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sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

O enigma de Milan Kundera, o clássico fugidio

Milan Kundera


O enigma de Milan Kundera, o clássico fugidio

Dois livros investigam os mistérios do mestre tcheco, afastado da vida pública há décadas, e a relação que mantém com seu país, que esta semana concedeu-lhe sua maior glória literária, o Prêmio Kafka


Marc Bassets
Paris, 12 Jun 2021

Milan Kundera mora no centro de Paris, em um dos bairros da cidade, e talvez do mundo, com a maior concentração de jornalistas, editores e pessoas vinculadas ao mundo das letras. Aos 92 anos, sua saúde piorou, mas até pouco tempo tinha vida social. Era visto na rua e em restaurantes, e cultivava um amplo círculo de amigos e conhecidos.


O autor de A brincadeira, A insustentável leveza do ser e outros romances e ensaios que são clássicos da literatura contemporânea tinha tudo para estar sob os holofotes na rive gauche parisiense, onde vive há décadas com sua inseparável Vera. E ainda assim, por anos e anos, conseguiu escapar da exposição pública. Existem poucas fotos recentes dele. Mantém um controle rígido sobre suas obras publicadas e traduzidas. Resume sua biografia em duas frases: “Milan Kundera nasceu na antiga Tchecoslováquia. Em 1975, instalou-se na França”. O resto não importa: o que conta são os textos. Não dá entrevistas nem participa de eventos com câmeras e fotógrafos. 

Tampouco compareceu à Embaixada da França em Praga na quinta-feira, quando foi agraciado com o prestigioso Prêmio Franz Kafka, que antes tinham merecido Philip Roth, Margaret Atwood, Peter Handke e Eduardo Mendoza, entre outros. O prêmio foi recebido, em nome do escritor, pela tradutora de sua obra francesa para o tcheco, Anna Kareninova.


Um quarteto interpretou obras de Pavel Haas, professor de composição do jovem Kundera em sua cidade natal, Brno, que morreu em Auschwitz em 1944. Haas era o pai de sua primeira esposa, Olga Haas, “apagada do romance oficial”, escreve a jornalista francesa Ariane Chemin em À la recherche de Milan Kundera (Em busca de Milan Kundera), um dos livros recentes que investiga a vida de um autor que sempre considerou que sua biografia não tinha nenhum interesse.


A cerimônia não poderia ser mais kunderiana. Lá estava seu idolatrado Kafka, “o menos compreendido de todos os grandes escritores do século passado” que, como ele mesmo escreveu, “mistura o grave e o ligeiro, o cômico e o triste, o sentido e o absurdo”. Lá estava a ausência de Kundera, um dos últimos gigantes vivos das letras do século XX, um clássico fugidio. E lá estava também sua complexa relação com seu país natal —então Tchecoslováquia, agora República Tcheca, em seus romances a Boêmia e a Morávia estão presentes– uma relação um pouco mais distendida, mas não totalmente apaziguada.


A nostalgia impregna as últimas páginas do livro de Ariane Chemin, baseado em uma série de reportagens publicadas no Le Monde. “Em seu espírito”, escreve, “os Kundera estão em Brno, na Morávia”, embora continuem em Paris.


“As recordações voltam, talvez seja nostalgia, um movimento natural ao envelhecer”, diz o ensaísta Christian Salmon. Antes de ser autor de livros festejados como Storytelling: bewitching the modern mind (algo como enfeitiçando a mente moderna, em tradução livre), Salmon foi o braço direito de Kundera no legendário seminário de literatura que deu nos anos oitenta na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e é um bom amigo da família.


O momento para a reconciliação poderia ser propício, depois de décadas de desencontros. O regime comunista proibiu seus livros, expulsou-o do partido e espionou-o depois da Primavera de Praga, em 1968. Auxiliados por seus amigos intelectuais franceses, Milan e Vera foram para a França, primeiro para Rennes, na Bretanha e depois para a capital.


Após a Revolução de Veludo, em 1989, e a queda do bloco comunista, as coisas não se resolveram imediatamente. Kundera, cuja nacionalidade havia sido retirada pelo antigo regime, já era cidadão da França e adotou o francês como língua literária. Faltava-lhe o pedigree resistente do dramaturgo e pai da nova nação Vaclav Havel: tampouco ele o havia buscado, pois, uma vez na França, sentiu-se incomodado com o rótulo de dissidente e dedicou-se ao romance. Fugia dos holofotes e da imagem do intelectual midiático que dá opinião sobre tudo sem saber de nada. Se era um escritor comprometido, o era com sua arte.


“No fundo, Kundera pensa que a arte do romancista é antagônica ao lirismo, ou seja, a uma certa forma de se mostrar, que hoje se tornou dominante entre os autores que se vendem na imprensa ou nas redes sociais”, explica Salmon. “Ele pensa que o trabalho tem precedência em relação ao autor, porque o autor acaba reduzindo e simplificando a obra. Não é uma postura de eremita, mas de afastamento da vida pública e, sobretudo, da mídia. É uma espécie de afirmação de uma escolha: o romancista deve eclipsar-se por trás da obra”.

Com o tempo, os gestos entre Kundera e a República Tcheca se multiplicaram. Em 2007, ganhou o Prêmio Nacional de Literatura. Em 2018, o primeiro-ministro Andrej Babiš visitou-o em seu apartamento no VII distrito de Paris e alguns meses depois o embaixador restituiu-lhe a nacionalidade. Os Kundera doaram sua biblioteca e seus arquivos à cidade de Brno.


A normalização, no entanto, não foi concluída. A percepção de Kundera na República Tcheca e em outros países não é idêntica, segundo Jan Novák, autor de Kundera: Český život a doba (Kundera: sua vida e seus tempos tchecos), uma biografia de 900 páginas publicada em 2020. “Aqui as pessoas conhecem seu passado. No exterior ele pôde reescrever sua biografia”, diz Novák. “Acredito que é um grande escritor, mas é um personagem problemático.”


No prólogo do livro Novák põe em dúvida que a famosa alergia de Kundera ao gênero biográfico —e sua insistência em que o importante é a obra, não o autor— obedeça “a um postulado estético ou filosófico”. Afirma que “parece muito mais algo estritamente defensivo e calculado: Kundera não gosta de rever sua vida”. Segundo ele, esconde algo. O quê?


O passado stalinista

“Seu passado stalinista”, responde Novák. “No início dos anos cinquenta, era um poeta totalmente stalinista. Era um poderoso funcionário literário. E deixou a Tchecoslováquia com a bênção do Governo, com parte de sua biblioteca e em seu carro, ao contrário das pessoas expulsas depois da invasão russa de 1968. Em seus primeiros anos na França, comportava-se como um bom cidadão socialista tchecoslovaco”.


Novák aborda no livro o episódio que sempre ressurge quando se discute o passado de Kundera na Tchecoslováquia do pós-guerra. Em 2008, a revista Respekt revelou, depois de investigar nos arquivos da segurança do Estado, um documento que dava a entender que, em 1950, o jovem Kundera denunciou um opositor que acabou condenado a 22 anos de prisão. Kundera rompeu seu silêncio para negar a acusação.


Tudo isso pode ter esfriado a reconciliação. Ariane Chemin, que manteve contatos frequentes com a esposa do escritor para preparar suas reportagens e o livro, explica por telefone que há alguns anos os Kundera tinham o projeto de retornar ao seu país, “mas aconteceu essa história do arquivo e o artigo da Respekt, e isso impediu o retorno”. E é assim que Milan e Vera continuam em Paris, mas com a mente em outro lugar, sua velha pátria. “Estão em lugar nenhum”, diz Chemin. “É o lado trágico desta história.”


EL PAÍS


sábado, 13 de novembro de 2021

Mohamed Mbougar Sarr, o novo fenômeno literário da língua francesa

 

O romancista Mohamed Mbougar Sarr posa após ser premiado com o Goncourt por ‘La plus secrète mémoire des hommes’.BERTRAND GUAY


Mohamed Mbougar Sarr, o novo fenômeno literário da língua francesa

‘La plus secrète mémoire des hommes’, a ficção sobre a busca de um escritor lendário e esquecido, conquista o Goncourt, prêmio de maior prestígio das letras francesas


MARC BASSETS
Paris - 

O novo fenômeno das letras francófonas, Mohamed Mbougar Sarr (Dakar, 31 anos), é um escritor com estilo acelerado e torrencial, um romancista que escreve sobre romancistas africanos perdidos na Europa e doentes de literatura, um narrador que agarra o leitor na primeira linha e não o solta ao longo de mais de 600 páginas. Seu modelo literário, seu ídolo, como proclamou em romances e como se adivinha em cada parágrafo de La plus secrète mémoire des hommes (A mais secreta memória dos homens), premiado na quarta-feira com o Goncourt, é Roberto Bolañrobeo (1953-2003), o último clássico da literatura latino-americana, o último com uma verdadeira irradiação global.


“Um mestre da escrita, um mestre da leitura”. É assim que o vencedor do prêmio de maior prestígio da literatura na França define o autor de Os detetives selvagens. Bolaño, explicou em uma entrevista ao jornal Libération, mudou sua vida como leitor e como escritor. Uma longa citação sobre a perenidade e o ocaso das grandes obras, extraída de Os detetives selvagens, abre o romance premiado. O título sai desta citação. Tanto a estrutura —um misto de diários, depoimentos, relatos— quanto o tom e os temas —exilados ou expatriados que sonham ser escritores, jovens românticos e atrevidos atrás do rastro de um autor lendário e esquecido— são devedores do escritor e poeta chileno.


Mohamed Mbougar Sarr cresceu no Senegal, ex-colônia francesa. É o mais velho de uma família de sete irmãos; seu pai é médico. Foi educado em uma prestigiosa escola militar de seu país e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Mora na França e sua língua literária é o francês. Escreveu três romances que receberam o aplauso da crítica e prêmios, mas obtiveram pouca repercussão pública. O Goncourt, concedido a um romance publicado no ano em curso por um júri de dez escritores durante um almoço no restaurante parisiense Drouant, muda tudo. O vencedor recebe um cheque de 10 euros, mas o verdadeiro prêmio são as vendas: o Goncourt de 2020, Hervé Le Tellier, que venceu com L’anomalie (A anomalia, ainda sem edição no Brasil), vendeu mais de um milhão de exemplares.


La plus secrète mémoire des hommes venceu na primeira votação. Competia com três outros finalistas: Christine Angot, com Le voyage dans l’Est; Sorj Chalandon, com Enfant de salaud e o haitiano Louis-Philippe Dalembert com Milwaukee blues. No mesmo restaurante estava sendo concedido outro dos grandes prêmios de outono, o Renaudot, que foi para Amélie Nothomb, com Premier sang. Nas últimas semanas, dois outros grandes prêmios foram entregues: o Médicis, para Angot, e o Fémina para S’adapter, de Clara Dupont-Monod.


O prêmio de Mohamed Mbougar Sarr coincide com o centenário do Goncourt concedido ao martiniquense René Maran pelo romance Batouala, o primeiro negro a recebê-lo. O prêmio conquistado por Sarr chega depois de o escritor tanzaniano de língua inglesa, Abdulrazak Gurnah, ter ganhado o Nobel de Literatura. Em declarações à imprensa no restaurante Drouant, o novo Goncourt, que iniciou uma tese de doutorado sobre o pai da literatura negra em francês, Léopold Sedar Senghor, declarou: “Não gostaria que se pensasse que esta recompensa é algo excepcional, um favor que se faz a um escritor africano que o recebeu porque é africano”.


Em La plus secrète mémoire des hommes, o narrador zomba dos escritores africanos “que se deixavam encerrar no olhar dos outros (...), um olhar-armadilha que exigia deles, ao mesmo tempo, que fossem autênticos —ou seja, diferentes— e no entanto similares —ou seja, compreensíveis”. No mesmo parágrafo investe contra “seus leitores ocidentais (ousemos dizê-lo: brancos), entre os quais muitos os liam como um ato de caridade, encantados que lhes divertissem ou lhes falassem do vasto mundo com aquela famosa truculência natural dos africanos que carregam o ritmo na pluma, os africanos que possuem a arte de narrar como à luz da lua, os africanos que não complicam as coisas, os africanos que sabem tocar o coração com histórias emocionantes...”


Narrado por um escritor senegalês que vive em Paris chamado Diégane Latyr Faye, o livro conta a história da descoberta de um romance indescritível, O labirinto do inumano, “o livro sagrado de um deus eunuco”, e a busca por vários continentes de seu autor, TC Elimane, “um Rimbaud negro”. A publicação de O labirinto do inumano em 1938 causou um escândalo; o autor desapareceu. O fictício Elimane é baseado em um autor real: o malinês Yambo Ouloguem, que em 1968 ganhou o prêmio Renaudot com Le devoir de violence (O dever de violência) e, depois de acusações de plágio, desapareceu do mapa. Tanto ele quanto sua obra passaram para o que Mohamed Mbougar Sarr chama de “a outra história da literatura (que talvez seja a verdadeira história da literatura), a dos livros perdidos no corredor do tempo, nem sequer malditos, mas simplesmente esquecidos”.

Mohamed Mbougar Sarr depois de receber o Goncourt.LEWIS JOLY (AP)

Mohamed Mbougar Sarr é o vencedor mais jovem desde Patrick Grainville, ganhador em 1976, com 29 anos. Concedido pela primeira vez em 1903, o Goncourt retoma assim seu espírito original: segundo o testamento de Edmond de Goncourt, deveria ser concedido a um jovem talento, embora ao longo da história esse desejo tenha sido interpretado com excessiva flexibilidade e muitos dos laureados foram autores com uma sólida carreira por trás e, às vezes, próximos da terceira idade.


Que La plus secrète mémoire des hommes, publicada pela editora francesa Philippe Rey e pela senegalesa Jimsaan, consagraria Mohamed Mbougar Sarr foi algo que se viu assim que aterrissou nas livrarias, em agosto. O boca a boca funcionou rápido: ninguém conhecia o autor, mas os que entravam nas primeiras páginas caíam rendidos. “Você já leu?”, dizia-se nos conciliábulos literários do início da rentrée, o início do ano literário em que são publicados mais de 500 romances ao mesmo tempo. A escritora Camille Laurens, que também faz parte do júri do Goncourt, dedicou a ele ardorosos elogios no artigo semanal que publica no suplemento de livros do Le Monde. “Seu domínio impressiona tanto quanto sua recusa às concessões”, afirmou Laurens.


La plus secrète mémoire des hommes foi indicado para os prêmios Médicis, Fémina e Renaudot, além do Goncourt, o que colocou Mohamed Mbougar Sarr em uma situação difícil, pois ele prometeu a Philippe Rey, seu editor, que se figurasse nas listas de três prêmios correria uma maratona, como explicou em setembro em entrevista à agência France Presse. O escritor, que sonhou ser jogador de futebol, alegou não ter a condição física necessária: a turnê de apresentação do livro não lhe deixou tempo para treinar; agora, depois do Goncourt, terá ainda menos.



EL PAÍS