filme sobre Salvador Allende. Em 1970, o ano que em que começaram os 1.000 dias da Unidade Popular, ele lançou o documentário Compañero, presidente (Companheiro, presidente). Depois, em 1986, já exilado na Espanha, realizou para o canal Televisión Española um novo documentário, Allende, el tiempo de la historia (Allende, o tempo da história), que incluía imagens de sua viagem ao Chile como clandestino. Para conseguir entrar no país durante a ditadura e poder filmar, o cineasta teve que se fazer passar por empresário uruguaio. Mas o roteiro definitivo de Allende en su laberinto(Alende em seu labirinto), que vai estrear no Chile em novembro e tem atores locais importantes em seu elenco, levou décadas para se concretizar. Em meados dos anos 1970, depois do golpe de Estado, da detenção e no meio do exílio, Littín redigiu um texto que acabou jogando fora, “porque a perspectiva era emocional e imediata”.

Littín acha que não está claro se  Allende cometeu suicídio
Mas o que Allende fez em sua última manhã? “Contou piadas, tomou decisões, despediu-se, recordou trechos de sua história e deixou o legado de seu discurso feito em La Moneda”, diz Littín. Através da reconstrução dessas sete horas, explica, é possível explorar a vida inteira do ex-presidente. E, passados 41 anos do golpe de Estado, Littín afirma que a figura de Allende continua muito presente: “O Chile seria outro país sem Allende, derrotado e de cabeça baixa. No Chilen, a utopia e o romantismo se chamam Allende, e isso é reconhecido pelas pessoas comuns. Esse é seu legado.”