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terça-feira, 4 de agosto de 2020

Rei emérito da Espanha, Juan Carlos I abandona o país para proteger a Monarquia


Juan Carlos I
Rei emérito da Espanha, Juan Carlos I abandona o país para proteger a Monarquia

Monarca deixa o Palácio da Zarzuela para impedir que as informações sobre sua fortuna no exterior prejudiquem a família real espanhola


Madrid, 3 de agosto de 2020


O rei emérito, Juan Carlos I, comunicou ao filho, Felipe VI, sua “meditada decisão de se mudar para fora da Espanha” ante a “repercussão pública” das notícias sobre suas contas no exterior e “para contribuir” com seu filho para que possa desenvolver seu papel como chefe de Estado “com a tranquilidade e a calma” que o cargo exige, de acordo com a carta divulgada pela Casa do Rei.

O comunicado foi divulgado poucas horas depois de dom Juan Carlos abandonar o Palácio da Zarzuela, onde residiu nos últimos 58 anos. A Casa do Rei não especifica em que país ele viverá a partir de agora e apresenta sua saída da Espanha como uma decisão voluntária, embora tenha sido tomada em consenso com o filho, que expressou seu "profundo respeito e gratidão" pelo passo dado.

Para deixar claro que a partida para o exterior não é uma tentativa de fugir da ação da Justiça (a Procuradoria do Tribunal Supremo e o Ministério Público da Suíça estão investigando suas contas no exterior), o advogado de dom Juan Carlos, Javier Sánchez-Junco, divulgou um comunicado em que afirma que ele "permanece à disposição a todo o momento do Ministério Público por qualquer procedimento ou ação considerada oportuna".

Juan Carlos I não perderá o título honorífico de Rei, que lhe foi concedido por um decreto real de junho de 2014, alguns dias antes de sua abdicação. O pai do Rei teria se oposto a renunciar voluntariamente a esse título, que não implica nenhum privilégio, e seu filho não quis privá-lo dele contra sua vontade, como fez com sua irmã Cristina, após o caso Urdangarin.

Esta é a íntegra da carta enviada por Juan Carlos I ao filho:

“Majestade, querido Felipe, com o mesmo afã de serviço à Espanha que inspirou meu reinado e diante da repercussão pública que certos eventos passados em minha vida privada estão causando, desejo te manifestar a minha mais absoluta disponibilidade para ajudar a facilitar o exercício de suas funções com a tranquilidade e a calma que a sua alta responsabilidade requer. É o que exigem meu legado e minha própria dignidade como pessoa.

Há um ano te expressei minha vontade e desejo de deixar de desenvolver atividades institucionais. Agora, guiado pela convicção de prestar o melhor serviço aos espanhóis, a suas instituições e a você como Rei, te comunico a minha meditada decisão de me mudar neste momento para fora da Espanha.

Uma decisão que tomo com profundo sentimento, mas com grande serenidade. Fui Rei da Espanha durante 40 anos e durante todos eles sempre quis o melhor para a Espanha e para a Coroa.

Com minha lealdade de sempre.

Com o carinho e afeto de sempre, teu pai”.

Segundo o comunicado da Casa do Rei, Felipe VI transmitiu ao pai seu “profundo respeito e agradecimento por sua decisão”. “O Rei deseja enfatizar a importância histórica que representa o reinado de seu pai, como legado e obra política e institucional de serviço à Espanha e à democracia; e, ao mesmo tempo, quer reafirmar os princípios e valores sobre os quais esta se assenta, no marco de nossa Constituição e do restante do ordenamento jurídico”, conclui a nota.

A decisão do rei emérito ocorre após as investigações iniciadas por promotores suíços e espanhóis sobre os supostos recursos de Juan Carlos I em paraísos fiscais. O advogado do rei emérito também divulgou um comunicado no qual afirma que, apesar da saída de Juan Carlos I da Espanha, seu cliente está à disposição do Ministério Público para qualquer procedimento ou ação que se considere oportuna.

A medida anunciada nesta segunda-feira se dá quase cinco meses depois que Felipe VI adotou, em 15 de março, sua decisão mais dolorosa: privar o pai da dotação de quase 200.000 euros (1,25 bilhão de reais) por ano que ele recebia em recursos públicos e renunciar a qualquer herança que lhe possa corresponder das contas dele no exterior. Mesmo considerando as dúvidas levantadas por essa decisão ―não se pode renunciar a uma herança enquanto não morre quem a concede―, seu significado era claro: o rei rompia as amarras com o pai, que encarnou a instauração da Monarquia constitucional na Espanha.

Os problemas de Juan Carlos I começaram em meados de 2018, quando agentes da Polícia Judiciária suíça enviados pelo procurador Yves Bertossa começaram a revistar a gestora de fundos de Arturo Fasana. Nessa investigação, Bertossa encontrou duas fundações com contas em bancos suíços. A fundação de Liechtenstein Zagatka, de Álvaro de Orleans, primo distante do rei emérito, que pagou voos particulares de Juan Carlos I e de Corinna Larsen; e a fundação panamenha Lucum, cujo primeiro beneficiário era Juan Carlos I e o segundo, Felipe VI.

Quando essa notícia veio a público, em março de 2020, o atual chefe de Estado anunciou que estava renunciando à herança de seu pai e informou que um ano antes Corinna Larsen havia enviado uma carta ao Palácio Zarzuela informando-o que o nome do atual Rei aparecia, junto com o de suas irmãs, como beneficiário dessa fundação. Na Casa Real se tomou a decisão de informar o Governo e recorrer a um cartório para rejeitar qualquer dinheiro dessas contas.

A investigação suíça revelou que em 8 de agosto de 2008 Arturo Fasana depositou na conta da Lucum no banco privado Mirabaud 100 milhões de dólares (530 milhões de reais) procedentes do Ministério das Finanças da Arábia Saudita. Quatro anos depois, o dinheiro foi transferido por ordem do então chefe de Estado para uma conta em Nassau (Bahamas) do banco Gonet & Cie em nome da empresa de fachada Solare, de propriedade de Corinna Larsen. Bertossa embargou as contas dos suspeitos e abriu um processo secreto de lavagem de dinheiro contra os envolvidos na criação da estrutura e no recebimento do dinheiro.

O rei emérito não está sendo investigado no momento, embora fontes judiciais suíças não descartem a possibilidade de que seja no futuro. As informações enviadas pela Suíça às autoridades judiciais espanholas levantaram dúvidas sobre o comportamento do rei emérito após junho de 2014, quando perdeu a blindagem constitucional da inviolabilidade. Embora já seja imputável, o rei emérito tem prerrogativa de foro no Supremo. Por isso, a procuradora-geral do Estado, Dolores Delgado, decidiu no início de junho que a Procuradoria do Tribunal Supremo deveria assumir o caso. Esta fase da investigação deve determinar se há indicações suficientes de que o ex-chefe de Estado tenha cometido algum delito desde que deixou o trono. Os investigadores trabalham fundamentalmente com dois: lavagem de capital (tentar ocultar a origem ilícita do dinheiro) e crime fiscal (uma fraude contra o tesouro público superior a 120.000 euros).



sábado, 4 de julho de 2020

Fotógrafos espanholes / Ramón Masats


Moral de Calatrava

Fotógrafos espanholes
Ramón Masats

Casa de Campo, Madrid, 1959

Mercado de San Antonio, Barcelona, 1955

Cádiz, 1963

segunda-feira, 6 de abril de 2020

O casal de 88 anos que superou junto o coronavírus

José e Guadalupe, casal recuperado da Covid-19 em sua casa de Villanueva de la Torre, na Espanha.foto de ÁLVARO GARCÍA


O casal de 88 anos que superou junto o coronavírus

Internados no mesmo quarto, os espanhóis Guadalupe e José receberam alta há poucos dias


Manuel Jabois
Madrid, 6 abr 2020

Passaram-se 70 anos desde que um dia, nas festas de Valdelageve (província de Salamanca, noroeste da Espanha), José Prieto Cerrudo subiu numa mula. Tinha chegado ao povoado com seu irmão procedente de Béjar, a 30 quilômetros, para ganhar um pouco de dinheiro nas festas. Ele tocava clarinete, e seu irmão, pratos. José viu a mula e montou-a para chamar a atenção de Guadalupe Matas Hernández, que tinha ido à quermesse com uma amiga. “A mula se chama Cana, e é minha”, disse ela. Com o rapaz em cima, o animal se jogou para frente abaixando a cabeça, e José saiu voando e se espatifou. Assim se conheceram Guadalupe e José, que começaram a se falar, primeiro em passeios, e depois através de cartas, porque Guadalupe, como muitas garotas do vilarejo, foi ser empregada de uma família em Madri. Casaram-se finalmente em 1955, tiveram sua primeira filha naquele ano, depois a segunda, depois a terceira, e continuaram tendo bebês à espera do menino que José queria. “Olha o que você arrumou por querer um menino”, disse-lhe ela um dia. Era 1971. Guadalupe e José eram pais de sete meninas.

As sete mulheres (Maite, Rosi, Irene, María José, Pilar, Maika e Bea) estiveram em vigília até a segunda-feira, 30 de março, quando seus pais saíram do hospital e puderam retornar à sua casa em ViIlanueva de la Torre (Guadalajara). Guadalupe e José têm 88 anos (ele completa 89 neste mês) e superaram o coronavírus. E isso numa fixa etária em que a Covid-19 registra na Espanha uma letalidade de 22,2%, e com a agravante de que José sofreu um AVC em 2012 que o deixou com graves sequelas físicas. Foi ele quem deu a voz de alarme em 4 de março, quando começou a tossir mais do que o habitual. “No dia seguinte o levei ao médico e lhe receitou antibióticos”, diz Rosi, uma das filhas.

Em 8 de março houve uma grande festa familiar na casa dos Prieto-Mata: Guadalupe e José completaram 65 anos de casados. Ele continuava tendo febre e dor de cabeça dias depois, apesar dos antibióticos. Foi ao hospital de Alcalá, onde se decidiu por sua internação no hospital da Cruz Vermelha de Madri. Era 14 de março, um sábado, primeiro dia de confinamento na Espanha. Ele tinha dado resultado positivo num exame de coronavírus.

Para não ficar sozinha, Guadalupe se mudou para a casa de uma das filhas em Madri. Lá começou a ter os mesmos sintomas que seu marido e acabou sendo internada, também com positivo de coronavírus, no hospital da Cruz Vermelha. Os dois se encontravam em diferentes andares. “Sentiam falta um do outro, não sabem estar separados. Meu pai, sobretudo. Meu pai é muito sensível, precisa que ela esteja com ele”, diz Rosi. José pediu, por favor, que Guadalupe ficasse no mesmo quarto. Seu médico, Jesús Lacasa, concordou.

Geralmente, se um dos dois pacientes (ou ambos) se encontra em estado muito grave, os médicos preferem não juntá-los: a ideia de que o estado de um deles piore e tenham que separá-los, mais a incerteza de não saber o que está acontecendo, é demolidora. Mas não foi o caso. “Quando estão em quartos diferentes, a pessoa fica o tempo todo pensando como está o seu cônjuge. São casais que passaram a vida inteira juntos, sabem que o outro está mal e nem se preocupa consigo mesmo, só lhe importa como estará o outro, e não saber desespera. Nossa política é reuni-los sempre que seu estado de saúde, dentro da enfermidade, não acarrete riscos. Neste caso, Guadalupe estava melhor e mais ativa que José, que estava mais doente”. Tanto é que, quando puderam lhe dar alta, respondeu que só sairia de lá com o marido.

Idosos também se curam. A maioria. Mas como é o retorno? “Se for uma pessoa que volta para um entorno familiar, ou com seu cônjuge, onde nada mudou, voltará com mais força e com mais alegria porque volta para seu entorno. É uma geração muito dura que superou desde uma guerra civil até a fome, a miséria, a morte de irmãos...”, diz o chefe de Geriatria do Hospital da Cruz Vermelha, Javier Gómez Pavón. Sua unidade deu alta nos últimos dias a dezenas de pessoas com idades que, em alguns casos, chegam a 90 anos.

Ou até mais. É o caso de Adoración González García, uma mulher de Sisterna (Astúrias, norte da Espanha) que tem 96 anos. Viúva de Manuel Gavela e mãe de três filhos, Ramón, Antonio e Mari Carmen. Boa saúde, ativa, fazia ginástica até alguns anos atrás. Há algumas semanas caiu da cama na residência para idosos de Meco, onde vive, e a pequena ferida a levou ao pronto-socorro. Lá, após fazer o exame, deu resultado positivo para coronavírus. Entre pessoas com mais de 90 anos, 26,7% dos pacientes com esse diagnóstico morrem. Não Adoración, uma mulher que em 1948 migrou sem um tostão das Astúrias para Madri com seu marido, criou três filhos e aprendeu o ofício de cabeleireira para montar um salão no passeio de Extremadura, a Peluquería Dora. Viu boa parte do século XX passar e está assistindo ao XXI. “Entenda, nos preparamos para o pior. Havia certa probabilidade de que falecesse. Mas sempre teve boa saúde, tinha bons exames. Nosso pai também morreu idoso, com a idade que tem ela agora”, diz seu filho Ramón.

Adoración retornou à residência e lá se encontra em quarentena desde a sua alta, esperando poder receber a visita da sua família. A vez dela ainda não tinha chegado. O EL PAÍS entrevistou Adoración em 2009 porque naquele ano fazia seis décadas que ela frequentava as filas das liquidações. “Eu, que sou o mais velho, ela me acordava às cinco da manhã para ir às liquidações quando eu era muito pequeno. Lembro de me aquecer na fila da Galerias Preciados, sempre um dos primeiros, com uma fogueira improvisada por outros que também estavam esperando”, diz Ramón.

José e Guadalupe, que agora vivem confinados no andar superior da sua casa, saíram neste domingo à janela para posar para o fotógrafo deste jornal. “Também achamos que as coisas podiam não sair bem, sobretudo por meu pai, que já estava mal. Mas é possível, claro que sim: a maioria pode”, diz sua filha Rosi.

Quando José se casou com Guadalupe, foram viver na casa dos pais dele, onde também moravam seus oito irmãos. Eram 12 vivendo ali. E ele foi embora para Madri, recomendado no aeroporto por um tio dele; em Barajas trabalhou como sinalizador e carregador de bagagens. Também vendia roupa pelos povoados, e vendia ouro. “Trabalhou a vida toda do que desse e fosse preciso para nos sustentar, ele fora e ela dentro, porque mamãe teve que se ocupar de nós sete”, diz Rosi, que recorda o conselho que dá aos seus pais nos almoços familiares: “Sempre digo que tinham que ter parado na segunda, que por acaso sou eu. A terceira diz que, para ela, três seria o número perfeito. A quarta acredita que com quatro bastava…”.

domingo, 15 de março de 2020

Rei da Espanha renuncia à herança e retira verba do orçamento da casa real destinada ao pai Juan Carlos


Felipe VI e Juan Carlos no palácio da Zarzuela.
Felipe VI e Juan Carlos no palácio da Zarzuela.


Rei da Espanha renuncia à herança e retira verba do orçamento da casa real destinada ao pai Juan Carlos

Decisão acontece depois que o Ministério Público Anticorrupção iniciou uma investigação sobre os supostos 100 milhões de euros que Juan Carlos I recebeu em uma conta suíça


Miguel González
Madrid, 15 Mar 2020

O rei Felipe VI decidiu renunciar à herança de Dom Juan Carlos “que lhe possa corresponder pessoalmente”, conforme anunciado neste domingo pela casa real, em um comunicado no qual também adianta que Dom Juan Carlos deixa de receber a quantidade de dinheiro que lhe era destinada pelo orçamento da casa real.

O comunicado do Palácio de la Zarzuela (sede da monarquia) lembra as palavras sobre a exemplaridade que Felipe VI pronunciou em sua posse. “Em coerência com as palavras proferidas em seu discurso de proclamação e com a finalidade de preservar a exemplaridade da Coroa, Sua Majestade o rei quer que seja sabido publicamente que Sua Majestade o rei Dom Juan Carlos está ciente de sua decisão de renunciar à herança que lhe possa corresponder pessoalmente, bem como a qualquer ativo, investimento ou estrutura financeira cuja origem, características ou finalidade possam não estar em consonância com a legalidade ou com os critérios de retidão e integridade que regem sua atividade institucional e privada e que devem informar a atividade da Coroa”, afirma o texto.

A casa real também informa que o Rei emérito deixará de receber a dotação orçamentária que lhe outorga anualmente em virtude dessa condição e que nos últimos exercícios atingiu os 194.232 euros (cerca de 1,044 milhão de reais) por ano.


Juan Carlos I, king of Spain | Caricaturas de famosos, Caricaturas ...
Juan Carlos I
A decisão da casa real acontece depois que o Ministério Público Anticorrupção iniciou uma investigação sobre os supostos 100 milhões de euros que Juan Carlos I recebeu em uma conta suíça em nome de uma fundação panamenha procedentes da monarquia saudita, como este jornal adiantou. O diário The Telegraph afirmou neste sábado que o atual chefe de Estado era beneficiário das fundações supostamente criadas por Juan Carlos para administrar esse dinheiro. Agora Felipe VI se distancia dessas organizações no comunicado. “Em relação às notícias que apareceram no dia sobre as entidades denominadas ‘Fundação Zagatka’ e ‘Fundação Lucum’, Sua Majestade o rei desconhece por completo e até hoje sua suposta designação como beneficiário.”

No primeiro caso (Zagatka), la Zarzuela afirma que o Rei o desconhecia, mas que, em todo caso, renuncia a ela; no segundo (Lucum), que teve conhecimento por um escritório de advocacia em março de 2019 e que em abril compareceu perante um notário para manifestar que havia endereçado uma carta ao pai para que “se for verdadeira sua designação ou da princesa de Astúrias como beneficiários da mencionada fundação, deixasse sem efeito tal designação, manifestando igualmente que não aceitaria participação ou benefício algum nessa entidade”. O comunicado também afirma que Dom Juan Carlos pediu “que se tornasse público” que “as duas fundações anteriormente citadas em nenhum momento forneceram informações” a seu filho e que “nomeou para sua representação o advogado Javier Sánchez-Junco Mans que, no exercício do direito de defesa, será a partir de agora quem responderá publicamente pelas informações que possam afetá-lo”.


sábado, 25 de maio de 2019

Vargas Llosa / Eleições na Espanha

Eleições na Espanha

Para que o país não corra o risco de se desintegrar é indispensável uma vigilância constante do eleitorado que concedeu ao PSOE de Pedro Sánchez sua formidável vitória

Mario Vargas Llosa
4 mai 2019

Como o Partido Popular temia que a hemorragia de votantes para o partido nacionalista de ultradireita Vox lhe tirasse muitos votos, direitizou-se o máximo que pôde. O resultado foi que, nas eleições de 28 de abril, perdeu à sua esquerda quase toda a centro-direita que o apoiava. E teve o pior resultado de toda a sua história, perdendo mais de 3,6 milhões de votos.


Ninguém sabe para quem trabalha. O Vox, transformado pela esquerda no Lobo Mau desta campanha eleitoral, com seus ataques à “direitinha covarde”, contribuiu de maneira significativa para a debacle do Partido Popular. Entrou no Parlamento com 24 deputados, mas ficará lá, provavelmente, só para que os socialistas, independentistas e comunistas utilizem seus desplantes e imprecações de vozeirão nacionalista como os alarmes de um “fascismo” em perspectiva. Essa política justificará, sem dúvida, algumas medidas acertadas, mas também outras ruins e muitas péssimas. A verdade é que a sociedade espanhola já é suficientemente democrática para acolher em seu seio um movimento verdadeiramente fascista. Formado por famílias conservadoras atordoadas com a modernização da sociedade espanhola e por grupos nostálgicos do franquismo, é provável que o Vox tenha alcançado seu limite máximo de aceitação nestas eleições: 10% dos votos. Mas os estragos que causou foram, estes sim, numerosos. Entre eles, ter prestado um serviço involuntário, mas de grande importância, ao movimento de independência catalão, como veremos mais adiante.
O partido de Albert Rivera, Cidadãos, no qual votei, é o outro grande vencedor destas eleições. Desesperados diante da vitória contundente do PSOE e de sua possível aliança com o Podemos, muitos empresários, líderes sociais e famílias de classe alta e média pensam que uma aliança entre os socialistas e o Cidadãos livraria a Espanha de uma Frente Popular em que ambos teriam de incluir também partidos independentistas bascos ou catalães. O que querem é uma ilusão impossível.

Com seus ataques à “direitinha covarde”, o Vox contribuiu de maneira importante à debacle do PP

O que o Cidadãos e Rivera ganhariam com tal aliança? Nada, apenas um desprestígio considerável logo depois que seu líder enfatizou, durante toda a campanha eleitoral, que descartava categoricamente um pacto de Governo com o PSOE. É verdade que os políticos mudam de opinião com frequência, mas não quando existe um plano de ação perfeitamente traçado e que os resultados eleitorais mostram estar muito bem encaminhado. Albert Rivera quer liderar a oposição ao Governo socialista e, depois, ser ele próprio o Governo. Foi por isso que atacou tão duramente o Partido Popular nesta campanha, buscando uma ultrapassagem que esteve a ponto de conseguir. Essa política lhe trouxe um considerável poder eleitoral − e conhecendo-o, tendo acompanhado toda sua carreira política, não acredito que em troca de alguns ministérios Albert Rivera vá fazer um haraquiri.
Em vez de sonhar com o impossível, é melhor aceitar a dura realidade. O que significa que é quase garantido que o Governo que conduzirá a Espanha pelos próximos quatro anos terá como base um acordo entre os socialistas e o Podemos, que, como juntos não alcançam a maioria parlamentar necessária para governar, incluirão provavelmente um terceiro aliado, ou seja, independentistas bascos ou catalães.
O triunfo do PSOE, impecável do ponto de vista democrático, tem uma nuance muito importante. O socialismo atual não é a social-democracia de Felipe González. Está muito mais próximo do socialismo radical de Rodríguez Zapatero, o que permite prever aumentos significativos de impostos devido a reformas sociais ousadas, mas não financiáveis, e talvez uma crise econômica e financeira em médio prazo. Embora, na forma, Pablo Iglesias tenha se moderado muito nesta campanha eleitoral, a ponto de dar aulas de boa educação e temperança a seus adversários, ele não renunciou à revolução social, e sua aliança com o PSOE incluirá, quase certamente, aumentos de salários e exigências de que os empresários e as grandes fortunas os custeiem, o que, cedo ou tarde, retrairá ou paralisará os investimentos. Por sorte, a Espanha está dentro da Europa, e a União Europeia pode atenuar, mas não eliminar (lembremo-nos da Grécia), os esbanjamentos socialistas.
Com certeza a política externa da Espanha mudará com o novo regime, no pior dos sentidos. Por exemplo, no apoio que tem dado à democratização da ditadura venezuelana ou nas pressões internacionais para que o regime do comandante Ortega e de sua mulher na Nicarágua acabe com as perseguições e matanças, solte as centenas de presos políticos e aceite eleições livres, com observadores internacionais que vigiem a limpeza da votação. Há um precedente mais do que alarmante sobre esse assunto: a conduta de Rodríguez Zapatero nas conversações de paz na República Dominicana e seus conselhos à oposição para que aceitasse participar de eleições que estavam forjadas de antemão para favorecer Nicolás Maduro.
Mas é principalmente na questão do independentismo catalão que pode ocorrer uma mudança drástica. Antes das eleições houve algumas conversações entre o presidente do Governo espanhol, Pedro Sánchez, e o presidente da Generalitat catalã, Joaquim Torra, nos quais, aparentemente, ocorreram concessões ao independentismo − como aceitar um “relator internacional” nas negociações −, e nelas eles teriam chegado a falar inclusive do referendo, a exigência básica dos independentistas. O “direito de votar” existe na Constituição espanhola, sem dúvida, mas é o de todos os espanhóis se se trata da secessão de um território da pátria comum, e não o direito excludente dos habitantes do território suscetível de se emancipar. No entanto, Miquel Iceta, líder do Partido Socialista Catalão, o PSC, associado ao PSOE, já declarou de antemão ser favorável a esse “referendo pactuado” (o adjetivo está aí só para tranquilizar os pobres de espírito), e Pablo Igrejas tem se cansado de repetir que o “problema catalão” só será resolvido através do diálogo nessa “nação de nações” que é a Espanha. É óbvio que se o Governo espanhol reconhecer o direito de os catalães decidirem, com que argumentos isso seria negado depois aos bascos, galegos, valencianos etc.?
Nada disto ocorrerá obrigatoriamente, mas poderia ocorrer e, se assim fosse, temo que, em longo prazo, sobreviria a desintegração da Espanha. Para que não aconteça, é indispensável uma vigilância constante desse mesmo eleitorado que concedeu ao PSOE sua formidável vitória. A dissolução da velha Espanha não traria benefícios – e sim prejuízos enormes − a todos os espanhóis, sem exceção, começando por aqueles determinados a obter uma independência que, dados os tempos atuais e as obrigações que a Espanha tem com a União Europeia, seria uma mera aparência repleta de problemas monumentais. Ou seja, mais pobreza, carestia, dívidas e desemprego para quem sonha com a soberania como uma panaceia milagrosa.



sábado, 19 de janeiro de 2019

Vargas Llosa / As meias verdades


As meias verdades

Independentistas catalães têm liberdade na Espanha para expressar suas ideias e convicções. O que não podem fazer é transgredir a lei e cometer um golpe de Estado, como tentaram em outubro de 2017


MARIO VARGAS LLOSA
19 JAN 2019 - 18:00 COT

Como ex-presidente do PEN Internacional (entre 1977 e 1980) e atual presidente emérito dessa organização de escritores que, fundada na Inglaterra no século passado, travou tantas batalhas a favor da liberdade de expressão e do direito de crítica no mundo, tenho que declarar minha tristeza e minha vergonha pelo texto A Troubling Trend: Free Expression Under Fire in Catalonia (“uma tendência preocupante: liberdade de expressão sob ataque na Catalunha”), que o PEN de Nova York acaba de publicar em seu boletim informativo. Infestado de meias verdades − mentiras dissimuladas −, o texto exagera e distorce o que ocorre na Espanha com o movimento independentista catalão e dá a impressão de que é um país no qual se restringe a liberdade de pensamento, pisoteiam-se direitos democráticos elementares, impede-se o voto dos cidadãos e onde juízes insones proíbem aos cantores e comediantes as zombarias e os excessos toleráveis em todas as sociedades abertas do resto do mundo.

Os autores do texto − Alyssa Edling e Thomas Melia − que o centro nova-iorquino publica recordam que o PEN norte-americano “não toma posição sobre o tema da independência catalã”, para depois endossar todas as patranhas que o centro catalão do PEN (que eu ajudei a ressuscitar durante minha presidência!) divulgou, como órgão militante do movimento de independência, sem submetê-las à mais mínima verificação, e, pior ainda, ocultando fatos básicos, de modo que uma entidade de prestígio e de impecáveis credenciais democráticas aparece difundindo pelo mundo o que são, simplesmente, invenções e calúnias da propaganda política.

Quando afirma que o referendo de 1º de outubro de 2017 foi “disrupted” (interrompido) pela polícia que confiscou as urnas e dispersou os votantes “em ações brutais”, exagera muito: de onde saem essas 893 pessoas feridas que menciona, se apenas duas pessoas com ferimentos passaram pelo hospital? O mais grave é aquilo que oculta: que o referendo em questão era completamente ilegal, proibido pela Constituição e pelas leis vigentes na Espanha, ou seja, um golpe de Estado. O Governo da Espanha tem o direito e a obrigação de impedir um ato de força como esse, da mesma forma que os Estados Unidos teriam se o Texas ou a Califórnia pretendesse se tornar independente e romper a União através de uma consulta local. Não foram as autoridades que “declararam” ilegal a consulta catalã. É a Constituição espanhola em vigor − aprovada com a imensa maioria dos votos dos catalães − que exclui que uma província ou região da Espanha possa se tornar independente por meio de uma consulta local. Todos os espanhóis devem se pronunciar, como é lógico, sobre o rompimento de uma unidade territorial formada há cinco séculos.

O texto sustenta que é uma “restrição inaceitável à expressão pacífica e livre” dos catalães o fato de que tenham sido impedidos de votar naquela ocasião. Como se, desde que a atual Constituição está em vigor (1978), não tivessem existido dezenas de ocasiões em que catalães em particular, e espanhóis em geral, votaram em eleições locais, nacionais e europeias! Mais uma vez, a astuta omissão – a de que aquele referendo era delituoso − permite apresentar a Espanha como uma sociedade na qual um Governo autoritário priva seus cidadãos da mais elementar garantia democrática.








Com mentiras dissimuladas, o PEN de Nova York exagera e deforma o que ocorre na Espanha e na Catalunha

Para o texto, os músicos e comediantes que foram processados (e, muitas vezes, absolvidos de qualquer culpa, como aquele que limpou o nariz com uma bandeira da Espanha) por iniciativa de organismos da sociedade civil ou por procuradores e juízes (aqui tão independentes como nos Estados Unidos) são indícios dessa “tendência preocupante” de privar os espanhóis da liberdade de se expressar e de exercer a crítica. Para alguém que vive na Espanha como eu, tal caricatura tem pouco a ver com a realidade deste país, que é um dos mais livres do mundo e permite em seu seio a crítica e os protestos até extremos delirantes. Aqui são lançados panfletos contra o Rei e a monarquia e insultados sem escrúpulo os líderes políticos, habitualmente submetidos a uma vigilância implacável por seus adversários e por uma imprensa independente capaz de invadir a intimidade a tal ponto que é possível afirmar que na Espanha o “privado” já não existe. No domínio político, as razões e críticas se confundem frequentemente com injúrias ferozes.
Os independentistas catalães têm na Espanha a mais absoluta liberdade para expressar suas ideias e convicções, assim como jornais, rádios e canais de televisão que as difundem e defendem. O que não podem fazer é, em nome delas, transgredir a lei e cometer um golpe de Estado, que foi o que tentaram em 1º de outubro de 2017. Por esse suposto delito serão julgados vários políticos catalães, que foram detidos preventivamente a fim de evitar o risco de que fugissem, como fizeram alguns de seus cúmplices, que escaparam para ficar sob proteção da Bélgica em uma região dominada pelos nacionalistas flamengos ultrarreacionários, que, é claro, sentem-se solidários com o movimento de secessão catalão.





A transformação da Espanha, graças à Transição, assombrou ao mundo por ter sido tão pacífica e profunda

Trabalhei muito quando fui presidente do PEN Internacional com o centro nova-iorquino, quando este era dirigido pela historiadora e ensaísta norte-americana Frances Fitzgerald. Era uma época de ditaduras abundantes em toda a América Latina e fizemos campanhas denunciando os crimes que eram cometidos pelos militares argentinos, uruguaios, chilenos, brasileiros, et cetera, assim como contra a censura e os atropelos da liberdade de expressão no resto do mundo. Como escritor e latino-americano, sei muito bem os abusos que os regimes autoritários de esquerda ou de direita cometem e fui vítima da censura em muitos lugares. Aqui, por exemplo, na Espanha, quando, na época de Franco, foi publicado meu primeiro livro de contos, tive que levar o manuscrito à censura, uma casinha anódina e sem nenhuma placa, onde se entregava o texto a um sujeito anônimo e se passava, dias depois, para recolhê-lo. O censor tinha marcado com um lápis vermelho as frases e palavras − às vezes capítulos − que deveriam ser suprimidos ou emendados.

Daquela Espanha, felizmente, resta muito pouco. A transformação vivida por este país, graças à Transição, assombrou o mundo por ter sido tão pacífica e profunda. Com o colapso da ditadura de Franco, e encorajadas pelo rei Juan Carlos, todas as forças políticas, de conservadores a comunistas, concordaram em acabar para sempre com a Guerra Civil e coexistir em liberdade, em um regime democrático e sob uma Constituição, a mais livre que a Península Ibérica já teve em toda sua história. Desde então, a Espanha desfruta de uma liberdade que nunca conheceu antes e que muito poucas sociedades no mundo têm.


O PEN de Nova York faria muito melhor se se preocupasse com os crimes contra escritores e jornalistas cometidos debaixo de seus narizes na Venezuela, em Cuba ou na Nicarágua – onde, além de jornais, rádios e estações de televisão serem fechados, são presos, torturados e assassinados opositores − em vez de servir de caixa de ressonância para as mentiras dos separatistas catalães.

sábado, 15 de setembro de 2018

Vargas Llosa / História e ficção



História e ficção

Livro de Roca Barea sobre a lenda negra espanhola questiona as próprias bases da História como uma ciência objetiva, pois demonstra que em muitos casos ela se acomoda às urgências do poder


MARIO VARGAS LLOSA
15 SET 2018 - 17:00 COT

Um livro de erudição rigorosa pode ser divertido? É raro, mas acontece no caso de Imperiofobia y Leyenda Negra (Imperiofobia e Lenda Negra), de María Elvira Roca Barea, que acabo de terminar. É aguerrido, profundo, polêmico, e é lido sem pausas, como um romance policial em que o leitor voa sobre as páginas para saber quem é o assassino. Confesso que há tempos não lia um livro tão ameno e estimulante.
Seu subtítulo é Roma, Rússia, Estados Unidos e o Império Espanhol. E é verdade que a autora se ocupa também das lendas negras geradas pelos três primeiros impérios, mas sua principal ocupação, com profundidade e utilizando com desenvoltura uma impressionante bibliografia, é a construção intelectual e fictícia que há séculos distorce profundamente a história da Espanha e ridiculariza seu povo. De acordo com ela, ainda está muito viva, porque os próprios espanhóis não quiseram e não souberam contra-atacá-la, dando as costas a essas caricaturas que os apresentavam como fanáticos, perversos, ignorantes e inimigos viscerais da ciência, da modernidade e da civilização.
Segundo Roca Barea, a lenda negra anti-espanhola foi uma operação de propaganda montada e alimentada ao longo do tempo pelo protestantismo especialmente em suas versões anglicana e calvinista —contra o Império Espanhol e a religião católica para afirmar seu próprio nacionalismo, demonizando-os até extremos pavorosos e chegando a privá-los de humanidade. Dá exemplos abundantes e de toda espécie sobre isso: tratados teológicos, livros de história, romances, documentários e filmes de ficção, quadrinhos, piadas e até conversas pós-refeição. A extensão e duração da lenda negra teve a contribuição da indiferença com que o Império Espanhol, primeiro, e depois seus intelectuais, escritores e artistas, em vez de se defender, em muitos casos tornaram sua a lenda negra, avalizando seus excessos e fabricações como parte de uma feroz autocrítica que fazia da Espanha um país intolerante, machista, lascivo e em luta com o espírito científico e a liberdade.
Você sabia que as degolas e esquartejamentos de católicos na Inglaterra de Henrique VIII e da rainha Elizabeth I, e nos Países Baixos de Guilherme de Orange, foram infinitamente mais numerosos do que as torturas e justiçamentos em toda a história da temível Inquisição Espanhola? Sabia que a censura de livros na França, Inglaterra e Alemanha foi tão ou mais severa do que na Espanha? O ensaio de Roca Barea prova tudo isso de maneira inequívoca, mas também inútil, pois, como mostra seu livro —é o mais inquietante dele—, quando uma dessas ficções malignas (hoje diríamos pós-verdades) encarna na história substituindo a verdade, alcança uma solidez e realidade que resiste a todas as críticas e desmentidos e sempre prevalece sobre eles. A ficção traga a história. Por isso, as batalhas de Napoleão narradas por Victor Hugo e Tolstói sempre nos parecem, apesar de seus abundantes erros, mais certas do que as dos historiadores mais rigorosos.
Pois bem, no livro de Roca Barea aparecem historiadores de muito prestígio, como o alemão Leopold von Ranke e o inglês Thomas Macaulay —existem muitos outros pensadores e artistas não menos distintos, como um Voltaire e um Edgar Allan Poe—, que, talvez sem ser conscientes disso, contribuíram para a lenda negra. E perpetraram distorções flagrantes à verdade histórica acomodando em seus livros os fatos de tal modo que confirmaram em vez de refutar os exageros e mentiras inventados para desprestigiar e afundar moral e politicamente o “inimigo” imperial e “papista”. A autora de Imperiofobia y Leyenda Negra não considera que tudo isso venha de uma conspiração conscientemente forjada pelos poderes; tudo isso é, evidentemente, encorajado e às vezes financiado pelo poder, mas também nasce de maneira espontânea, como uma excrecência natural do nacionalismo, que se forma e fortalece sempre contra algo ou alguém, pois precisa de um inimigo a quem odiar para poder subsistir. E a Espanha do Século do Ouro, quando a lenda negra é mais ativa, era o mais poderoso império da Europa e, certamente, o inimigo obrigatório dos países que pretendiam substituí-lo. E das denominações religiosas que queriam ser as mais genuínas herdeiras das verdades bíblicas.
Dessa maneira indireta, o livro de Roca Barea, sem sequer ter proposto tal coisa, questiona as próprias bases da História como uma ciência objetiva, pois sua pesquisa demonstra que em muitos casos nela se infiltra, em razão das circunstâncias e das pressões religiosas e políticas, a ficção como um elemento que desnaturaliza a verdade histórica e a acomoda às urgências ideológicas do poder estabelecido. E não há ácido mais eficaz e inescrupuloso na alteração das verdades históricas do que o nacionalismo, como os espanhóis têm a ocasião de comprovar atualmente com o desafio independentista da Catalunha, que, além de se rebelar contra a Constituição e as leis, se empenha em refazer a história e transformá-la em uma ficção a seu serviço.
O livro de Roca Barea é muito bem escrito, com uma prosa elegante, argumentos pertinentes e por vezes com uma ironia alegre que atenua a gravidade dos assuntos dos quais trata. Salta às vezes do passado remoto à atualidade, para mostrar que há entre ambos uma concatenação secreta e, frequentemente, indica nas notas o dia exato em que fez aquela citação e verificação nos arquivos (algo que, acredito, se faz pela primeira vez).
A autora desse livro extraordinário me dá um puxão de orelhas, em uma de suas páginas, por ter lembrado que o romance como gênero literário esteve proibido na América Espanhola durante os três séculos coloniais, porque as autoridades religiosas e políticas espanholas consideraram que as invenções disparatadas desses livros poderiam confundir os indígenas e distraí-los dos ensinamentos religiosos. É, acho, o único caso na história em que um gênero literário foi proibido. Roca Barea me recorda que naquela época surgiu na Espanha o romance picaresco (poderia ter mencionado também o principal romance: Dom Quixote). Minha afirmação não é parte da lenda negra, mas se trata de uma verdade inequívoca. A proibição, que existiu e foi reiterada várias vezes ao longo daqueles trezentos anos, dizia respeito somente às colônias, não à metrópole. E, ainda que a proibição tenha funcionado no que se refere à publicação de romances, não impediu que, graças ao profuso contrabando, os romances tenham sido lidos fartamente nas colônias americanas. Mas o primeiro romance, como tal, só foi publicado no México, após a independência: El Periquillo Sarniento (1816). Todas as boas histórias da literatura hispano-americana (recomendo as duas melhores, ou seja, a de Enrique Anderson Imbert e a de José Miguel Oviedo) reproduzem essas proibições que, desde meus anos de estudante, sempre me fascinaram. Por que a ficção foi proibida como tal? O resultado foi que, ceifada a fonte natural da ficção, que é o romance, tudo na América Latina passou a ser impregnado pela ficção proibida: não só os gêneros literários como a poesia e o teatro, também a religião, a política e a própria vida da sociedade e das pessoas.

sábado, 30 de setembro de 2017

Vargas Llosa / A hora zero



Fernando Vicente

A hora zero

A independência catalã seria trágica para a Espanha e para a Catalunha, que teria caído nas mãos de demagogos que a levariam à ruína


MARIO VARGAS LLOSA
30 SET 2017 - 21:29 COT


Haverá referendo hoje na Catalunha? Espero ardentemente que, em um ato de bom senso, a Generalitat o tenha cancelado, mas, por outro lado, conheço de sobra os altos níveis de obstinação e irrealidade que todo nacionalismo carrega, então não é impossível que, apesar de tudo – e esse “tudo” é muitíssimo – os dirigentes do Govern catalão se empenhem em incitar seus seguidores a desobedecerem a lei e votarem. Se isso acontecer, o chamado referendo será uma caricatura de consulta, vai irritar a legalidade, sem censo de eleitores, nem urnas autorizadas, nem representantes, nem listas eleitorais, com uma porcentagem mínima de participantes e só independentistas, ou seja, o monólogo patético de uma minoria cega e surda à racionalidade, pois, de acordo com as pesquisas, pelo menos dois terços dos catalães admitem que o referendo carece de validade legal. Servirá apenas para alimentar o vitimismo, ingrediente essencial de toda ideologia nacionalista, e acusar o Governo espanhol de ter violentado a democracia, impedindo que o povo catalão exerça o direito de decidir seu destino através da mais pacífica e civilizada via democrática, que é a do voto.
Escrevo este artigo longe da Espanha, em seus antípodas, e desconheço os últimos episódios deste problema que colocou todo o país em xeque nas últimas semanas. Mas talvez a distância seja boa para perguntar calmamente o que levou a Catalunha, uma das regiões mais cultas e cosmopolitas da Espanha, a deixar crescer em seu ventre, de maneira tão extensa, essa antiquada, provinciana e aberrante ideologia que é o nacionalismo. Como é possível que milhares de jovens universitários e escolares de uma sociedade moderna, que faz parte do mais generoso e idealista projeto democrático do nosso tempo, a construção da Europa, concebido precisamente como uma fortaleza contra os nacionalismos que banharam a história em sangue e cadáveres, tenham agora a ilusão política de se encastelar em uma sociedade fechada e obsoleta, que retrocederia e empobreceria brutalmente a Catalunha, pois sairia do euro e da União Europeia e teria um processo longo e difícil para voltar?
A resposta não pode ser a dada pelos nacionalistas, que isso acontece porque a “Espanha rouba a Catalunha”, pois, precisamente, desde a queda da ditadura de Franco e a transição para a democracia, essa região obteve gradualmente a maior atribuição de competências econômicas, culturais e políticas de toda a sua história. Pode não ser suficiente, é claro, e talvez tenha havido negligência por parte dos Governos centrais em atender às demandas da Catalunha; mas isso, que tem uma saída perfeitamente negociada dentro da legalidade, não pode justificar a pretensão de cortar, unilateralmente, quinhentos anos de história comum e romper com o resto de uma comunidade que está presente e imbricada de mil maneiras na sociedade e história catalãs.




Nada poderia ser mais incompatível com o provincianismo racista e anacrônico do nacionalismo que a grande tradição cultural bilíngue da Catalunha

Nada poderia ser mais incompatível com o provincianismo racista e anacrônico do nacionalismo que a grande tradição cultural bilíngue da Catalunha, com seus artistas, músicos, arquitetos, poetas, romancistas, cantores, que estiveram quase sempre na vanguarda, experimentando novas formas e técnicas, abrindo-se para o resto do mundo, assimilando o novo com fruição e espalhando-o pelo resto da Espanha. Como um Gaudí, um Dalí ou Tàpies se encaixam com um Puigdemont e um Junqueras? E um Pla, Foix, um Marsé, um Serrat ou um Cercas com Carme Forcadell ou Ada Colau? Existe tal abismo gigante entre o que representam uns e outros que custa imaginar alguma linha de continuidade cultural ou ideológica que possa uni-los.
A explicação está certamente em um trabalho de doutrinação sistemática que, começando nas escolas e se projetando para todo o conjunto da Catalunha através dos grandes meios de comunicação, orquestrada e financiada pelo Governo catalão desde os anos de Jordi Pujol e seus seguidores, foi se infiltrando nas novas gerações até impregná-las com a ficção perniciosa que todo nacionalismo significa. Uma doutrinação que não foi neutralizada pela negligência ou a crença ingênua de parte do Governo e da elite política e intelectual do resto da Espanha de que aquela criação mentirosa não se firmaria, que a sociedade catalã saberia resistir, que o problema iria se resolver sozinho. Não foi assim, e essa negligência irresponsável está hoje por trás de um monstro que cresceu e levou boa parte da Catalunha para o lado separatista, que, mesmo que não triunfe – e acredito firmemente que não triunfará –, pode mergulhar a Espanha em uma crise traumática cuja consequência nefasta, entre outras, poderia ser paralisar o processo de recuperação econômica que já custou tantos sacrifícios aos espanhóis.
Um setor minoritário da extrema esquerda se uniu com o movimento de independência catalã, e outro, mais numeroso e mais sensível, exige o diálogo. Não há dúvida de que este último parece indispensável. O problema, porém, é que, para que seja possível um diálogo frutífero, deve haver algum denominador comum entre os interlocutores. Isso já existiu no passado, e foi lamentável que naquele momento as negociações não tivessem acontecido. Mas agora, embora não seja impossível, é muito mais difícil dialogar com aqueles que não aceitam outra opção a não ser “a secessão, sim ou sim” e têm em sua intransigência o apoio de um setor significativo da população catalã.




A independência da Catalunha seria trágica para a Espanha e, especialmente, para a Catalunha, que teria caído nas mãos de uma ideologia retrógrada e bárbara e de demagogos que a levariam à ruína

É preciso criar pontes primeiro, reconstruir aquelas que estão quebradas. E este é um trabalho essencialmente cultural. Convencer os menos fanatizados e recalcitrantes de que o nacionalismo – todo nacionalismo – sempre foi uma epidemia catastrófica para os povos, que só produziu violência, isolamento, exclusão e racismo, e que, especialmente nesta era de globalização universal que está desfazendo gradualmente as fronteiras, é suicida querer resistir a esse processo extremamente benéfico para toda a humanidade. E explicar que a Espanha precisa da Catalunha tanto quanto a Catalunha precisa da Espanha para se integrar melhor na grande aventura da Europa e perseverar – aperfeiçoando sem trégua – nesta democracia que trouxe a este país as condições de vida que são as mais livres e prósperas de toda a sua história. A independência da Catalunha seria trágica para a Espanha e, especialmente, para a Catalunha, que teria caído nas mãos de uma ideologia retrógrada e bárbara e de demagogos que a levariam à ruína. Tudo que há de justo nas exigências de soberania pode ser alcançado dentro da unidade, através de negociações, sem criar fraturas na legalidade que, neste último meio século, fez da Espanha um país livre e democrático. Não devemos esquecer que, durante a transição, o mundo inteiro olhava para a Espanha como um exemplo a seguir, por ter transitado tão rapidamente e de maneira cautelosa e pacífica para a democracia, com a atitude tolerante e solidária de todos os partidos políticos e a aprovação da grande maioria da nação. Não é tarde demais para retomar aquele ponto de partida solidário que trouxe tanto bem para o conjunto dos espanhóis, começando pelo mais importante, que é a liberdade. Por todos os meios racionais possíveis, é necessário convencer os catalães de que o nacionalismo é um dos piores inimigos que a liberdade possui, e que este período nefasto deve ficar para trás, como um pesadelo que desaparece ao acordar.