sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Dik Browne / Hagar o Horrível

 

Dick Browne

Dik Browne

Nascido Richard Arthur Allan Browne em 11 de agosto de 1917 na cidade de Nova York, criou-se no bairro do Bronx. Aos 16 anos já era revisor no American Journal, onde conheceu o mundo dos artistas. Tentou a carreira de repórter, mas não deu certo. Foi quando descobriu seu talento para o desenho. Veio a guerra e Dik serviu na divisão de cartógrafos, na Alemanha. Depois do conflito, foi trabalhar na Newsweek ilustrando reportagens. Em 1954, surgiu a série Hi & Lois, que lhe rendeu o Reuben Award da National Cartoonists Society como o melhor quadrinhista de 1962. Hagar só nasceria em 5 de fevereiro de 1973, série que lhe rendeu outro Reuben Award nesse mesmo ano, tornando-se o único quadrinhista a ser homenageado por dois trabalhos diferentes. Morreu em 4 de junho de 1989, em Sarasota, mas o personagem Hagar continua vivo até hoje pela mãos do filho de Dik, Chris.

Fonte: CCQHumor




O viking mais famoso de todos os tempos vem aí! Seguindo as mais nobres tradições nórdicas, Hagar, o horrível, precisa se defender dos inimigos e, sobretudo, cuidar da família. Mas apesar de atravessar mares, enfrentar tempestades e vencer batalhas, o que importa mesmo para esse grande guerreiro é... o jantar!

Quebrando todos os recordes, Hagar apareceu em centenas de jornais logo na estreia, em 4 de fevereiro de 1973 – mais que qualquer outro quadrinho antes disso. Esta primeira parte da saga reúne todas as tiras diárias publicadas entre 5 de fevereiro de 1973 e 8 de junho de 1974, período que ajudou a tornar Hagar um dos mais populares personagens de todos os tempos. Pegue o seu capacete e sua espada: vamos partir para uma época em que os vikings eram barbudos, gorduchos e preguiçosos

Nosso pai, Dik Browne, era o próprio Hagar, o horrível. Grande e forte, gordo e barbudo, durão e afetuoso, divertido e esperto, e humano o tempo todo. Ele adorava história e amava sua família, então criou Hagar, uma combinação das duas coisas. Ele espelhou a família de Hagar na nossa. Hagar era uma espécie de Tony Soprano do século XI – ele faria qualquer coisa para sustentar e proteger sua família.” Trecho da introdução de Chris & Chance Browne

Um grande historiador certa vez afirmou que a história é como um rio sangrento e flamejante que atravessa os séculos. Mas em suas margens as pessoas se ocupam apenas com as coisas de sempre – criar os filhos, pagar as contas, fazer amor, jogar dados, enfim... É mais ou menos assim que me sinto em relação a Hagar, o horrível. Ele é um guerreiro viking, e sem dúvida nenhuma um bárbaro, mas também é um homem de família, um marido carinhoso e um pai dedicado.” - Dik Browne


LPM EDITORES





terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Morreu Wolf Erlbruch, ilustrador de livros infantis

Wolf Erlbruch


Morreu Wolf Erlbruch, ilustrador de livros infantis


O ilustrador e escritor alemão de livros infantis Wolf Erlbruch, vencedor do Prémio Memorial Astrid Lindgren, morreu no domingo, em Wuppertal, aos 74 anos, anunciou hoje a sua editora.

12 de decembre de 2022

"Lamentamos a perda do nosso autor, ilustrador e companheiro de longa data Wolf Erlbruch", indica a Peter Hammer Verlag, em comunicado de imprensa, acrescentando que o autor "foi um dos artistas de livros ilustrados de maior renome internacional".

A ilustração da história "A toupeira que queria saber quem lhe fizera aquilo na cabeça", de Werner Holzwarth, tornou-se o ponto de partida da sua carreira como ilustrador de livros, em 1989.

Com 17 livros ilustrados, 20 edições de calendários para quartos de crianças e inúmeras capas, "moldou o rosto da editora durante décadas e estabeleceu padrões artísticos", acrescenta a Peter Hammer Verlag. Outra editora dos seus livros, Carl Hanser Verlag, declarou que se perdeu "um artista com uma linguagem visual inconfundível".

Para esta casa editorial fundada em 1928, Wolf Erlbruch foi "um desenhador excecional, mas sobretudo um 'designer' e ilustrador inovador", que se afirmou como um definidor de estilo para cada nova geração até aos dias de hoje, através do seu manuseamento invulgar de tecnologia e material visual".

Nascido em junho de 1948, em Wuppertal, onde viveu sempre, estudou design gráfico, tendo depois trabalhado como freelancer na indústria da publicidade.

Publicou ilustrações em revistas internacionais, incluindo Esquire, GQ Magazine New York, Stern, Transatlantic e Twen.

Ao todo, é autor de cerca de 30 livros, pelos quais recebeu vários prémios, incluindo o Prémio Alemão de Literatura Juvenil (por diversas vezes e também pela obra de vida), o prémio internacional mais importante na área da literatura infantojuvenil, o Prémio Hans Christian Andersen, em 2006, e o Prémio Memorial Astrid Lindgren, em 2017.

Foi várias vezes distinguido com o prémio de ilustração do Art Director Club (ADC), em Nova Iorque.

Wolf Erlbruch exerceu como professor de ilustração na Universidade de Ciências Aplicadas de Dusseldorf, de 1990 a 1997, como professor no Departamento de Arte de Design Arquitetónico na Bergische Universität Wuppertal de 1997 a 2009, e como professor de ilustração na Folkwang University of the Arts em Essen de 2009 a 2011.

Além do livro "A toupeira que queria saber quem lhe fizera aquilo na cabeça", estão publicados em Portugal "O mistério do urso" e "A grande questão", escritos e ilustrados por Wolf Erlbruch.

Prémio da Feira de Bolonha para melhor livro na categoria de ficção, "A grande questão", destinado a crianças entre os 3 e os 6 anos, procura responder à mais defícil de todas as perguntas, colocadas por uma criança: “Porque estou aqui na Terra?”

Plano a plano, ao longo do livro, o autor dá respostas através de diferentes personagens, do irmão mais velho ("Para celebrares o teu aniversário"), aos pais ("Porque a tua mãe e eu nos amamos (...) estás aqui para te amar") e à avó ("Para eu te poder mimar"), sem esquecer outras personagens como um pato ("Não faço ideia"), um gato ("Vieste ao mundo para ronronar. Também um pouco pelos ratos") ou um pássaro ("Para cantares a tua canção"). No final do livro, são deixadas folhas em branco, para que a criança possa, por ela mesma, ao longo do tempo, dar novas respostas à "grande questão".

Quando escreveu "Duck, Death And The Tulip", o autor tinha por objetivo ajudar os mais novos a lidar com a ideia da morte: "Porque me segues tão de perto, sem fazer ruído?", pergunta o pato. "Alegro-me por finalmente me teres visto. Sou a morte", responde esta.

"Tenho estado a teu lado, desde o dia em que nasceste".

Em "A grande questão", a própria morte dá também outro motivo para se estar vivo:

"Amar a vida".


SIC NOTICIAS

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Guilherme Freitas / Roberto Bolaño inédito

Roberto Bolaño

ROBERTO BOLAÑO INÉDITO

Arquivo de Roberto Bolaño guarda inéditos e revela métodos do autor

Papéis do escritor chileno serão exibidos ao público pela primeira vez a partir da próxima semana, numa grande exposição em Barcelona

Por Guilherme Freitas

Nos últimos dez anos, os leitores de Roberto Bolaño se acostumaram com a imagem, bastante bolañesca, de um escritor que continua a publicar regularmente mesmo depois de morto. A primeira obra póstuma foi seu romance mais ambicioso, “2666”, que o chileno deixou praticamente pronto ao morrer, em 2003, e foi lançado em 2004 com recepção crítica consagradora. Nos anos seguintes, outros livros foram editados a partir do arquivo mantido em sua casa no pequeno balneário de Blanes, na Catalunha: a antologia poética “La universidad desconocida”, o volume de contos “El secreto del mal”, a coletânea de ensaios “Entre paréntesis” (todos inéditos em português) e os romances “O terceiro Reich” e “As agruras do verdadeiro tira”, recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras.





Administrado por sua viúva, Carolina López, o arquivo de Bolaño desperta, por sua fecundidade assombrosa, reações que vão do deslumbramento de fãs e pesquisadores à exasperação dos mais céticos quanto à qualidade das obras póstumas. A curiosidade de uns e outros será saciada a partir de terça-feira, quando o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB) inaugura a mostra “Arquivo Bolaño”, primeira exibição pública dos papéis do autor.


Com curadoria de Valerie Miles, uma das editoras da “Granta” espanhola, e Juan Insua, diretor do CCCB, a exposição reúne centenas de itens como cadernos manuscritos, textos datiloscritos, fotografias, livros, desenhos e objetos pessoais. Em meio a esse material, há originais de pelo menos quatro romances inéditos: “O espírito da ficção científica”, escrito em 1984 e dedicado a Philip K. Dick, “Diorama” (ao lado, um dos cadernos do manuscrito), “A virgem de Barcelona” e “La Paloma Tobruck”.

Cobrindo todo o período em que Bolaño viveu na Espanha — de 1977, quando chegou a Barcelona vindo do México, até 2003 — a mostra ilumina uma fase ainda pouco documentada de sua carreira: os quase 20 anos que passou escrevendo copiosamente, à margem do mercado, antes de começar a publicar por grandes editoras, em 1996, quando lançou “La literatura nazi en América”. Em entrevista por e-mail, Carolina López define a mostra como “a constatação documental da criação de um universo literário”:

— O arquivo de Roberto era seu material de trabalho. Em alguns casos, podemos encontrar a origem de um texto numa notícia de jornal, num filme, na transcrição de sonhos. O arquivo é testemunho do acúmulo de ideias, de sua grande inspiração e do muito que trabalhou ao longo da vida. Foi maravilhoso encontrar um poema anotado em um guardanapo quando ele vivia no México. Tudo isso explica perfeitamente a eclosão criativa de sua última década de vida — diz Carolina, esclarecendo que os inéditos não serão lançados por enquanto. — Nesse momento em que a obra de Roberto está sendo editada em todo o mundo, é preciso dar tempo às traduções antes de publicar outras obras.

Dividida em três partes, referentes às cidades catalãs onde Bolaño viveu (Barcelona, Girona e Blanes), a mostra propõe uma “cronologia criativa” de sua obra, assinalando a gênese de livros que, em muitos casos, começaram a ser burilados décadas antes da publicação. Os cadernos revelam um método baseado na reescrita incansável, com figuras e temas que aparecem em poemas, contos e esboços de romances. Manuscritos dos anos 1980, por exemplo, registram as primeiras menções ao pintor italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que inspirou nome e estética de um dos protagonistas de “2666”, o escritor alemão Benno von Archimboldi (em “As agruras do verdadeiro tira”, que começou a ser composto naquela década, também há um tratamento preliminar desse personagem).

Em entrevista por telefone, de Barcelona, Valerie Miles observa que os manuscritos mostram o trabalho de um artista consciente e meticuloso, na contramão da imagem recorrente de Bolaño como adepto de uma escrita automática e impulsiva. É apenas um dos mitos que a exposição quer desmontar. Entre outros, estão o boato persistente sobre o vício em drogas e álcool (“A bebida dele era o chá”, brinca a curadora) e a ideia, alimentada pelo próprio Bolaño, de que ele se considerava acima de tudo poeta e só passou à ficção para se sustentar ganhando concursos literários (num caderno de 1978 lê-se: “escrevo versos, sonho com um romance”).

Valerie se surpreendeu ao encontrar, muitas vezes no meio de um parágrafo de ficção, recados que Bolaño escrevia como que para animar a si mesmo: “Comprometa-se, Roberto, a olhar”, anota em um deles. Em outro caderno, desenhou um homem puxando os próprios cabelos, imagem que remete a uma conhecida passagem de “Amberes” (2002): “Do perdido, do irremediavelmente perdido, só desejo recuperar a disponibilidade cotidiana de minha escrita, linhas capazes de me erguer pelos cabelos quando meu corpo já não aguentar mais”.

— Bolaño aproveitava tudo. Sua obra é como uma máquina, um grande artifício que deve ser lido como um todo. Ele reescrevia, reescrevia, mas sempre voltava a essa massa de símbolos e personagens que desapareciam e reapareciam de um livro para outro, às vezes com nomes e características diferentes. Seu método era como um caleidoscópio, no qual sempre se pode ver os elementos sob uma nova luz — diz Valerie.

A exposição reúne ainda itens curiosos, como a coleção de jogos de guerra de Bolaño — aficionado pelo assunto, dedicou a ele boa parte da trama do romance “O terceiro Reich”. Há também livros e anotações que aludem a suas influências, como Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, além de cineastas e pintores.

Segundo Carolina, a exposição marca a conclusão da primeira fase da organização dos arquivos. Além de Barcelona, haverá homenagens pelos dez anos da morte de Bolaño (que se completam em 15 de julho) em Blanes e Madri. A exposição fica até 30 de junho em Barcelona e, a julgar pelo interesse mundial em torno do escritor, pode até viajar pelo mundo, avalia Valerie.

— Outro dia soube que já existe um incipiente culto a Bolaño na China — espanta-se a curadora. — Me disseram que há uma livraria muito popular em Xangai chamada 2666.

O GLOBO

domingo, 20 de novembro de 2022

Na obra de Roberto Bolaño, a memória é o nosso Amuleto

 


Com tradução de Eduardo Brandão, Amuleto, de Roberto Bolaño, foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Agosto de 2022 (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathália Mendes)

Na obra de Roberto Bolaño, a memória é o nosso Amuleto

Bruno Andrade

“Soube que tinha de resistir. De modo que me sentei nos ladrilhos do banheiro das mulheres e aproveitei os últimos raios de luz para ler mais três poemas de Pedro Garfias, depois fechei o livro, fechei os olhos e disse para mim: Auxilio Lacouture, cidadã do Uruguai, latino-americana, poeta e viajante, resista” (pág. 29).

À primeira vista, Roberto Bolañoé lembrado por dois romances – possivelmente os mais importantes da Literatura na América Latina no final do século XX e início do novo milênio: Os detetives selvagens (1998) e 2666 (2003). O último – uma espécie de testamento do autor chileno, lançado postumamente e com quase mil páginas – desfez a ideia de que o apocalipse ocorrerá sob sirenes e explosões; na verdade, o fim do mundo já começou, e é tão silencioso quanto os assassinatos constantes e sigilosos dos jovens latino-americanos. Por outro lado, com seu romance de 1998, Bolaño deu vida à aura libertária das revoltas deste lado da América, sob uma perspectiva idealizada que, não obstante, é ela mesma rechaçada no livro. Ainda assim, é em Amuleto (1999), lançado entre uma obra e outra, que o autor concentra magistralmente seus temas principais: a poesia, a política e a violência.

Mesmo que o pequeno romance (ou novela) tenha saído de um trecho emblemático de Os detetives selvagens – se trata de uma versão “expandida” de um capítulo do livro –, a obra funciona muito bem de maneira avulsa, pois sua mensagem ressoa na forma política e no cuidado de Bolaño com a linguagem (as repetições e a poesia “proseada”). A protagonista e narradora, Auxilio Lacouture, uma imigrante uruguaia auto-denominada a “mãe de todos os poetas”, investiga mentalmente um crime hediondo, que será revelado próximo ao final do romance. Contudo, crimes de vários os tipos perpassam a trama, rememorados por Auxilio no banheiro feminino da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), local onde se esconde após a tomada repentina da universidade pelos militares.

Nascido em 1953, em Santiago, Bolaño passou sua adolescência no México e retornou ao Chile após a vitória de Salvador Allende, para “ajudar a construir a revolução” (Foto: Alejandro Yofre)

Em setembro de 1968, durante as semanas que Auxílio se mantém escondida, comendo papel higiênico, o pequeno espaço do banheiro se transforma em um túnel do tempo, no qual a personagem revive seus anos na Cidade do México, lembrando dos poetas León Felipe e Pedro Garfias – pelos quais trabalhou como doméstica, de forma voluntária, para ficar mais próxima da poesia –, e também viajando para o futuro, quando conheceu, nos anos 1970, o jovem Arturo “Arturito” Belano – o alter-ego do próprio Roberto Bolaño. A forma não-linear com que se lembra dos acontecimentos talvez sintetize o trauma de Lacouture, mas mais do que isso, trata-se de um mecanismo, quase sempre utilizado pelo autor para dar vida a uma realidade fragmentada: a “real” e cotidiana, e a “subjetiva”, memorialística.

Assim como o romance antecessor, Amuleto apresenta o conflito do idealismo de uma geração com a realidade latino-americana. A verdade é que o ambiente claustrofóbico do banheiro se transforma, para Auxilio, em uma espécie de Aleph – do conto de Jorge Luis Borges, uma das principais referências do chileno –, em que se pode, paradoxalmente, enxergar o passado, o presente e futuro de uma só vez. Mas mesmo quando seus livros se repetem – sejam em temas ou em enredo, propriamente –, Bolaño nunca deixa de acrescentar novas informações, dando vida a uma espécie de obra infinita. O título de 2666, por exemplo, tem sua única explicação em Amuleto: “[avenida] Guerrero, a essa hora, se parece mais que tudo com um cemitério […], mas com um cemitério de 2666, um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho que, por querer esquecer algo, acabou esquecendo tudo” (pág. 65).

O escritor chileno entrelaça fato e ficção de forma natural, sempre carregando uma ampla carga histórica por volta do enredo. Em Amuleto – assim como no capítulo de Os detetives selvagens –, Auxilio Lacouture é baseada em uma pessoa real: no histórico ano de 1968, momento em que o exército mexicano realmente reprimiu manifestantes na Cidade do México, a poetisa Alcira Soust Scaffo manteve-se escondida no banheiro da UNAM, pós tomada da Cidade Universitária pelos militares. Ela sobreviveu bebendo apenas água da torneira durante os 12 dias que se manteve escondida. Assim como Auxilio, Scaffo foi amiga de León Felipe, e Bolaño a conheceu pessoalmente em 1970.

Em diversos momentos, a tensão sobre a produção cultural na América Latina domina a narrativa, e, diante dos atos repressivos na trama, são construídas metaficções cujo objetivo é refletir sobre a violência e uma forma melancólica de resistência. É nesse sentido que o filósofo Walter Benjamin, através do ensaio Sobre o conceito da história (1940), ascende como referência. “Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”, escreve Benjamin, visto que os bens culturais são concebidos através da perspectiva do horror.

“Esta será uma história de terror. Será uma história policial, uma narrativa de série negra e de terror. Mas não parecerá. Não parecerá porque sou eu que conto. Sou eu que falo e por isso não parecerá. Mas no fundo é a história de um crime atroz” (pág. 9).

O nome de Auxilio Lacouture sinaliza para os dois objetivos de sua história, narrada por ela própria, através de um jogo de palavras que não parece coincidência. Enquanto “Auxilio” em espanhol realmente signifique “ajuda”, “Lacouture” tem uma sonoridade parecida com “la cultura”. Assim, seria uma espécie de “pedido de socorro da Cultura”, que se vê ameaçada por forças externas, ao mesmo tempo em que Auxilio luta para não deixar que ninguém se esqueça daquele momento histórico. Ainda assim, Bolaño é sempre perspicaz ao deixar pistas de interpretação.

O romance se abre com o aviso de que será uma história de terror, cuja afirmação ganha importância, de forma cíclica, ao final, quando – após revelado toda a barbárie – percebemos que nos deixamos levar por essa narradora pouco confiável. Não porque não seja verdadeira – ou que não queira realmente transmitir o ocorrido –, mas porque suas memórias estão em ebulição e, por isso, confusas e delirantes, de modo que a trama “não parecerá” uma narrativa de terror, mas uma ode à memória histórica e à poesia. O pano de fundo violento é não somente o cenário tenebroso avisado desde o ínicio, mas também é seu aviso final: Amuleto relembra que esquecer os horrores da Ditadura leva o terror ao esquecimento, deixando à História sua inevitável repetição. Auxilio Lacouture é, sozinha, a única resistência contra as forças fascistas.

Patti Smith considera 2666, de Bolaño, a “primeira obra-prima do século 21” (Foto: Basso Cannarsa)

Quase toda a ficção de Bolaño se preocupa com a vida dos escritores, especialmente dos poetas marginais – seus “poetas-protagonistas” tendem a ser párias empobrecidos, isolados do mainstream literário. O próprio autor se via antes de tudo como um poeta, e começou a escrever romances e contos porque a poesia “não pagava as contas”. Não muito diferente do que acontece com a maioria dos ficcionistas, a vida do chileno foi essencialmente sua fonte de inspiração (ele até possuía um cartão impresso com os escritos “Poeta e Vagabundo”).

O “Realismo Visceral”, movimento literário que Ulisses Lima e Arturo Belano fazem parte em Os detetives selvagens, é apenas outro nome para o “Infrarrealismo”, criado por Roberto Bolaño e Mario Santiago Papasquiaro – a quem Amuleto é dedicado – em 1975, na Cidade do México, no qual se negava nomes como Octavio Paz, vencedor do Nobel de Literatura em 1990 e condenado por Bolaño por ser o “líder do establishment cultural mexicano”. Os infrarrealistas atacavam essa ordem ideológica porque, através dela, se criou uma cisão entre a “alta cultura” e a “cultura popular”, mantendo sempre uma diferenciação na qual se classificava a “alta cultura” como única forma autêntica de manifestação artística. Por essa razão, o movimento também se notabilizou por sabotar lançamentos de livros, cerimônias de premiação e atividades literárias gerais de poetas pertencentes a esse mundo da “alta cultura”.

“Pensei: a vaidade da escrita, a vaidade da destruição. Pensei: porque escrevi, resisti. Pensei: porque destruí o escrito vão me descobrir, vão me pegar, vão me violentar, vão me matar. Pensei: ambos os fatos estão relacionados, escrever e destruir, se esconder e ser descoberta. Depois me sentei no trono e fechei os olhos” (pág. 125).

Antecedendo o que seria sua obra máxima, Amuleto insere uma protagonista feminina vítima de violência. Tempos depois, em 2666, o mote da história gira em torno do feminicídio na fronteira México-Estados Unidos, cujo assassinato de diversas mulheres em Santa Teresa levanta mistérios. Esses homicídios vêm ocorrendo há anos (o romance se passa na década de 1990), e os culpados – ou culpado – seguem desconhecidos. Santa Teresa é uma versão ficcional de Ciudad Juárez, uma verdadeira cidade fronteiriça mexicana que se tornou notória nesse período pelo grande número de mulheres assassinadas. Por vários anos, quase semanalmente, os corpos de mulheres jovens – algumas com 11 ou 12 anos – apareciam no deserto ao redor da cidade.

A maioria das vítimas eram trabalhadoras nas maquiladoras da cidade (fábricas de propriedade norte-americana), e muitos corpos sequer foram identificados. Embora várias prisões tenham sido feitas, nunca se estabeleceu um único assassino ou grupo de assassinos que estavam por trás dos crimes. Nos últimos anos de vida, Roberto Bolaño se tornou obcecado pela brutalidade e mistério em torno desses delitos: como algo tão bárbaro e cotidiano pode passar despercebido? Como pode se tornar habitual? Assim, ele começou a trocar correspondências com jornalistas que cobriam ou cobriram casos passados no local, pedindo aspectos específicos dos assassinatos – como os detalhes forenses –, mas também características geográficas da Ciudad Juárez, reconstruídas com precisão nas páginas de 2666. Essa violência, inclusive, está presente no título do próprio romance: trata-se do número da besta duas vezes – uma violência que, após se tornar naturalizada, torna-se maior que o próprio Apocalipse.

Amuleto condensa, em pouco mais de 100 páginas, todo o interesse de Roberto Bolaño pela violência. A origem desse ímpeto está relacionada não apenas com sua própria juventude – um jovem pobre do Chile que, se não fosse escritor, seria detetive ou delegado, e que, mesmo após publicar livros, vendia bijuterias para sobreviver –, mas também com sua própria maneira de enxergar a Literatura: uma “vocação perigosa”.

Bolaño analisa que a América Latina é toda constituída pela concepção da violência, em suas diversas facetas, e como ele próprio profere no famoso Discurso de Caracas (1999), “toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos”. Auxilio, “a mãe de todos os poetas”, é também a “mãe” da memória histórica do México e do Chile. Esquecer tudo é o maior pesadelo de Lacouture, e embora os gritos de protesto e indignação sejam aquilo que ressoa em sua memória, embora o canto das revoltas seja aquilo que ela e nós mantemos ressoando em nossas cabeças, é esse mesmo som que nos permite recordar; “esse canto é o nosso Amuleto” (pág. 131).

PERSONA


sábado, 19 de novembro de 2022

Roberto Bolaño / As agruras do verdadeiro tira / Resenha





Roberto Bolaño
AS AGRURAS DO VERDADEIRO TIRA
Resenha

As agruras do verdadeiro tira, de Roberto Bolaño. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 320 pgs. R$ 44,50

Por Antonio Marcos Pereira

Consta que uma das maiores preocupações de Bolaño em seus últimos dias era garantir o sustento da família. Preocupou-se à toa. Com o sucesso da recepção de sua obra quando estava vivo, e que só se multiplicou, e com a notável astúcia gerencial dos administradores de seu espólio literário, recursos não hão de faltar para seus dependentes. É por força do trabalho desses gestores que podemos ter acesso a este “As agruras do verdadeiro tira”, e isso merece menção por estar associado a uma característica marcante do livro: seu caráter de esboço, material de trabalho, papéis em processo de uso e elaboração pelo autor.

Provavelmente o texto jamais seria publicado como está aqui, malgrado as mil justificativas para chancelar a publicação mobilizadas tanto no demasiado didático prólogo, do ficcionista e crítico barcelonês Juan Antonio Masoliver Ródenas, quanto na nota final, da viúva de Bolaño, Carolina López. O livro se assemelha ao que conhecemos do trabalho de competentes jazzistas, que criam a partir da improvisação de temas sobre os quais vão elaborando até encaminharem a música no sentido que intuem ser certo. E talvez o mais impressionante seja que, independente desse caráter de esboço, a narrativa seja tão capaz de magnetizar e manter o interesse do leitor, evidência da mandinga de Bolaño em ação, que é também uma assinatura, parte do que esperamos de seus livros.

Vários temas e personagens presentes em outros textos aparecem aqui, e a leitura, para quem já passou por outros trabalhos de Bolaño, oferecerá a graça adicional do reconhecimento desses trechos, da observação de semelhanças e diferenças. Esse jogo encanta, pois nos momentos de pura reprodução — como na taxonomia que abre o livro, associando cada poeta a uma variante de performance homossexual, e que já vimos em “Os detetives selvagens”; ou na narrativa que reproduz creio que exatamente o “Outro conto russo”, de “Chamadas telefônicas” —, parece que estamos medindo a familiaridade com sua obra pela extensão de nossa capacidade de reconhecimento.

Trata-se, sabemos, não de matéria exclusivamente associada a este livro, mas de um modus operandi do autor, do qual são os exemplos mais claros as novelas “Estrela distante” e “Amuleto”, expansões de trechos de, respectivamente, “La literatura nazi en America” e “Os detetives selvagens”. Se as semelhanças são notáveis, há também refrações curiosas e surpresas — em particular na maneira como se articulam no livro os dois protagonistas, Amalfitano e Arcimboldi, que remetem a dois dos personagens principais de “2666”.

É na maneira como Amalfitano é tratado aqui que, talvez, apareça a maior razão para o interesse do livro. Apresentado sob uma luz trágica algo distinta da que inferimos em “2666”, Amalfitano é um personagem movido pela descoberta algo tardia, algo casual, de sua homossexualidade, transformada em escândalo pelo fato de que o alvo de seu desejo é um aluno e jovem poeta, Padilla, coisa que o pudibundismo do mundo universitário espanhol não tolera e que motiva sua expulsão da universidade e sua migração para o México.

A relação entre os dois constitui o núcleo dramático mais produtivo, e é apresentada como uma mescla de revelação, ignorância e tragédia. Ao descrever Amalfitano, um homem de 50 anos, como um sujeito ainda capaz de aprendizado a respeito de si, a narrativa projeta no adulto uma condição de instabilidade, uma contemplação da possibilidade de abertura para o mais imprevisível e improvável: Amalfitano vive, com relação a seu desejo por Padilla, uma surpresa branda, como se percebesse a própria história como um capítulo ínfimo de um texto mais amplo e apenas eventualmente decifrável.

Circundam essa relação os demais personagens: a filha de Amalfitano, Rosa, que vive as dificuldades do deslocamento de Barcelona para o México e da descoberta da homossexualidade do pai; os personagens de Sonora, como Pancho Monje e os gêmeos Pedro e Pablo, um policial e um acadêmico; o escritor francês J. M. G. Arcimboldi, que tem várias obras descritas e comentadas, e cuja biografia é esboçada a partir de listas de amigos, inimigos, e de com quem se correspondia. Todos têm seu lugar, e contribuem para o que há de trama aqui, mas estão certamente à periferia do drama do professor de filosofia que se descobre homossexual aos 50 anos, e que ao tentar explicar à filha o que ocorreu consigo, imagina que se até o Muro de Berlim veio abaixo, “isso também podia acontecer com sua até então inequívoca heterossexualidade”, ambos manifestações da mesma contingência, sujeitos aos mesmos imponderáveis.

Padilla comenta com Amalfitano um projeto de romance que ambiciona escrever, “O deus dos homossexuais” (“o deus dos mendigos, o deus que dorme no chão, nas portas do metrô, o deus dos insones, o deus dos que sempre perderam”). Essas alusões parecem retratar o Grande Romance ambicionado por Bolaño por muito tempo, que encontrou aqui nesse “Agruras” seu espaço de exercício e experimentação: um livro capaz de ser generoso o suficiente para contemplar o que há de enigmático nas mais triviais experiências do mais ínfimo e esquecido dos humanos. Tal ambição, que se espalhou por toda sua obra, é admirável, e rara, e onde quer que se manifeste merece distinção.

Antonio Marcos Pereira é professor da UFBA




sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Roberto Bolaño / Inimigos imaginários

 

Roberto Bolaño


Inimigos imaginários

Escritor chileno inovou ao criar antologia fictícia de autores fascistas, racistas e sexistas

Antonio Marcos Pereira
01dez2019 02h00

Bolaño, Roberto
A literatura nazista na América
TRAD. Rosa Freire d’Aguiar
Companhia das Letras • 240 pp • R$ 54,90

Conheci Roberto Bolaño por meio de uma conversa entre ele e Ricardo Piglia, publicada em um antigo suplemento cultural dominical, no começo dos anos 2000. Bolaño já era falecido e morreu celebrado e premiado, mas eu nunca tinha ouvido falar nele. Além de ter gostado da maneira como ele pensava a questão da literatura latino-americana no diálogo com Piglia, na lista de publicações atribuídas a ele muito me chamou a atenção o título de um livro em particular: A literatura nazista na América.

“O que é isso?”, pensei. Fosse ensaio ou trabalho de historiador, eu teria algo em meu repertório para conectar com a ideia — o exemplo mais próximo sendo o Dicionário biográfico da extrema direita desde 1890, de Philip Rees. Mas a obra vinha listada como romance, e isso me intrigou imediatamente. A anomalia do título — que me evocava a fortuna ambivalente que tinha encontrado em História universal da infâmia, de Borges, em A vida dos homens infames, de Foucault, e na Enciclopédia dos mortos, de Danilo Kis — prometia.

Lá se vão mais de quinze anos. Resenhei outros livros do autor, acompanhei sua fortuna crítica e organizei com um colega um livro de ensaios acadêmicos dedicados a seu trabalho, mas foi assim, começando por esse livro que enfim aparece editado entre nós, em competente tradução, que me fiz leitor de Bolaño. Um desvio na cronologia de sua publicação no Brasil faz com que A literatura nazista na América chegue apenas agora, depois da publicação dos romances centrais, dos contos e também de vários livros póstumos. Mas convém lembrar que o livro é de 1996 e que marca um início: o autor está experimentando com seus materiais, pondo à prova sua capacidade, construindo sua assinatura. Bolaño está começando a ser Bolaño.

O volume tem cara de catálogo, ou de livro didático. É o recenseamento de um modesto enclave do campo literário, composto de pequenas biografias de cerca de trinta autores, vidas espalhadas por toda a América, abarcando do final do século 19 até meados do 21. As vidas vêm associadas a comentários a respeito do que escreveram e, ao final, há referências e bibliografia. Estamos familiarizados com o uso dessa estratégia para expor didaticamente a história da literatura: é um jeito careta e datado, mas justamente por isso conhecido e facilitador.

Descrever o livro assim, todavia, trai justamente aquilo que lhe confere estranheza e interesse. Para começo de conversa, trata-se de uma antologia com fundo falso, da qual estão sistematicamente ausentes os textos dos autores comentados. Temos suas vidas e obras, expressas em explorações de suas poéticas e descrições do que e como escreveram, mas seus escritos nunca aparecem, em um artifício que se tornará típico de Bolaño (pense nos poemas dos “real visceralistas”, nunca vistos em Os detetives selvagens, ou nos livros de Benno von Archimboldi, que não têm sequer uma linha citada no imenso 2666).

A voz do narrador-enciclopedista varia pouco, mas o grau de meticulosidade na descrição das peripécias que configuram uma fisionomia criativa e moral para cada um dos literatos varia muito, alterando a extensão e a complexidade dos relatos. Embora sejam figuras uniformemente lamentáveis, aqui são expostos em suas tentativas de conferir forma de texto a visões íntimas, bem como em seus esforços para fazer com que esses textos circulem, angariando para si uma reputação e um lugar na história literária.

Balbúrdia

Em sua maioria figuras marginais, usufruem de sucesso parco e são esmagadas tanto pelo ressentimento quanto pelos delírios de grandeza que, avivados por suas impotências, as sustentam. São, coletivamente, uma balbúrdia de ultraconservadores, xenófobos, antissemitas, racistas, sexistas, torturadores, milicianos, irmanados em seu esforço reativo com relação às conquistas sociais da modernidade. Painel eclético de reacionários, gente distribuída entre o abjeto e o demencial, alguns rezam por esse credo e efetivamente o praticam, ao passo que outros sonham com um mundo no qual suas crenças confiram efetiva forma à vida, e esboçam esses sonhos na literatura que produzem.

Imagine Bolaño na Espanha, vivendo precariamente, com cerca de quarenta anos, um filho, esforçando-se para romper a barreira inicial como autor profissional, buscando um simples abrigo editorial. Manuseia ideias, visita anotações, pondera sobre o que e como escrever. Pensa em escrever vidas literárias imaginárias, inspirando-se em um modelo de Marcel Schwob e alterando-o. Segue considerando alternativas e chega à ideia de uma história literária estruturada pela vinculação de seus praticantes a alguma forma de elogio ao fascismo.

Uma história da literatura fascista talvez até seja algo inédito. Mas um fascista nada mais é do que um nazista com o volume um pouco mais baixo. No fundo, para um e para outro, estão os mesmos desejos de anulação da diferença, de simplificação do mundo em nostalgia, de ressentimento e de purismo. Então por que não chutar o balde e mandar ver um livro sobre literatura nazista? A ideia parece rentável, em especial por gerar certa dinâmica de atração pela repulsa (não sendo nazista, você tem todavia sua curiosidade espicaçada pelo adjetivo, tão sui generis parece sua vinculação com a literatura).

Além disso, na mesma chave em que se constrói a distância temática com relação a uma literatura supostamente libertária, a cada passo da narrativa se enfatiza certa semelhança: os nazistas também têm sua crítica, suas revistas, seus prêmios e suas editoras, e a história literária que os propicia é também aquela que nos serve. Não há dúvida: esses tipos são reacionários nojentos — mas também patéticos, como talvez seja toda intenção de vingar na arte.

Um dos personagens, haitiano, é um arrivista que, desprovido de talento e inspiração, mas sedento por sucesso, inventa uma forma própria e precoce de “escrita não criativa”, se apoia em heterônimos e “começava a ser conhecido como o bizarro Pessoa do Caribe” por multiplicar suas identidades autorais e disseminar suas crenças em um nazismo crioulo e em “ser um poeta nazista e não renunciar a certo tipo de negritude”. Outro, argentino, tem “entre suas propostas juvenis” coisas como “o extermínio dos índios para evitar uma contaminação maior da raça argentina, a redução dos direitos dos cidadãos de origem judaica, a imigração maciça procedente dos países escandinavos para clarear progressivamente a epiderme nacional escurecida depois de anos de promiscuidade hispano-indígena, a concessão de bolsas literárias vitalícias”.

Como não rir desses personagens? São figuras que provocam um riso complicado, que deixa um ressaibo. Na medida em que são engraçadamente absurdas, encarnam também versões horrendas da vida. Coexistem com o campo literário tal como o conhecemos: um plagia Aimé Cesaire, outro é futurista, e figuras como Charles Olson, Huidobro e Rubem Fonseca aparecem tirando o sono desses literatos reaças, tanto por inveja e despeito quanto por devotada angústia de influência.

Estamos habituados a uma parceria suposta entre a literatura e o “bem” — ou, pelo menos, entre a literatura e certa pedagogia da edificação e do esclarecimento. A leitura literária aprimora o leitor, ensina, oferta a ampliação de perspectivas e o incremento da capacidade de empatia com o diferente. Nesse romance, explorando embrionariamente algo que perseguirá em toda a sua escritura, Bolaño manifesta seu ceticismo com relação à ideia de que a literatura tenha um endereçamento moral preciso. Invenção de gente, a literatura paga tributo às pessoas que a produzem, e há de ser tão diversa, em todos os sentidos, quanto possam ser essas pessoas — para o bem e para o mal.

FOLHA DE S.PAULO