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quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Animus / Anima / “Esse outro estranho que me habita...” (II)


Animus/Anima

“Esse outro estranho que me habita...”

(II)

LUCÉLIA BRAGHINI
22 DEZEMBRO 2015
A fim de que o leitor possa se situar adequadamente, sugiro que leia a parte introdutória do meu último artigo: “Animus/Anima: esse outro estranho que me habita... (1),” visto que este é uma continuação daquele.
Lembrando que o objeto do presente artigo trata da relação do homem com sua anima, retomaremos a seguir as palavras de Jung sobre a anima:

“Cada homem carrega dentro de si a imagem eterna da mulher, não a imagem desta ou daquela mulher em particular, mas uma imagem definitiva do feminino. Esta imagem é fundamentalmente inconsciente, um fator hereditário de origem primordial incrustado no sistema orgânico vital do homem, um imprint de todas as experiências ancestrais do ser feminino, um depósito de todas as impressões deixadas pela mulher - em suma, um sistema herdado de adaptação psíquica.” (JUNG, 1981).
Em sua manifestação individual, o caráter da anima, via de regra adota a forma da mãe, a qual corresponde à primeira experiência que o homem tem da mulher com todas as sensações, emoções e sentimentos que isto envolve, permanecendo num nível pré-consciente. FRANZ (1995) afirma que a mãe marca não só os aspectos femininos do filho, como também a imagem que ele cria da mulher - suas aspirações, exigências e temores face às mulheres. Essa imagem, vaga e mítica, que oscila entre a deusa e a prostituta, evolui ao contato com as mulheres reais que encontra ou ama.
As manifestações mais frequentes da anima, todavia, tomam a forma de fantasias eróticas, nutridas através de filmes, romances e espetáculos, geralmente de caráter sensual. Todos esses aspectos da anima podem ser projetados, visto que são inconscientes, de modo que apareçam ante o homem como as qualidades de alguma mulher determinada. O confronto com a anima favorece o desenvolvimento psicológico, pois traz consigo a possibilidade de integrar aspectos inconscientes e obscuros da personalidade à vida consciente (JUNG et al., 1969).
Referente à pesquisa prática realizada, para os fins deste artigo serão apresentados dois casos de homens - Arquimedes e Diógenes[1] - que se submeteram à aplicação da técnica de imaginação ativa acompanhada.
Para Arquimedes, a figura feminina tomou a forma de uma “linda bailarina deslizando sozinha num palco de gelo”. Esta imagem parece ser uma expressão genuína de sua anima, servindo-lhe de guia interior - psicopompo [2] - em sua caminhada rumo ao self e ao processo de individuação.
A dança da bailarina não possuía uma finalidade artística, mas simplesmente a de sintonizar-se com os ritmos do universo, executando com perfeição o “balé da vida”, observou Arquimedes. A dança, segundo CIRLOT (1984), é a imagem corporificada de um processo, devir ou transcurso. Assim aparece com este significado na doutrina hindu a dança de Shiva em seu papel de Natarâjâ - rei da dança cósmica, união do espaço e do tempo na evolução, o que se coaduna perfeitamente ao balé da vida a que Arquimedes se refere.
GONDA (1976) reitera o acima exposto ao afirmar que Shiva é o rei dos dançarinos, atores e musicistas, e como tal é ainda hoje venerado em diferentes partes da Índia. Dançando o devir da vida no universo e suas criaturas, o deus é também seu primordial e eterno propulsor. Qualquer que seja a origem de suas várias danças, elas são uma imagem extremamente clara de seu ser e sua função. Sua dança selvagem é tão graciosa, que uma famosa beleza é conhecida por possuí-lo, incorporando ao tom alegre e brincalhão de sua execução, o tremor e a agitação da serpente. Além disso, a dança é uma completa e inteligível parte do culto de deus, e serve para legitimá-lo no cumprimento de suas funções.
Arquimedes acrescenta que ao executar a sua dança, a bailarina sente-se em paz “como se estivesse no ventre de sua mãe”, isto é, tivesse reconectado sua ligação com a Terra-Mãe, a fonte primeva e arcaica de sua feminilidade. Segundo CHEVALIER & GHEERBRANT (1996), o ventre, símbolo da mãe, reflete particularmente uma necessidade de ternura e proteção; seu calor facilita todas as transformações, das quais é a sede por excelência, mas é preciso que tenha para cada um e a cada momento de sua evolução, o grau e a intensidade adequados. Neste caso, o grau e a intensidade para Arquimedes estão na suavidade e na leveza do bailado executado pela bailarina, que na condição de psicopompo, conhece todos os mistérios para iniciá-lo em sua feminilidade inconsciente e conduzi-lo ao self.
Arquimedes permanece observando; só ele pode ver a bailarina, o que sugere que o mesmo permanece oculto para a imagem ou não deseja ser visto. Segundo EMMA JUNG (1995), quando um conteúdo do inconsciente vem à superfície (no caso a anima de Arquimedes, personificada na imagem da bailarina), ele está tão pouco coordenado com o eu consciente que torna a mergulhar na primeira oportunidade. Que seja preciso tão pouco para que isto ocorra mostra como tais conteúdos são frágeis e voláteis, afirma a autora (daí o cuidado de nosso protagonista por não ser visto). Esta ideia é corroborada também pelo fato de Arquimedes ter associado logo em seguida a imagem da bailarina à figura de um anjo, por si mesma etérea, volátil e translúcida.
Na alquimia o anjo simboliza a sublimação, a ascensão de um princípio volátil (espiritual). Os anjos aparecem na iconografia artística desde a origem da cultura, no quarto milênio antes de Cristo, confundindo-se com as divindades aladas. A arte gótica expressou em numerosíssimas imagens prodigiosas o aspecto protetor e sublime do anjo, enquanto a românica acentuava melhor seu caráter supraterrenal (CIRLOT, 1984).
Outros ainda vêem nos anjos símbolos das funções divinas, símbolos das relações de Deus com as criaturas ou, ao contrário, símbolos de funções humanas sublimadas ou de aspirações insatisfeitas e impossíveis. De modo ainda mais amplo, o anjo simboliza a criatura na qual já surge realizada a transformação do visível em invisível (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996).
Na fantasia de Arquimedes, a bailarina continua dançando como se quisesse ser uma só com o cosmos; ela o faz indefinidamente sem interrupção, de forma a manifestar o aspecto da dança que encarna a energia eterna: o círculo de chamas que circunda o Shiva dançante da iconografia hindu. Sua dança a faz sentir-se “realizada”, isto é, tendo alcançado a unidade com o cosmos, vibra agora em consonância com ele, de forma que pode sentir o universo como sendo o próprio paraíso, tal como afirma Arquimedes.
Desta forma, a anima de Arquimedes, com sua dança, levou-o a aproximar-se da instância do numinoso, o que lhe possibilitou alcançar indiretamente as dimensões dos Jardins do Éden. Segundo CHEVALIER & GHEERBRANT (1996), o paraíso representa o desejo de superar de uma maneira natural a condição humana e de recuperar a condição divina. O retorno ao estado edênico é, com efeito, a obtenção de um estado central - o self - a partir do qual se pode fazer simbolicamente a ascensão espiritual ao longo do eixo terra-céu.
Quanto a Diógenes, a imagem da anima personificou-se na forma de uma flor, mais especificamente uma orquídea. Ele relata que a mesma é de cor arroxeada e está meio escondida na ponta de uma árvore, bem no alto. Há outras flores desta espécie em outras árvores, mas nesta ela é única, ressalta. Esta dificuldade de acesso e de visibilidade, assim como seu caráter singular confirmam a noção popular de que a orquídea se trata de uma flor rara e incomum, portanto valiosa (a anima de Diógenes).
Segundo Cirlot (1984), no simbolismo geral da flor pode se considerar dois aspectos: - a flor em sua essência; - a flor em sua forma. Por sua natureza, a flor é símbolo da fugacidade das coisas, da primavera e da beleza. Considerando-se a sua forma, corresponde a uma imagem do centro e, por conseguinte, uma imagem arquetípica da alma.
Jung (1987) assevera que a linguagem das flores revela uma relação de ordem simbólica que tem por meta realizar o processo de individuação. Segundo Chevalier & Gheerbrant (1996), de maneira geral a flor é símbolo do princípio passivo. O simbolismo tântrico taoísta da Flor de Ouro revela o alcance de um estado espiritual: a floração é o resultado de uma alquimia interior, da união da essência e do sopro, da água e do fogo; é também o retorno ao centro, à unidade, ao estado primordial. No caso das lendas celtas, a flor parece ser um símbolo não de uma versatilidade que seria própria da mulher, mas da instabilidade essencial da criatura, voltada a uma perpétua evolução e, em especial, símbolo do caráter fugidio da beleza.
As orquídeas, especificamente, muito apreciadas e inigualáveis, são comumente conhecidas como flores exóticas, produto de estufas e de climas quentes, mas existem muitas espécies menores que crescem nos campos como flores silvestres. Todas elas têm manchas, que são sua marca peculiar de beleza. Como diferentes subespécies têm flores variadas de formatos curiosos, a orquídea foi chamada de língua-de-serpente, dedos-de-mortos, chifres-de-carneiro, além de ser associada à fêmea do ganso com sua ninhada, devido à maneira como as flores se agrupam em torno do talo (Pickles, 1992).
Na China antiga, as orquídeas eram associadas às festas da primavera, onde eram utilizadas para expulsão de influências perniciosas, sendo a mais ameaçadora, a esterilidade. A orquídea, como seu nome indica, é um símbolo de fecundação, sendo que também na China favorece a geração e é uma garantia de paternidade. A beleza da flor faz dela, entretanto, um símbolo de perfeição e de pureza espirituais (Chevalier & Gheerbrant, 1996).
Diógenes permanece embaixo da árvore admirando à distância a beleza da flor, como quem anseia o estado supraterrenal e sublime do Ser perfeito, mas que no momento, é inacessível para si. Ele cobiça para si a orquídea, como quem ousa possuir, num passe de mágica, atributos que se lhe manifestariam espontaneamente somente com o lapidar paciente do espírito através dos anos.
Num repente e sem pestanejar, Diógenes resolve subir na árvore a fim de tomar para si objeto tão valioso. Nosso protagonista faz isto sem dificuldade e colhe não só a flor, mas toda a planta, e a leva consigo. Desta forma, Diógenes precisou passar pela árvore, galgá-la, para enfim alcançar sua tão cobiçada flor. Referindo-se ao simbolismo da árvore, Chevalier & Gheerbrant (1996) reputam-na como símbolo da vida, em perpétua evolução e em ascensão ao céu, evocando todo o simbolismo da verticalidade. Por outro lado, serve também para simbolizar o aspecto cíclico da evolução cósmica: morte e regeneração. Sobretudo as frondosas evocam um ciclo, pois se despojam e tornam a se recobrir de folhas todos os anos. A árvore põe igualmente em comunicação os três níveis do cosmos: o subterrâneo, através de suas raízes sempre a explorar as profundezas onde se enterram; a superfície da terra, através de seu tronco e de seus galhos inferiores; as alturas, por meio de seus galhos superiores e de seu cimo atraídos pela luz do céu. Desta forma, pelo fato de suas raízes mergulharem no solo e de seus galhos se elevarem para o céu, a árvore é universalmente considerada como símbolo das relações que se estabelecem entre a terra e o céu. A árvore foi, pois, o instrumento ou o caminho de que se valeu Diógenes para ultrapassar as esferas ctonianas, que o mantinham prisioneiro às imperfeições e aos limites de sua condição humana, para desta forma ascender às alturas e colher então a preciosa flor, símbolo do que há de mais belo, exótico e perfeito no universo. Intuitivamente, Diógenes segue as pegadas do caminho de seu processo de individuação.
Já em sua casa, ele acondiciona a planta num vaso, e somente para seu deleite, dispensa-lhe todos os cuidados necessários, expondo-a à influência revitalizadora dos raios solares, regando-a com regularidade, e ocasionalmente expondo-a à ação regeneradora da chuva. Estando sempre atento às suas necessidades, Diógenes cuida para que a flor mais preciosa e bela, agora sob seu poder, mantenha-se sempre viçosa e bela. A orquídea parece ter se aclimatado bem à nova casa e ao vaso, diz ele.
Tendo-a somente para o regalo de seus olhos, Diógenes parece encantado contemplando a beleza da flor, pois a mesma parece-lhe muito distinta das demais orquídeas. Ele afirma que o que torna a orquídea tão especial é “seu modo de ser”, isto é, sua singularidade, sua individualidade. Enlevado e magnetizado, Diógenes começa então a tocá-la e a acariciá-la. A planta responde positivamente tornando-se mais bonita e atraente. Nesse ponto já se pode ver uma planta com sentimentos humanos, tornando possível engendrar-se uma relação de intimidade e de cumplicidade de um para com o outro.
Todos estes elementos corroboram que uma flor tão peculiar, pela qual Diógenes se sente impelido a viver todas essas peripécias, trata-se de uma expressão de sua anima. A orquídea permanece agora sua fonte de eterna inspiração e de reabastecimento de energias, um arauto, sempre a lembrá-lo do seu “propósito último”.
Nem todos os homens conseguem estabelecer contato com sua anima, tal como ocorreu com Arquimedes e Diógenes, assim como nem todas as mulheres conseguem ativar a ponte animus/anima. Todavia, quando isso acontece, sua ação é altamente terapêutica.
Neste caso, cada qual pode perguntar a si próprio: “Terei eu me conectado ao meu propósito último?”

Notas

[1] Os nomes dos participantes são fictícios a fim de preservar suas identidades.

[2] SAMUELS et al. (1988) refere-se ao psicopompo como a figura que guia a alma em ocasiões de iniciação e transição. A palavra também era utilizada por Jung para descrever a função da anima e do animus, isto é, conectar uma pessoa à percepção de seu “propósito último”, sua “decisiva vocação”, em termos psicológicos, atuando como um intermediário ligando o ego e o inconsciente (self).

Referências

CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. - Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1996. 996 p.
CIRLOT, J.E. - Dicionário de símbolos. São Paulo, Editora Moraes, 1984. 614 p.
FRANZ, M.L. von - O feminino nos contos de fadas. Petrópolis, Editora Vozes, 1995.
GONDA, J. - Visnuism and sivaism: a comparison. London, The Athlone Press University of London, 1976.
JUNG, C.G. - Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. In: Obras completas de Carl Gustav Jung. Petrópolis, Editora Vozes, 1987. vol. XVI, t. II, 220 p.
JUNG, C.G. - A prática da psicoterapia. In: Obras completas de Carl Gustav Jung. Petrópolis, Editora Vozes, 1981, vol. XVI, t.I. 128 p.
JUNG, C.G.; VON FRANZ, M.L.; HENDERSON, J.L.; JACOBI, J.; JAFFÉ, A. - El hombre y sus simbolos. Madrid, Aguilar Ediciones, 1969.
JUNG, E. - Animus e Anima. São Paulo, Editora Cultrix, 1995. 112 p.
PICKLES, S. - A linguagem das flores. São Paulo, Editora Melhoramentos, 1992. 111 p.
SAMUELS, A.; SHORTER, B.; PLAUT, F. - Dicionário crítico de análise junguiana. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988. 236 p.




terça-feira, 12 de novembro de 2019

Animus / Anima / “Esse outro estranho que me habita...” (I)

Foto de Howard Schatz


Animus/Anima

“Esse outro estranho que me habita...”

(I)

LUCÉLIA BRAGHINI
9 NOVEMBRO 2015

Estudos antropológicos já evidenciaram que homens e mulheres milenarmente têm sua existência definida previamente por uma ordem social patriarcal. Educados como rivais e estranhos entre si, passam a vida em conflito ao mesmo tempo em que projetam um no outro a imagem do companheiro ideal e se relacionam com esta imagem como se fosse a própria pessoa. Espera-se que todas as necessidades, ansiedades e desejos sejam satisfeitos e aplacados pelo outro. No entanto, quando o (a) parceiro (a) não satisfaz mais as expectativas, o que fatalmente acontece, pois não é possível sempre ser um mero ator no script do outro, este, antes tão idealizado e amado, passa a ser odiado intensamente e transforma-se no monstro aterrador, na terrível megera, no mais cruel dos inimigos. Contudo, com este inimigo se compartilha o leito, se tem filhos comuns e dele se é, na maioria das vezes, completamente dependente. Tem-se assim delineada uma relação altamente ambígua, permeada por amor e ódio intensos, onde, sobretudo o outro se mantém desconhecido no que tange à sua verdadeira identidade, padrão ainda bastante comum na sociedade contemporânea, embora minimizado por diferenças de grau.
Embora haja diferenças básicas entre homens e mulheres, todos têm traços masculinos e femininos. Biologicamente cada um possui tanto genes masculinos quanto femininos, sendo que os dominantes são responsáveis por diferenças fisiológicas. Psicologicamente coexistem ambos os sexos: à parte feminina do homem, Jung deu o nome de anima, e à parte masculina da mulher, animus.
São suas palavras sobre a anima:
Cada homem carrega dentro de si a imagem eterna da mulher, não a imagem desta ou daquela mulher em particular, mas uma imagem definitiva do feminino. Esta imagem é fundamentalmente inconsciente, um fator hereditário de origem primordial incrustado no sistema orgânico vital do homem, um “imprint” de todas as experiências ancestrais do ser feminino, um depósito de todas as impressões deixadas pela mulher - em suma, um sistema herdado de adaptação psíquica” (JUNG, 1981).
Quanto ao animus, afirma Jung:
“O animus corresponde ao sedimento de todas as experiências ancestrais da mulher em relação ao homem, tendo um caráter criativo e engendrador, não segundo as formas de criação masculina, mas produzindo “a palavra que engendra.” “Assim como o homem faz brotar sua obra, criatura plena de seu feminino interior, assim também o masculino interior da mulher procria germes criadores, capazes de fecundar o feminino do homem” (JUNG, 1978, p. 199).
Segundo JUNG (1978) o animus não se apresenta como uma única pessoa, mas personifica-se em uma “assembleia de pais e outras autoridades,” que formam uma espécie de tribunal e formulam opiniões incontestáveis, racionais e muitas vezes, condenatórias. Essas opiniões constituem-se de palavras e conceitos reunidos, talvez inconscientemente, desde a infância numa espécie de “cânone da verdade.”
JUNG et al. (1969) afirma que da mesma forma que a anima, o animus também é uma imagem inata “de homens” e possui aspectos bons e maus. O animus não aparece, no entanto, com freqüência na forma de fantasias eróticas; é mais apto para tomar a forma de “convicção sagrada oculta.”
animus é moldado basicamente pelo pai da mulher através de um matiz especial de convicções indiscutíveis, que não incluem a realidade pessoal daquela. Não se pode contradizer a opinião de um animus porque em geral só ele tem razão. Psicologicamente trata-se de uma forma particular do animus que atrai as mulheres, excluindo-as de todas as relações humanas e todos os contatos com homens autênticos.
Por outro lado, o animus também tem um lado muito valioso, podendo construir uma ponte até o si mesmo, mediante sua atividade criadora. Apesar do tempo requerido e de todo sofrimento que o enfrentamento do animus possa causar à mulher, este pode se converter num companheiro interior, dotando-a de atributos masculinos tais como iniciativa, espírito empreendedor, objetividade e sabedoria espiritual.
Talvez devido à unilateralidade com que esses elementos sejam vividos em sociedade - a mulher expressando apenas os atributos femininos e o homem, os masculinos - o que mais se encontra é que a outra parte (a imagem masculina na mulher e vice-versa) esteja reprimida. Visto que esta imagem é inconsciente, ela será projetada também, inconscientemente, na pessoa amada.
Quando o animus permanece inconsciente - o que acontece até um nível relativamente elevado de maturidade psicológica - suas qualidades não podem ser utilizadas de modo construtivo pela mulher; mais que isto, pode resultar em uma estranha passividade e embotamento afetivo, ou numa profunda insegurança que pode conduzir a uma sensação de menos-valia. Em contrapartida, o homem normalmente reprime sua anima porque se sente pouco confortável com o domínio irracional do instinto e da emoção.
Falando desse difícil relacionamento que o homem e a mulher mantêm com sua anima e animus, respectivamente, assim como com a anima ou o animus do parceiro, FRANZ (1995) afirma que a mulher real exerce uma influência sobre a anima do homem e, inversamente, a anima do homem influencia a mulher.
A autora explica que a mulher pode ter uma influência educadora e transformadora sobre o Eros do homem. Por sua vez, ela também sofre a influência da anima do homem. Uma mulher, ao observar que o homem que ama fica chocado com seu comportamento espontâneo, porque este não corresponde à imagem que ele tem da mulher, tenderá a adaptar-se ao que deseja o parceiro por medo de perdê-lo. Consequentemente, ela perde sua autonomia e passa a ter consciência de si enquanto espelho dos desejos do outro.
JUNG (1978) afirma que a anima e o animus agem como catalisadores para o relacionamento quando mutuamente projetados em pessoas do sexo oposto. Assim, o homem, em sua escolha amorosa sente-se tentado a conquistar a mulher que melhor corresponda à sua própria feminilidade inconsciente. Quando na convivência o relacionamento se desgasta, isto permite que se veja a outra pessoa como ela realmente é, o que pode despertar o ódio e fazer com que se sinta enganado ou traído.
Segundo ULANOV & ULANOV (1994), a figura da anima/animus apresenta-se ela mesma ao ego como o “outro”, ao mesmo tempo familiar e estranho. Esta “pessoa” é humana, mas fala de um ponto de vista sexual oposto ao da própria pessoa. A contra-sexualidade, seja ela como anima ou animus, forma uma ‘ponte’ entre o ego, centro da identidade consciente, e o self, centro da psique total, ambos, consciente (ego) e inconsciente (self). As funções da ponte anima/animus são no sentido de conectar o ego ao self, não de fundi-los ou amalgamá-los. Quando ela se encontra ativada, anima e animus movem-se em direção ao ego, para o confronto com as demandas do self, visando trazê-lo para os domínios do ego.
Para os fins deste artigo, será examinado na prática como o animus se apresenta na psique das mulheres. Para tanto serão apresentados dois casos ilustrativos - Ester e Paloma[1] - que contribuíram para um estudo realizado pela autora sobre as identidades masculina e feminina, tendo estas se submetido à aplicação da técnica de imaginação ativa acompanhada[2].
Assim, o animus para Ester tomou a forma de um animal, mais especificamente um urso. Tentando caracterizar o animal, Ester afirma ser o mesmo “bem forte e bravo”, e acrescenta que não se pode aproximar dele porque se corre o risco de ser ferido (o urso é, portanto, perigoso). Na verdade, Ester afirma tratar-se de um animal muito agressivo, podendo inclusive “machucar a si próprio”.
Na mitologia grega, o urso acompanha Ártemis, divindade lunar de ritos cruéis. O animal lunar encarna uma das duas faces da dialética ligada ao mito lunar: pode ser monstro ou vítima, sacrificador ou sacrificado. Como toda hierofania lunar, o urso tem relação com o instinto. Dada sua força, é considerado como símbolo do aspecto perigoso do inconsciente (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996).
Continuando, Ester afirma que quem deseja aproximar-se do animal não consegue fazê-lo, pois o urso pressupõe que o visitante já vem para lhe fazer mal, então de imediato já ataca para se defender, ignorando as verdadeiras e reais intenções do elemento estranho. Na verdade, ele ataca “porque seu medo é grande”, diz ela, e teme ser considerado fraco pelo outro. Ester acrescenta que, considerando as dimensões e a aparência do urso, ele parece ser muito forte, mas intimamente o animal também tem medo, isto é, ele se sente frágil, e tenta supercompensar e ocultar sua fragilidade valendo-se de sua compleição avantajada e sua força física.
Como todas as grandes caças, o urso faz parte dos símbolos do inconsciente ctônico: lunar e, portanto, noturno, ele está ligado às paisagens internas da terra-mãe. Poderoso, violento, perigoso, incontrolável como uma força primitiva, foi tradicionalmente o emblema da crueldade, da selvageria, da brutalidade. Contudo, outro aspecto do símbolo aparece: o urso pode ser, em certa medida, domesticado: dança e é hábil com uma bola. Pode-se atraí-lo com mel, pelo que é apaixonado. Isto sugere o contraste entre a leveza da abelha, cuja substância ele ama, a da dançarina, cujo passo ele imita, e sua lentidão nativa. Simbolizaria em suma, as forças elementares suscetíveis de evolução progressiva, mas capazes também de terríveis regressões (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996).
Em seguida, Ester faz referência a “um mal-estar” que está sentindo: suas mãos de repente se tornaram gélidas. Ao tentar situar a origem desta sensação, percebe que o mal-estar, na verdade, é do urso. Ele está sentindo medo. Apesar de constatar que o animal parece necessitar de ajuda, inicialmente Ester apenas observa. Ela sente desejo de acolhê-lo, de tranquilizá-lo, pois percebe que ele está nervoso, mas reluta, pois está temerosa de aproximar-se e ser atacada. Quando finalmente vence seu próprio medo e se aproxima, o urso, contrariamente às suas expectativas, recebe-a bem. Ele parece ter gostado de sua presença junto a si, e finalmente se acalma.
Agora “aquele bicho grandão e forte está todo encolhidinho”, diz Ester, e ela própria o está aconchegando. Paradoxalmente, “o bicho grandão e forte” é frágil e necessita ser protegido (são diferentes facetas da personalidade da própria Ester).
A relação entre ambos se dá através de troca de carinho, de aconchego, de proteção, o que beneficia a ambos, pois atende ao desejo infantil de ser acariciado e mimado, tal como quando se recebe os cuidados de uma mãe (a atitude do sujeito em relação ao urso sugere uma postura maternal). Assim, o urso, antes agressivo, tornou-se dócil quando encontrou alguém que não só percebeu como entendeu o seu medo, a sua fragilidade interna, e lhe ‘deu colo’. Procedeu-se desta forma à domesticação do urso, descrita anteriormente por CHEVALIER & GHEERBRANT (1996), sendo que a ferocidade transmutou-se em docilidade e ternura. Além disso, Ester venceu o seu próprio medo para aproximar-se e aconchegar-se ao urso. Ela sente o contato com o corpo do urso no seu próprio corpo: o calor que dele emana, seus “pelos quentinhos” e aconchegantes. Isto, além de profunda intimidade, sugere um estado nirvânico de entrega, união e cumplicidade com o outro. Lembra ainda as qualidades do princípio feminino, que estão ligadas à fertilidade, à receptividade, ao acolhimento, além de ser nutridor e propiciador do crescimento (CAVALCANTI, 1987).
Finalmente, Ester expressou desta forma o aspecto perigoso, violento, ameaçador, do qual frequentemente se reveste o masculino na cultura patriarcal, mas cuja força ostensiva oculta um núcleo frágil e regressivo que, quando percebido e acolhido, pode se manifestar com ternura e docilidade. A arma para domar o urso está exatamente na continência transformadora propiciada pelo princípio feminino. Como uma manifestação do animus de Ester, o urso é parte integrante de sua personalidade e, como tal, também é capaz de promover automutilações (possui, portanto, um potencial autodestrutivo). Contudo, quando domado e aconchegado, sente-se seguro para expressar sua fragilidade interna e sua docilidade. Isto significa que se não aceito e integrado à consciência, o animus pode se tornar perigoso e destrutivo para a própria pessoa.
Em contrapartida, para Paloma o animus personificou-se na forma de um homem das cavernas, que lhe despertou de imediato, o riso. Paloma parece se divertir ao se defrontar com a figura, a qual lhe parece, no mínimo, curiosa. O acessório que complementa o quadro do homem das cavernas, o tacape que ele traz em uma das mãos, sugere uma representação pictórica de caráter burlesco e caricatural, o que justifica o riso de Paloma e confere um tom de deboche ao quadro.
O homem das cavernas está num plano inferior da caverna, enquanto Paloma o observa de um patamar superior. Ele está parado segurando o referido bastão, cuja parte superior está apoiada em seu ombro, diz ela. Na verdade, o homem das cavernas está absolutamente imóvel, não movimenta um músculo, ao mesmo tempo em que sua fisionomia não transparece nenhuma emoção positiva ou negativa (não está sorrindo, nem chorando, diz ela). Paloma sabe que está vivo apenas porque pisca. Somente seu cabelo “bagunçado” é movimentado pelo vento.
Este quadro (que lembra a esquizofrenia catatônica) sugere o estado de petrificação, que conforme CIRLOT (1984) trata-se dos aspectos contrários e particulares dos movimentos da evolução e involução; petrificar é deter, encerrar, paralisar. É fácil supor como neste caso específico, o animus de Paloma - ficou estagnado, detido ainda na sua forma rude, grotesca e primitiva do momento em que foi criado, não acompanhando os passos da civilização, muito menos evoluindo para formas mais sublimadas, sutis e espiritualizadas do Ser. O homem das cavernas com seu tacape está mais próximo do animal, do instintivo e das formas mais inferiores de vida, do que das esferas supra-terrenais do cosmos.
Observando-o do alto do seu patamar, Paloma parece considerá-lo com escárnio e desprezo, pois pensa consigo mesma: “Pobre de espírito!”, denotando com isso um tom pejorativo para qualificar o masculino: um ser para ela ainda muito primitivo e rude, destituído de potencial ou qualidades de ordem superior, situação que o torna prisioneiro das forças telúricas. Além disso, fica evidente a condição de superioridade, e até mesmo certa arrogância com que ela se coloca em relação ao homem das cavernas, seu animus, uma parte de si mesma, da qual se dissociou.
Desta forma, Paloma não tenta se aproximar ou estabelecer qualquer forma de comunicação ou contato; a distância em que está é relativamente confortável, por isso, também ela permanece parada, olhando de cima. Segundo CIRLOT (1984) olhar, ou simplesmente ver, identifica-se com conhecer (saber, mas também possuir). Por outro lado, o olhar é como os dentes, a barreira defensiva do indivíduo contra o mundo circundante; as torres e a muralha, respectivamente, da “cidade interior”.
Finalmente, o tempo passa sem que haja qualquer sinal de vida. Nosso personagem continua totalmente parado e imóvel. A cena parece ter sido ‘congelada’. Na verdade, ele está assim “desde o aparecimento do homem”, afirma Paloma, isto é, desde o momento da sua criação. Isto sugere uma representação de um personagem que remete a um determinado tipo de homem, uma expressão simbólica arquetípica de um masculino ainda primitivo e rude.
Com tudo isso, Paloma parece muito distante de uma possível integração dos aspectos obscuros de seu lado masculino, pois tendo sido menosprezado, ridicularizado e dissociado, seu animus tende a permanecer relegado aos conteúdos da sombra e ser projetado no primeiro homem que incorporar atributos como tendência à inércia, à passividade e a pouca inteligência (limítrofe). Desta forma, enquanto seu personagem está parado e imóvel, Paloma também está estagnada no seu desenvolvimento emocional.
É flagrante a forma como Paloma e Ester divergem entre si na abordagem de seu animus. Enquanto este é para Paloma uma primitiva e grotesca caricatura da figura masculina (um homem das cavernas), que ela parece menosprezar e ridicularizar, Ester oferece seu regaço para aconchegar o urso, muito embora o temesse inicialmente, e vivencia com ele um encontro pleno e vivificante, delineando um quadro de perfeita harmonia e união de opostos. Depreendem-se, na postura de Paloma cuja figura caricaturizada parece encobrir a face de seu verdadeiro animus, supostos sentimentos de ódio e ressentimento em relação à figura masculina.
FRANZ (1995) ressalta que o animus não integrado é uma espécie de homem primitivo, assim como a anima não integrada é uma espécie de mulher primitiva que faz demais, depois fica prostrada.
JUNG (1982) afirma que é bem mais difícil conscientizar-se das próprias projeções do par animus - anima, do que reconhecer seu lado sombrio. Só se pode conhecer a realidade do animus e da anima mediante a relação com o sexo oposto, porque somente nesta relação a projeção se torna eficaz.
Enfim, reconhecer “o outro estranho” que nos habita, lhe dar vez e voz é uma etapa importante do desenvolvimento psicológico, pois implica em aceitá-lo como parte ativa de si que, integrada, atua promovendo o crescimento, agregando novas cores à personalidade, tornando-nos mais fortes, inteiros e criativos.
Sobre a anima e os homens, é assunto para o próximo artigo.

Notas

[1] Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios.

[2]Segundo Kast (1997) as condições básicas para a imaginação ativa são a capacidade de deixar as imagens fluírem de um lado, e por outro, a capacidade de controle, pois é preciso que a própria pessoa entre em sua fantasia e interfira levando suas figuras internas a dialogarem entre si. Concentrando-se em uma imagem inicial e ao mesmo tempo cortando o canal de percepção do mundo exterior, torna-se possível perceber o fluxo e as mudanças das imagens interiores.

Referências

CAVALCANTI, R. - O casamento do sol com a lua. São Paulo, Círculo do Livro, 1987. 153 p.

CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.- Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1996. 996 p.

CIRLOT, J.E. - Dicionário de símbolos. São Paulo, Editora Moraes, 1984. 614 p.
FRANZ, M.L. von - O feminino nos contos de fadas. Petrópolis, Editora Vozes, 1995.
JUNG, C.G. - AION: estudos sobre o simbolismo do si mesmo. In: Obras completas de Carl Gustav Jung. Petrópolis, Editora Vozes, 1982, vol. IX, t. II.
JUNG, C.G. - A prática da psicoterapia. In: Obras completas de Carl Gustav Jung. Petrópolis, Editora Vozes, 1981, vol. XVI, t.I. 128 p.
JUNG, C.G. - Estudos sobre psicologia analítica. In: Obras completas de Carl Gustav Jung. Petrópolis, Editora Vozes, 1978, vol. VII.
JUNG, C.G.; VON FRANZ, M.L.; HENDERSON, J.L.; JACOBI, J.; JAFFÉ, A. - El hombre y sus simbolos. Madrid, Aguilar Ediciones, 1969.
KAST, V. - A imaginação como espaço de liberdade. São Paulo, Edições Loyola, 1997. 204 p.
ULANOV, A. & ULANOV, B. - Transforming Sexuality: the archetypal world of anima and animus. Boston & London, Shambhala Publications, 1994. 448 p.





sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A Hora do Adeus / Enfrentar o luto

«O primeiro luto» (1888), William-Adolphe Bouguereau

A Hora do Adeus

Enfrentar o luto


LUCÉLIA BRAGHINI
9 JANEIRO 2018

«Adormeci à sombra da árvore.
Ao acordar dourado pingo de sol dançava sobre meu peito.
Pensei que era meu.
Senti-me rico.
Quis agarrá-lo.
Meu gesto de cupidez assustou-o. E a luz se foi»
(Hermógenes, 2004)
É uma ilusão pensarmos que estamos preparados para dizer “adeus”. Saber que aquele ser que ora estamos perdendo, como que ao simples cruzar de uma linha de chegada, passa a pertencer ao nosso passado. Saber (e sentir...) que nunca mais ele estará ao alcance de nossos sentidos. Saber (e sentir...) que ele jamais voltará... Tudo isso é por demais avassalador para nós humanos, mortais que somos todos.
Muitas vezes, tudo o que resta daquele que fez parte de nossa vida, em alguns casos por longos anos - e que nessa convivência aprendemos a amar - são apenas e tão somente algumas fotos, um quadro na parede ou uma simples imagem mental, que cada vez mais se desvanece...
De imediato, por um momento que se confunde com a eternidade, o impacto da perda e o imenso vazio em que de chofre nos sentimos imersos nos fazem cair num estado de profunda letargia e perplexidade. Isto, no entanto, já faz parte do processo de luto e elaboração da perda, e o confronto com a dimensão da vida sobre a qual não temos controle.
Quando decresce a agudeza da dor e o sentir cede espaço para o pensar, nos deparamos com a transitoriedade e a fugacidade das coisas, da vida e das pessoas, fato que nos remete à nossa própria finitude. No planeta em que vivemos nada é eterno. Tudo muda e tudo se acaba. Até mesmo nosso maior objeto de amor, nossa âncora e nossa referência afetiva, pode nos ser arrancado de repente e sem mais delongas.
Em seu livro Saúde na Terceira Idade, o Prof. Hermógenes ressalta que uma das maiores fontes de sofrimento em qualquer pessoa é o apego àquilo e àqueles que, ilusoriamente, supomos nos pertencer exclusiva e eternamente. Assim, abnegar-se, renunciar, desprender-se, desapegar-se, são atitudes necessárias e saudáveis, mas difíceis aos que, ainda jovens, veem-se engajados em seu próprio crescimento e independência. Na realidade, tudo o que julgamos possuir – dinheiro, cargos, amigos, parentes, status, obras de arte, diplomas, títulos – por ser fugaz e destrutível pelo tempo, nada vale. “Nada persiste, portanto, nada merece apego”, reitera o autor. Desta forma, o homem inteligente espontaneamente elimina desejos, apegos, aversões e medos. Chega-se à felicidade pelo simples abrir mão da pesada e volumosa carga penosamente acumulada às próprias costas.
Mesmo para aquele que não está disposto a fazer grandes reflexões sobre a vida, o ato de viver se apresenta como uma empreitada bastante desafiadora e exige que se tenha uma estrutura e uma personalidade forte que seja capaz de resistir e de sobreviver à angústia do inexorável, à face obscura da morte. Ou se não temos, ‘nos tornamos’ ao longo do caminho e das experiências.
Deixar ir aquilo que já se foi. Soltar-se. Desprender-se é uma arte a ser aprendida e dominada.
Fernando Sabino afirma em seu poema Praticando o desapego:
«Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final.
Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário...
Perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver.
Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos.
Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos que já se acabaram.
As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas possam ir embora».
Na maioria das vezes não temos controle para decidir sobre quando alguma coisa se acaba, e o que nos cabe é simplesmente aceitar que acabou. E aprender a se relacionar com a vida e com o que nos rodeia de outra maneira. O momento presente é apenas um flash de algo que amanhã já não estará mais aqui.
Aprender a aceitar que tudo é transitório e que todas as coisas que julgamos que possuímos na realidade nos são ‘emprestadas’. O outro, seja ele quem for, é nosso momentâneo parceiro de jornada. Tornamo-nos mais sábios à medida que extinguimos crônicos sentimentos de posse e desejamos cada vez menos.
Nada é perene neste planeta. Estamos a todo o tempo exercitando o “Adeus”. Confrontando-nos com o aparente negrume de nossa própria solidão.
Mas é no silêncio da solidão que conseguimos enxergar novas sementes que estão germinando. Sementes de um novo processo. Um novo devir.
Fernando Sabino disse ainda em seu poema:
«Desapegar-se, é renovar votos de esperança de si mesmo,
É dar-se uma nova oportunidade de construir uma nova história melhor».
Não vamos nos esquecer jamais que a vida não termina na morte, mas uma nova oportunidade nos é apresentada através do renascimento. Este é um ciclo que constantemente se repete. Basta olhar para as estações do ano: a vida parece morrer no inverno para renascer na primavera.
A dor, no entanto, tudo indica ser algo inerente a este processo de vida e morte / morte e vida. Não há como alijar-se da dor, que parece atingir seu ponto culminante na hora do adeus. Ela é a mais genuína expressão de nossos sentimentos, uma marca humana, por excelência.

Referências:

Hermógenes: Saúde na Terceira Idade. 12ª. ed. Rio de Janeiro, Editora Nova Era, 2004.