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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Transpondo sátiras / Duas tradutoras de eslovaco falam sobre como encontrar inspiração

Texto de Majling, original em eslovaco, com os nomes modificados de Dostojevzski (Dostoiévski), Tolsztoi (Tolstói) e Toorgenef (Turguêniev). Foto de Filip Noubel, usada com permissão.


Transpondo sátiras: duas tradutoras de eslovaco falam sobre como encontrar inspiração

Para tradutores literários, nada é mais desafiador, e talvez mais inspirador, do que textos de humor, pois necessitam de uma tradução dupla: linguística e cultural. A Global Voices pediu para duas tradutoras que trabalharam com a obra “Ruzká klazika“, do escritor eslovaco Daniel Majling, um livro de sátiras sobre literatura clássica russa, contarem sobre suas estratégias para essa delicada transposição.

Podemos descrever a coletânea de contos de Majling como pastiche, um termo que se refere à imitação artística, e que também indica mescla de elementos. De fato, em seu livro, Majling faz referências a autores clássicos russos, mas distorce os nomes e os coloca em situações grotescas cheias de humor ácido. Além das ironias, o livro tem o subtítulo “Zostavil a preložil Daniel Majling”, que significa “organizado e traduzido por Daniel Majling”, como se o texto eslovaco original fosse em si uma tradução, semelhante a apresentação de Cervantes no clássico Dom Quixote.

Retrato de Weronika Gogola, foto usada com permissão.

Weronika Gogola é uma premiada escritora polonesa de Bratislava, que também traduz do ucraniano e eslovaco para o polonês. Sua tradução do livro de Majling será publicada no fim do ano na Polônia. Ela explicou a estratégia para transposição de humor, que muitas vezes depende de substituições e alusões veladas:

Em algumas partes do texto o humor na tradução polonesa foi menos ácido, em outras mais do que no original. Eu tive sorte de conhecer Majling pessoalmente e pude conversar sobre alguns temas, e também inseri algumas notas no caso de pequenas imprecisões no texto original. O próprio Majling sugeriu, que nessas notas, eu comentasse ironicamente a inabilidade dele com certos assuntos.

O tom do livro permite uma certa liberdade, o que podemos chamar de “efeito Majling”. Uma oportunidade assim é rara no trabalho de tradução — mas para ser clara, eu discuti todas essas questões com o autor.

Retrato de Julia Sherwood, foto usada com permissão.

Para Julia Sherwood, uma veterana em traduções da literatura eslovaca, juntamente com seu marido Peter, a tradução parcial do início do livro foi uma oportunidade de ser criativa na tradução de nomes, além de outros aspectos:

Cada história de “Ruzká klazika” (o título é uma variação de ‘Clássicos Russos’ com letras trocadas) é uma paródia do estilo de um escritor russo, então a tradução precisa atingir o mesmo efeito. A introdução do livro não foi difícil de traduzir, nem a história “The Rebirth of the Orthodox Faith in Our Town” (O renascimento da fé ortodoxa em nossa cidade), que é um pastiche de um conto folclórico, e eu espero termos conseguido fazer a tradução funcionar. Fazer uma versão em inglês dos nomes de personagens foi complicado, mas divertido; o personagem “tulák Arťom Skočdopoľa-Prašivý” se tornou “the vagrant Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin” (o vagabundo Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin). As letras trocadas não foram um problema, exceto no título do livro: Nós colocamos como “Rushian Clashics”, mas outras versões são possíveis. Vocês colocaram como “Roosyan Klassiks” em um artigo da Global Voices, e eu também vi a tradução “The Ruzzian Clazzics”. Um dia, se uma editora de língua inglesa for publicar o livro completo, o título pode ficar diferente novamente.

Uma escolha incomum: literaturas menos conhecidas

Traduzir um texto é apenas metade do trabalho para a maioria dos tradutores literários que trabalham com as chamadas “línguas menores”; línguas raramente traduzidas e com literaturas geralmente desconsideradas por editoras, como é o caso ainda da literatura eslovaca. Nesses casos, tradutores atuam como agentes literários e promotores de reinos literários menos conhecidos e menos valorizados, como explica Gogola:

No caso de “literaturas menores”, a regra é que os tradutores tomem a iniciativa sozinhos. Isso também aconteceu no meu caso. Fiquei maravilhada com o livro de Majling, com seu humor rasgado e a liberdade que ele se permitiu.

Porém, Sherwood, que também tem um podcast em inglês sobre literatura eslovaca, acredita que as atitudes estão mudando no mundo editorial global anglófono:

É verdade que, comparado com a literatura tcheca, polonesa ou húngara, escritores eslovacos são muito menos conhecidos, mas, felizmente, isso começou a mudar recentemente. Obras de autores eslovacos contemporâneos como Balla, Jana Bodnárová, Jana Beňová, Ivana Dobrakovová, Pavel Rankov, Monika Kompaníková e Uršuľa Kovalyk, têm sido traduzidos para o inglês. Autores eslovacos também têm recebido mais reconhecimento internacional, por exemplo, “Piata loď “(Boat Number Five – Barco número cinco), de Monika Kompaníková, traduzido por Janet Livingstone, foi uma das finalistas do concurso literário EBRD Literature Prize em 2022. De fato, “Boat Number Five” foi um dos dois primeiros livros da série de literatura eslovaca lançada pela editora Seagull Books, uma esplêndida pequena editora de Calcutá com distribuição mundial que publica muita literatura traduzida.

No fim, na verdade, a motivação da maioria dos tradutores literários é a paixão por um texto, e a decisão de traduzir e promover, mesmo que a publicação demore muitos anos. Quando perguntada sobre porque escolheu Majling, Gogola admite: “Definitivamente porque Majling é imprevisível. Quando você começa a ler, não consegue adivinhar o que vai acontecer no fim da história, é o que faz você realmente gostar do texto”.

Sherwood, que compartilha esse entusiasmo, também relaciona o livro com o novo contexto da invasão russa na Ucrânia:

O que eu mais gosto no livro é a irreverência e diversão. Nos últimos meses, diante da guerra na Ucrânia, muitas pessoas rejeitaram a cultura russa em geral e a literatura russa em particular. Ainda que essa resposta emocional seja compreensível, certamente por parte dos ucranianos, para mim foi longe demais, e fico feliz de ver em sua entrevista com Daniel Majling, que ele também pensa assim. Por outro lado, a literatura russa é frequentemente colocada em um pedestal e tratada como algo sacrossanto, e por isso a abordagem irreverente de Majling é tão refrescante. De certa forma, faz parte do espírito da literatura russa, pois, tirando os escritores dos livros pesados e solenes, sempre houve autores com um toque mais leve e senso do absurdo. Até mesmo o grande Pushkin é conhecido por ter escrito um poema sujo.

Gogola também fala do contexto atual na sua última resposta, sobre a questão das “literaturas menores”:

Talvez o livro de Majling seja um bom pretexto para redefinir o lugar da cultura russa no mundo europeu. Rir de algumas coisas pode nos ajudar a “ventilar” nossa angústia com o ataque russo à Ucrânia. Isso não significa que devemos parar de ler clássicos russos, mas precisamos lembrar que o status da língua ucraniana sempre foi incerto: os ucranianos precisaram provar por décadas que possuem uma língua e literatura próprias. Apoiar a literatura em línguas menores ajuda à sua sobrevivência. Infelizmente, a política russa impediu esse tipo de abordagem desde o período imperial. Simbolicamente, então, como leitores, nós podemos nos opor à Rússia pela leitura da literatura das “nações menores”.


GLOBAL VOICES

 

sábado, 2 de março de 2019

Vargas Llosa / A tragédia da Ucrânia

Fernando Vicente


Mario Vargas Llosa

A tragédia da Ucrânia

Anne Applebaum relata a fome premeditada por Stalin para subjugar a população da Ucrânia, frear qualquer tentativa de nacionalismo e liquidar as organizações que resistiam a integrá-la à URSS



2 MAR 2019

Em 1928, Stalin fez uma viagem pela Sibéria que durou três semanas. Tinha derrotado seus adversários dentro do Partido Comunista e já era o amo supremo da União Soviética. Os cereais começavam a escassear no imenso território e, depois do que viu e ouviu naquela viagem, Stalin tirou as conclusões ideológicas pertinentes. Segundo a doutrina marxista, a culpa era dos camponeses retrógrados, que, graças à expropriação dos latifúndios e à liquidação dos kulaks, tinham se tornado pequenos proprietários de terra e contraído as taras características da burguesia. A solução? Obrigá-los a ceder suas granjas e a se incorporar às fazendas coletivas que os tornariam proletários, a força poderosa e renovadora que substituiria sua mentalidade burguesa pelo fervor solidário dos bolcheviques.



Essa é a origem, segundo Anne Applebaum, em seu extraordinário livro Red Famine: Stalin’s War on Ukraine (fome vermelha: a guerra de Stalin contra a Ucrânia), do colapso da agricultura em todos os domínios da URSS, mas que golpearia principalmente, com ferocidade inigualável, a Ucrânia, causando, nos anos de 1932 e 1933, vários milhões de mortes e cenas arrepiantes de suicídios, assassinatos de crianças, saques e canibalismo. A pesquisa realizada pela autora revela ao mundo, em sua dimensão apocalíptica, um acontecimento que, pelo menos em suas características reais, tinha sido ocultado pela censura stalinista, apesar dos esforços isolados de alguns historiadores como Robert Conquest, em The Harvest of Sorrow (a colheita do sofrimento), para divulgá-lo. Mas só agora, com a independência da Ucrânia, os documentos e testemunhos relativos àquele holocausto podem ser consultados e Anne Applebaum, que domina plenamente o russo e o ucraniano, tem feito isso com meticulosidade e objetividade escrupulosa.


Segundo ela, a fome foi premeditada por Stalin e seu séquito de cúmplices – Molotov, Kaganovich, Voroshilov, Postishev, Kosior e alguns outros − para subjugar a Ucrânia, frear qualquer tentativa de nacionalismo em seu seio e liquidar as organizações que resistiam a integrá-la à URSS sob o açoite de Moscou. Ela cita como prova o fato de que, naqueles mesmos anos, o Politburo soviético reduziu drasticamente a publicação de livros e jornais em ucraniano, assim como o ensino dessa língua nas escolas e universidades, e impôs o russo como idioma oficial do país.
Seja como for, em 1929 é iniciada a dissolução das pequenas propriedades agrícolas a fim de incorporá-las às fazendas coletivas. Os camponeses, que tinham visto com simpatia a revolução, resistem a entregar suas terras e seu gado, e a se associar às enormes empresas coletivas que, dirigidas por burocratas do partido, costumam ser pouco eficientes. As instruções de Stalin são rigorosas: aquela resistência só pode vir dos inimigos de classe que querem acabar com o socialismo, e deve ser esmagada sem piedade pelos revolucionários. As brigadas comunistas percorrem os campos confiscando propriedades, gado, ferramentas agrícolas e sementes, e mandando para a prisão quem não colabora. Um dos chefes do Gulag, na Sibéria, envia um telegrama a Moscou pedindo que não lhe enviem mais detidos porque já não tem como alimentá-los. Ao mesmo tempo, um prisioneiro escreve para sua família: “Que maravilha! Eles me dão um pãozinho por dia!”





Entre 1932 e 1933,  há milhões de mortes e cenas arrepiantes de suicídios, assassinatos de crianças, saques e canibalismo.

As colheitas começam a encolher, os roubos e ocultação de alimentos se multiplicam por todo lugar, Stalin insiste que o partido deve ser “implacável” em sua luta contra os sabotadores da revolução, e a fome entra em cena com suas terríveis sequelas: roubos, assassinatos, suicídios, aldeias que desaparecem porque todos os seus habitantes fugiram para as cidades na esperança de encontrar trabalho e alimentos. Os cadáveres já são tão numerosos que ficam estendidos nas ruas e estradas porque não há gente suficiente para enterrá-los.
Os testemunhos reunidos por Anne Applebaum são de arrepiar: há pais que matam seus filhos com as próprias mãos para que não sofram mais e, os mais desesperados, para se alimentar com eles. Já comeram todos os cães, cavalos, porcos, gatos e até ratos que conseguiam pegar, e os comunicados que chegam à Ucrânia vindos de Moscou são cada dia mais urgentes: negar a fome e, principalmente, o canibalismo e os suicídios, e punir sem dó os verdadeiros causadores dessa catástrofe: os inimigos de classe, os fascistas, os kulaks, os responsáveis reais pelas calamidades que se abatem sobre a Ucrânia.





As instruções de Stalin são rigorosas: aquela resistência só pode vir dos inimigos de classe que querem acabar com o socialismo, e deve ser esmagada

Quantos morreram? Cerca de cinco milhões de ucranianos, pelo menos. Mas não há como saber com exatidão, porque as estatísticas eram forjadas pela disciplina partidária que assim exigia ou pelo medo dos burocratas do partido de ser punidos como responsáveis pela fome. O Kremlin impôs, além disso, uma versão oficial dos acontecimentos que era reproduzida não só pela imprensa comunista, mas também pela capitalista, que fazia isso por meio de jornalistas vendidos ou covardes, como o repulsivo Walter Duranty, então correspondente do jornal The New York Times, que, comprado com casas e banquetes por Stalin, dava um jeito, em artigos que pareciam redigidos por um Pôncio Pilatos moderno, de apresentar um quadro de normalidade e desmentir os exageros de certos testemunhos que conseguiam vazar para o exterior sobre o que realmente ocorria na URSS e, principalmente, na Ucrânia. Uma das exceções foi o britânico Gareth Jones, quem conseguiu percorrer a pé o coração da fome durante várias semanas e contar aos leitores ingleses do jornal The Evening Standard os horrores vividos na Ucrânia.
Ler um livro como o de Anne Applebaum não é um prazer, e sim um sacrifício. Mas obrigatório, se queremos conhecer os extremos a que podem levar o fanatismo ideológico, a cegueira e a imbecilidade que o acompanham, e a irremediável violência que, mais cedo ou mais tarde, vem como consequência. A fome e as mortes na Ucrânia ajudam a entender melhor o terrorismo jihadista e a bestialidade irracional que consiste em se tornar uma bomba humana e explodir em um supermercado ou uma discoteca, pulverizando dezenas de inocentes. “Ninguém é inocente!” era um dos gritos do terror anarquista segundo Joseph Conrad, que descreveu melhor do que ninguém essa mentalidade em O Agente Secreto.
Se ler o livro de Anne Applebaum provoca calafrios, como terão sido os anos que sua autora levou para escrevê-lo? Posso imaginá-la muito bem, imersa horas e horas em arquivos empoeirados, lendo informes, cartas de suicidas, sermões, e descobrindo de repente que está com o rosto encharcado de lágrimas ou que está tremendo da cabeça aos pés, como uma folha de papel, transubstanciada por aquele apocalipse. Ela deve ter sentido mil e uma vezes a tentação de abandonar essa tarefa terrível. No entanto, continuou até o fim, e agora esse testemunho atroz está ao alcance de todos. Aconteceu há quase um século lá na Ucrânia, mas não nos enganemos: não é coisa do passado, continua ocorrendo, está ao nosso redor. Basta ter a coragem da Anne Applebaum para ver e enfrentar isso.

EL PAÍS




sábado, 29 de novembro de 2014

Vargas Llosa / Ucrânia: a paixão europeia



Fernando Vicente


Mario Vargas Llosa

Ucrânia: a paixão europeia

A agressão de Putin é só o primeiro passo em seu desafio ao sistema democrático ocidental, mas os ucranianos são livres e custará muito à Rússia arrebatar essa liberdade


29 nov 2014

Quem se sente desmoralizado com a construção da União Europeia deveria ir à Ucrânia; veria como esse projeto desperta uma enorme esperança em muitos milhões de ucranianos que veem na Europa unida a única garantia de sobrevivência da soberania e da liberdade que conquistaram com a gesta de Maidan contra o governo corrupto de Yanukovich e que hoje está ameaçada pela Rússia de Putin, empenhado na reconstituição do império soviético (embora não se chame assim). Veria também a serenidade estoica que mostra uma sociedade invadida por uma potência estrangeira, que se apoderou da quinta parte de seu território, e cujas fronteiras orientais, onde morrem diariamente mais voluntários do que indicam as estatísticas oficiais, continuam sendo atravessadas por centenas de blindados e milhares de soldados russos.
“Duzentos tanques só nos últimos dois dias e, com eles, uns dois mil militares, sem seus uniformes”, precisa-me o presidente Petro Poroshenko no gigantesco e pesado edifício que ocupa, construído para o Comitê Central do Partido Comunista da Ucrânia. “A Rússia não respeitou nem um só dia o acordo de paz que assinamos em Minsk. Mas a invasão russa serviu para nos unir. Agora, oitenta por cento do país rechaça a intervenção e está disposto a lutar”. Fala com muita calma, em um inglês cuidado –é um industrial próspero, roliço e amável e todo mundo conhece suas fábricas de chocolate– e está convencido de que a Europa e os Estados Unidos não permitirão a ocupação colonial de seu país.
Diz-se que há diferenças entre o presidente Poroshenko e seu primeiro-ministro, Arseny Yatseniuk, pois este último seria mais radical do que aquele. Conversando com ambos, separadamente, quase não notei. Ambos acreditam que a agressão russa continuará e que a Ucrânia, para Putin, é só o primeiro passo em seu desafio ao sistema democrático ocidental, que percebe como adversário essencial da Rússia e da ordem autoritária e imperial que preside; e que, nas atuais circunstâncias, o líder russo se sente encorajado pela impunidade com que atuou criando os enclaves pró-russos da Geórgia –Abecásia e Ossétia do Sul–, apoderando-se da Crimeia e infligindo uma humilhação ao presidente Obama na Síria, ultrapassando alegremente, sem o menor inconveniente, as “linhas vermelhas” que este estabeleceu.


O líder russo se sente encorajado pela impunidade com que atuou

No que Poroshenko e Yatseniuk se diferenciam é que o primeiro-ministro, estranho homem público, não trata de ser simpático a seu interlocutor e fala com uma franqueza crua que qualquer político consideraria suicida. “Ninguém vai à guerra pela Ucrânia, sabemos de sobra. Tomara que, pelo menos, nos deem armas para nos defender.” É magro, calvo, com óculos grossos de míope, muito magro e, poderíamos dizer, um asceta. Economista de destaque, dirigiu o Banco Central, foi Ministro da Economia e raramente sorri. “Não sou pessimista, mas realista”, afirma. “Os czares, Lenin, Stalin, trataram de nos fazer desaparecer. Agora todos eles estão mortos e a Ucrânia continua viva. O que devemos fazer, apesar da desigualdade de forças com a Rússia? Lutar, não há alternativa.” Pensa que se a Ucrânia cair, as próximas vítimas serão os países bálticos, a Polônia, as outras antigas “democracias populares”. “Putin não pode voltar atrás, seria morto na Rússia. Fez seu povo engolir que tudo isso é uma conjuração da CIA e dos Estados Unidos. E, por enquanto, os russos acreditam nele e estão dispostos a sofrer todas as sanções econômicas que forem infligidas pelo mundo democrático”. As sanções estão afetando seriamente a economia russa, mas Yatseniuk não acredita que isso diminuirá a vocação imperialista de Putin. “Seu principal objetivo não é econômico, mas político e ideológico”.
À cidade de Dnipropetrovsk, espraiada pelas duas margens do majestoso rio Dnieper, chegaram nas últimas semanas mais de 40 mil refugiados das províncias orientais onde há combates. O prefeito me diz que esperam outros 40 mil nas próximas semanas. Embora as migrações forçadas por causa da guerra sejam difíceis de quantificar, a cifra de ucranianos que abandonaram as cidades e povoados da fronteira já deve ter ultrapassado o milhão. Para acolher esse gigantesco êxodo há uma mobilização cidadã que apoia e às vezes supre o Estado precário, que vai se reconstituindo de maneira descontínua depois do cataclismo que representou a queda da ditadura de Yanukovich graças ao levante de Maidan.
Na enorme praça com esse nome há fotos de todos os mortos durante as ações. Falo com vários líderes da revolta e o que mais me impressiona é Dimitri Bulatov. Organizou as caravanas de automóveis que fizeram manifestações de repúdio pacíficas diante das casas dos líderes do regime e garantiu as comunicações dos rebeldes. Logo depois do início dos protestos, foi sequestrado, em plena rua, por indivíduos que –presume– pertenciam às “forças especiais” do Governo. Durante oito dias foi torturado: teve o rosto esfaqueado, cortaram metade da orelha e, finalmente, foi crucificado. Seus verdugos queriam que confessasse que Maidan era financiada pela CIA. “Confessei todos os absurdos que queriam mas, mesmo assim, estava certo de que me matariam”. Entretanto, no oitavo dia, misteriosamente, seus captores desapareceram. Hoje é ministro da Juventude e dos Esportes. Jovem e jovial, mostra sem o menor incômodo a orelha cortada, a grande cicatriz no rosto e as mãos trituradas. Informa com riqueza de detalhes sobre os esforços que fazem –ele e seus colegas do Governo– para acabar com a corrupção, ainda grande na burocracia oficial. Pergunto se é verdade que, assim que foi libertado do sequestro, foi lutar como voluntário na fronteira. “Sim, e minha mulher me disse que se voltasse vivo ela me mataria. Mas não o fez”. A mulher, que está a seu lado, jovem, bonita e risonha, assente: “Da, da” [Sim, sim].


Milhões de ucranianos que veem na Europa unida a única garantia de sobrevivência da soberania e da liberdade

O Exército ucraniano que enfrenta os russos renasceu praticamente do nada; é formado em parte por voluntários e, dada a precariedade de recursos de que dispõe o Governo, existe em boa medida graças ao apoio da população civil. Julia, minha tradutora, conta que ela e seus filhos são encarregados das coletas em sua rua para ajudar os soldados e que, toda semana, vão eles mesmos à fronteira, em veículos alugados, levando as provisões, mantas, colchões e dinheiro que permitem aos combatentes subsistir.
O único escritor ucraniano que li, Mikhail Bulgakov, hoje estaria orgulhoso da resistência e do heroísmo tranquilo de seus compatriotas. Ele foi vítima de Stalin e do regime comunista que censurou quase todos os seus livros; sua obra-prima,O Mestre e Margarida, só foi publicada nos anos setenta, muitos anos depois de sua morte. Em vez de mandá-lo ao Gulag, Stalin teve o refinamento de lhe dar um empreguinho miserável no mesmo teatro onde foram estreadas suas obras mais bem-sucedidas, para que morresse aos poucos de nostalgia e frustração.
Vou visitar sua casa-museu na bela ladeira de Santo André, onde há uma admirável igreja ortodoxa, pintores de rua e quiosques cheios de camisetas com insultos contra Putin e cilindros de papel higiênico impressos com seu rosto. A casa do escritor é pulcra, branca, cheia de ícones –suas seis irmãs e seus pais eram muito religiosos– e lá estão seus cadernos de estudante de medicina, seu título, seus livros publicados postumamente que ele nunca viu. Visitar essa casa, esse país, embora durante apenas cinco dias, me entristece, me alegra, me revolta. Uma visita tão curta nos enche a cabeça de imagens confusas e sentimentos exaltados. Mas de uma coisa estou certo: os ucranianos agora são livres e custará muitíssimo a Vladimir Putin arrebatar-lhes essa liberdade.
Kiev, novembro de 2014