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sábado, 3 de fevereiro de 2018

Por que linguagem? / A fala é uma das digitais mais individualizantes do ser humano


Por que linguagem?

A fala é uma das digitais mais individualizantes do ser humano

4 MAIO 2016, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS


Perceber é conhecer pelos sentidos. Cheguei a esse conceito graças à unificação feita pelos gestaltistas alemães, entre o que se chama sensação e percepção. Para eles não havia uma sensação captada pelos sentidos e uma percepção organizadora desses dados sensoriais. Não existiam duas funções: uma de captação e outra de organização. O que se sentia era o que se percebia e já era organizado. A abordagem dualista anterior implicava em um elementarismo fundamentado na ideia de que o todo é a soma de suas partes e, bahavioristas e psicanalistas, também eram adeptos dessa visão: os primeiros, quando reduziam o comportamento humano aos processos de aprendizagem resultante do condicionamento dos reflexos incondicionados e os segundos, ao explicar toda a vida emocional e sexual do homem pelos processos inconscientes, para eles o fundamento e motivo de toda vivência humana.
Essas abordagens implicavam em entender o homem separado do mundo, antagônico à sociedade, ao mundo. Os behavioristas tentavam resolver essa separação através dos conceitos de adaptação e condicionamento e os psicanalistas, através dos conceitos de conscientização e sublimação dos desejos.
Ao iniciar meu trabalho psicoterápico no final dos anos 1960, era isso que existia no campo da psicologia clínica.
Beneficiada pelos conceitos gestaltistas e fenomenológicos, eu sabia que o homem no mundo é uma gestalt, uma unidade e que o todo não é a soma de suas partes. Essa visão me possibilitou perceber que é através do processo perceptivo que o homem estrutura relacionamentos, e então comecei a criar conceitos e a desenvolver a teoria que fundamenta a psicoterapia gestaltista. Ao longo de 38 anos, desde que escrevi o primeiro livro sobre psicoterapia gestaltista, venho desenvolvendo o conceito de percepção.
Neste novo livro, Linguagem e Psicoterapia Gestaltista, explico o processo da linguagem, a estruturação da língua e da fala, pela percepção. Vemos que falar é expressar a organização do percebido. Linguagem é a maneira do ser humano se expressar, se comunicar, se exteriorizar. Linguagem é o desenho, a imagem, a representação, o resumo, as senhas do que se percebe. Linguagem é descrever, é informar. Fala-se porque se percebe e é percebido. A linguagem é construída pelo relacionamento com o outro e o mundo. Cada língua expressa tempo e espaços característicos. A história da humanidade foi contada graças às línguas estabelecidas. Nossa história, nossas vivências podem ser expressas, compartilhadas através da linguagem.
Portanto, neste novo trabalho, continuando o desenvolvimento de percepção como conhecimento, como "perceber que percebe" - categorização - e entendendo o pensamento como prolongamento perceptivo, deixamos claro que a percepção é estruturadora da linguagem e mantemos assim, o conceito de que vida psicológica é vida perceptiva. Na linguagem isso é enfático.
No desenvolvimento de minha teoria, senti necessidade de explicar a percepção como contexto para a construção e formação da linguagem. A linguagem decorre da percepção, ela não é, como afirmam alguns teóricos, estrurante de realidades.
A fala na psicoterapia é um dos desenhos, das digitais mais individualizantes do ser humano. Fala, que te direi quem és. Ao falar expressamos nossa maneira de perceber o outro, o mundo e a nós próprios. Falando da problemática que nos aflige mostramos nossas vivências, nossas distorções, nossa autorreferência, nossas dúvidas, medos e anseios.
A linguística, o estudo da linguagem, desenvolve-se há mais de um século com seus grandes especialistas. Ferdinand Saussure, criador da linguística, foi quem fez a distinção entre langue e parole - língua e fala - dedicando-se a entender as questões de significado e significante. Chomsky explica a construção de uma gramática única como fundamento do processo linguístico. Louis Hjelmslev e outros fenomenólogos seguiam a linha que enfatiza o que é imanente, o que é transcendente na linguagem. Edward Sapir, antropólogo e linguista influenciado por Franz Boas, pesquisando em culturas indígenas, procurava compreender como se forma a língua. Hegel dizia que a linguagem é a atualidade da cultura; assim fica assinalado o aspecto comunicativo e trancendente da linguagem. Na tradição hinduísta, nos Upanishads, vemos que o sentido da linguagem é possibilitar a distinção de valores e significados. Se não existisse linguagem, não poderíamos conhecer nem o bem, nem o mal, nem o verdadeiro, nem o falso.
Dizer que a boca, a língua, a laringe são órgãos da fala é tão tolo, tão errado quanto dizer que o dedo é o órgão de tocar piano. Algumas estruturas neurológicas quando lesadas ou comprometidas interferem ou mesmo impedem a fala. O processo de formação da linguagem é perceptivo, portanto fundamentalmente psicológico, e como tal, garantido por estruturas neurológicas. Essa isomorfia entre o neurológico e o psicológico assegura os processos perceptivos.
A língua é sempre expressão de uma sociedade, uma cultura, uma época vivenciada por grupos humanos. Cada língua que desaparece evidencia como ela é fruto da relação com o mundo, com o percebido. Novas tecnologias, importação das mesmas, novas vivências e necessidades criam novas palavras. Com a internet muitas línguas e dialetos são insuficientes para expressar as novas relações percebidas.
A língua expressa e comunica vivências, pensamentos, faz com que o outro perceba além do olhar e do tato, e seja também percebido.
Este livro expressa os desdobramentos do conceito de linguagem e de como ela se estrutura. É mais um referencial para perceber as configurações do humano, os desenhos e trajetórias realizadas pelo ser no mundo. Penso a linguagem a partir da percepção.
Fernando Pessoa, pelas mãos de seu "mestre" Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos, poeticamente também fala da percepção:
“Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê¬-la e cheirá-¬la
E comer um fruto é saber-¬lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá¬-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.”

Referência:

  • Este artigo é extraído do meu livro Linguagem e Psicoterapia Gestaltista - Como se aprende a falar - Vera Felicidade de Almeida Campos, Editora Ideias & Letras, São Paulo, 2015



sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Comunicar é remediar / “A linguagem é perigosa”




Comunicar é remediar

“A linguagem é perigosa”

4 NOVEMBRO 2014, 
VERA FELICIDADE DE ALMEIDA CAMPOS


Freud, Nietzsche, Barthes e tantos outros viam a linguagem como algo perigoso. O ato falho, a transvaloração dos valores, a semiótica, enfim, os significados que seguem, pulam e espirram do falado, deixam claro o perigo que existe na linguagem como expressão do que se deseja comunicar.
Comunicar é expressar. Comunicação pode ter dois aspectos: configuração expressiva do que se vivencia ou artefato criado para veicular o que não se consegue expressar, seja pela distância física, seja pelos parâmetros estabelecidos para comunicação. No segundo caso - como artefato - comunicação é a roupagem, consequentemente, é esconderijo do que precisa ser revelado.
Comunicar é neutralizar distâncias, mesmo que delas se utilizando. A neutralização de impedimentos requer construções, gera projetos, intenções.
Expressar o que se vivencia é reproduzir pensamentos e percepções através da linguagem (gestos, desenhos, pinturas, falas e escritos). Toda reprodução é uma cópia, tanto quanto, originais podem ser idênticos ao copiado. O que os diferencia escapa à sua expressão. Quando Heráclito fala que tudo é a realização de contrários e pensa no movimento de atirar com arco e flecha, onde o movimento para trás era o que permitia a propulsão da flecha, ele fala da direção buscada como contrária ao movimento realizado. O movimento para trás, apoio no arco, é o que permite o disparo: o movimento da flecha. Quanto maior a oposição, maior a realização, ou ainda, quanto maior organização do que é expresso através das palavras, por exemplo, maior a coerência das mesmas.
A comunicação é sempre engendrada, porém, é preciso lembrar que, engendrar, construir é disparar, fazer surgir. Devido às variáveis intervenientes que permitem expressá-lo, nem sempre o espontâneo é o legítimo. Vivenciar a intimidade, o encontro com o que está diante, dispensa representações, dispensa explicações, não tem distância a ser preenchida, é percebido sem prolongamentos de pensamentos, sem palavras, sem desenhos e gestos.
Quando a comunicação se refere ao que já passou ou ao que se imagina poder acontecer, a memória - a volta para o passado - cria o devir expresso na comunicação. Neste sentido, a comunicação é sempre denotativa. Por isso ela se torna perigosa, enganosa e demagógica. Relacionada ao presente, ela é descritiva, pleonástica, ultrapassa sua função denotativa. Ser onomatopaica lhe confere a dimensão de expressão instantânea de vivência e é a partir disto que se constroi como sinal, signos referenciados e assim a Babel está criada, seja no universo das línguas, seja na escala individualizada das expressões vivenciais significativas.
Ao apreender e descrever os significados do pensamento - prolongamento das percepções - são possibilitados resgastes vivenciais para que as narrativas, as histórias sejam compartilhadas. Assim, comunicar é criar parâmetros, conceitos e contextos que possibilitem encontros ou escondam desencontros. As narrativas são verdadeiras quanto mais mentiras sejam neutralizadas, quanto mais se expressa e menos se comunica, no sentido de que elas são contadas independente de quem as ouve. Relatos são descrições ou relatos são instrumentos para atingir e cooptar o outro. Para comunicar é preciso estar integrado com o comunicado, quase que transformar-se na comunicação. Só assim ela deixa de ser uma ponte, um artefato e passa a unir o separado, o distante.
Nas artes, nas ciências e filosofias, quando conceitos e limites metodológicos são coerentemente estabelecidos e estruturados, quando pensamentos continuam percepções contextualizadas, quando existe integração entre o comunicador e o que ele expressa, a comunicação revela.
WSI