Mostrando postagens com marcador Jorge Mourihna. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Jorge Mourihna. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Lucky / Espantosa carta de amor a Harry Dean Stanton

4 de agosto de 2017, 14:34

“Harry Dean Stanton saiu da tropa um ano antes de o festival de Locarno começar”, diz John Carroll Lynch a dada altura da conferência de imprensa de Lucky, o seu primeiro filme como realizador. E faz uma pausa para que fique bem claro como o actor, 91 anos, 236 créditos referenciados em filmes ou séries de televisão sob realizadores como Ridley Scott (Alien), John Carpenter (Fuga de Nova IorqueChristine), Francis Ford Coppola (Do Fundo do Coração), Wim Wenders (Paris, Texas), Martin Scorsese (A Última Tentação de Cristo) ou David Lynch (Um Coração SelvagemUma História Simples), é um ícone cinéfilo.

Carroll Lynch, ele próprio actor de composição com 25 anos de carreira, diz, aliás, que só ouvir o seu “nome pronunciado ao lado do de Harry Dean Stanton” o faz “sentir humilde”. E também que quase toda a gente que entra no filme — um quem é quem dos secundários contemporâneos, com Ron Livingston, Tom Skerritt, Ed Begley Jr., Beth Grant, Barry Shabaka Henley e David Lynch, sim, esse mesmo — e muita da equipa disseram imediatamente que sim mesmo aos papéis mais ínfimos, só pela possibilidade de trabalhar, nem que fosse só um dia, com Stanton. “Ele é um mestre zen”, diz o argumentista Logan Sparks. “Ele costuma dizer que ‘adoro não fazer nada e depois descansar um bocadinho’.” Sparks lá sabe — há mais de 20 anos que é amigo do actor, aliás padrinho do seu filho, e inspirou-se na própria vida de Stanton para escrever Lucky.

O cágado chama-se President Roosevelt, vemo-lo a passear placidamente pelo deserto do Arizona, e, sabê-lo-emos mais à frente, fugiu de casa. “Como é que se deixa um cágado fugir?”, pergunta toda a gente ao dono do cágado. “Ele andou a planear isto durante muito tempo”, responde Howard. “Viu a sua oportunidade e aproveitou-a.” Howard é interpretado por David Lynch, e por aí fazemos a ligação com o mais atípico dos filmes do autor de Twin PeaksUma História Simples, em que um homem fazia uma viagem de tractor pela América profunda para se reconciliar com o irmão. A viagem de Luckyresume-se a uma pequena terreola onde todos se conhecem e todos sabem onde todos os outros moram, e onde a personagem de Stanton, Lucky de sua alcunha (porque nome nunca o saberemos), segue a sua rotina diária e imutável, que envolve o café da manhã, um copo de leite frio, palavras cruzadas e café no diner da cidade, o Bloody Mary da praxe à noite no bar da Elaine.

Mas já lá vamos. Antes disso, o cágado.

O cágado chama-se President Roosevelt, vemo-lo a passear placidamente pelo deserto do Arizona, e, sabê-lo-emos mais à frente, fugiu de casa. “Como é que se deixa um cágado fugir?”, pergunta toda a gente ao dono do cágado. “Ele andou a planear isto durante muito tempo”, responde Howard. “Viu a sua oportunidade e aproveitou-a.” Howard é interpretado por David Lynch, e por aí fazemos a ligação com o mais atípico dos filmes do autor de Twin Peaks, Uma História Simples, em que um homem fazia uma viagem de tractor pela América profunda para se reconciliar com o irmão. A viagem de Luckyresume-se a uma pequena terreola onde todos se conhecem e todos sabem onde todos os outros moram, e onde a personagem de Stanton, Lucky de sua alcunha (porque nome nunca o saberemos), segue a sua rotina diária e imutável, que envolve o café da manhã, um copo de leite frio, palavras cruzadas e café no diner da cidade, o Bloody Mary da praxe à noite no bar da Elaine.

Até ao dia em que, depois de o cágado fugir, Lucky pura e simplesmente cai no chão. Sem vertigens, sem aviso, sem dores, pumba. O médico diz-lhe que nunca viu nada assim — o homem tem uma saúde de ferro, já enterrou meia cidade, e “só não te digo para parares de fumar porque no teu caso era capaz de fazer mais mal do que bem”. A única explicação para a queda? “Estás velho e mais velho vais ficar.”

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Harry Dean Stanton / Um longo adeus pela porta grande

Harry Dean Stanton


Harry Dean Stanton 

(1926- 2017) 

Um longo adeus pela porta grande

Lucky, o último filme de Harry Dean Stanton, e um papel principal tinham qualquer coisa de testamento.


Talvez houvesse razões para desconfiar: em Agosto último, Harry Dean Stanton não fez a viagem a Locarno para apresentar Lucky, o filme que de algum modo fica como o seu “testamento cinematográfico”, aclamado desde a sua estreia em South by Southwest como a “performance de uma vida”. Tanto mais que o filme se alimenta, literalmente, da própria vida do actor – o filme foi escrito para ele por Logan Sparks e Drago Sumonja, amigos de longa data (Sparks, que fazia parte da comitiva, disse em conferência de imprensa conhecer o actor há mais de 20 anos), e a partir de coisas que o próprio Stanton ia dizendo em conversas e no dia-a-dia.

Talvez houvesse, dizíamos, razões para desconfiar: antes de Lucky, que se estreou em Março último no festival americano South by Southwest, Stanton tinha praticamente parado de rodar. A sua participação no regresso de Twin Peaks, em pós-produção quando Lucky foi rodado, foi o seu único papel “de peso” até esta história de um nonagenário do Arizona a confrontar-se com a morte que se aproxima — um papel principal que implica a presença constante do actor no ecrã, ao longo de hora e meia. E o elenco de veteranos secundários que se juntou para o filme, que inclui Tom Skerritt, Ed Begley Jr. Beth Grant, Barry Shabaka Henley, Ron Livingston, James Darren e David Lynch (sim, esse mesmo, o realizador de Twin Peaks e Veludo Azul), aceitou papéis ínfimos só pela possibilidade de trabalhar com ele, nem que fosse só por um dia.

Numa entrevista num café de Locarno, o realizador John Carroll Lynch, ele próprio actor secundário em tempo de estreia na realização, disse que toda a rodagem teve de levar em conta a idade avançada do actor: “Muitas das decisões que tomámos em termos de produção dependeram do Harry.” Produção independente de baixo orçamento, Lucky foi rodado em pouco tempo e com pouco dinheiro. “Tínhamos 19 dias úteis, mas espalhámo-los ao longo de seis semanas — dois, três, quatro dias de cada vez. Queríamos garantir que o Harry tinha pausas para se recompor. Rodámos na Califórnia para ele poder voltar para casa todas as noites e dormir na sua própria cama, e assegurar que ele não estava no plateau mais de dez horas por dia, 12 no máximo. Mas o verdadeiro desafio de Lucky não teve tanto que ver com a idade do Harry como com a sua relação com o assuntol”, sublinha o realizador. “É um filme incrivelmente pessoal para ele: o guião foi tecido a partir da sua vida. E a sua disponibilidade para aceitar isso, a sua coragem de se revelar frente à câmara, foi espantosa. Logo ao princípio vemo-lo em roupa interior, e creio que nunca vimos o corpo dele assim no cinema — e adoro a contradição aparente entre a fragilidade do seu estado físico e a vitalidade invencível da sua mente.”

Talvez houvesse, portanto, razões para desconfiar: Lucky (cuja distribuição em Portugal já estava garantida antes de Locarno pela Alambique, mas aguarda ainda data de estreia), tinha qualquer coisa de “testamento cinematográfico”, mesmo que ninguém o diga abertamente. Numa das cenas mais memoráveis, Stanton vai ao médico depois de ter desmaiado em casa, e o médico diz-lhe que tem uma saúde de ferro, apesar de fumar que nem uma chaminé e de ter enterrado meia cidade. “O teu problema é que estás velho. E só vais ficar mais velho.” E sim, aos 90 anos ele continuava a fumar — no filme e na vida real. “Não sei se o Harry ainda está vivo por ainda fumar,” dizia John Carroll Lynch entre risos em Locarno. “Acho que provavelmente se tivesse de parar de fumar, era capaz de dizer: 'Muito bem, para mim já chega. É aqui que saio.'"

Por acaso, numa das últimas cenas de Lucky, o actor está enquadrado por uma porta com o sinal exit por cima. Talvez houvesse razões para desconfiar que este ia ser o longo adeus de Harry Dean Stanton ao cinema. Pela porta grande.

Notícia corrigida às 11h 57 de 17 de Setembro

PUBLICO

FICCIONES

RETRATOS AJENOS

DE OTROS MUNDOS

DRAGON

KISS