sábado, 19 de novembro de 2022

Roberto Bolaño / As agruras do verdadeiro tira / Resenha





Roberto Bolaño
AS AGRURAS DO VERDADEIRO TIRA
Resenha

As agruras do verdadeiro tira, de Roberto Bolaño. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 320 pgs. R$ 44,50

Por Antonio Marcos Pereira

Consta que uma das maiores preocupações de Bolaño em seus últimos dias era garantir o sustento da família. Preocupou-se à toa. Com o sucesso da recepção de sua obra quando estava vivo, e que só se multiplicou, e com a notável astúcia gerencial dos administradores de seu espólio literário, recursos não hão de faltar para seus dependentes. É por força do trabalho desses gestores que podemos ter acesso a este “As agruras do verdadeiro tira”, e isso merece menção por estar associado a uma característica marcante do livro: seu caráter de esboço, material de trabalho, papéis em processo de uso e elaboração pelo autor.

Provavelmente o texto jamais seria publicado como está aqui, malgrado as mil justificativas para chancelar a publicação mobilizadas tanto no demasiado didático prólogo, do ficcionista e crítico barcelonês Juan Antonio Masoliver Ródenas, quanto na nota final, da viúva de Bolaño, Carolina López. O livro se assemelha ao que conhecemos do trabalho de competentes jazzistas, que criam a partir da improvisação de temas sobre os quais vão elaborando até encaminharem a música no sentido que intuem ser certo. E talvez o mais impressionante seja que, independente desse caráter de esboço, a narrativa seja tão capaz de magnetizar e manter o interesse do leitor, evidência da mandinga de Bolaño em ação, que é também uma assinatura, parte do que esperamos de seus livros.

Vários temas e personagens presentes em outros textos aparecem aqui, e a leitura, para quem já passou por outros trabalhos de Bolaño, oferecerá a graça adicional do reconhecimento desses trechos, da observação de semelhanças e diferenças. Esse jogo encanta, pois nos momentos de pura reprodução — como na taxonomia que abre o livro, associando cada poeta a uma variante de performance homossexual, e que já vimos em “Os detetives selvagens”; ou na narrativa que reproduz creio que exatamente o “Outro conto russo”, de “Chamadas telefônicas” —, parece que estamos medindo a familiaridade com sua obra pela extensão de nossa capacidade de reconhecimento.

Trata-se, sabemos, não de matéria exclusivamente associada a este livro, mas de um modus operandi do autor, do qual são os exemplos mais claros as novelas “Estrela distante” e “Amuleto”, expansões de trechos de, respectivamente, “La literatura nazi en America” e “Os detetives selvagens”. Se as semelhanças são notáveis, há também refrações curiosas e surpresas — em particular na maneira como se articulam no livro os dois protagonistas, Amalfitano e Arcimboldi, que remetem a dois dos personagens principais de “2666”.

É na maneira como Amalfitano é tratado aqui que, talvez, apareça a maior razão para o interesse do livro. Apresentado sob uma luz trágica algo distinta da que inferimos em “2666”, Amalfitano é um personagem movido pela descoberta algo tardia, algo casual, de sua homossexualidade, transformada em escândalo pelo fato de que o alvo de seu desejo é um aluno e jovem poeta, Padilla, coisa que o pudibundismo do mundo universitário espanhol não tolera e que motiva sua expulsão da universidade e sua migração para o México.

A relação entre os dois constitui o núcleo dramático mais produtivo, e é apresentada como uma mescla de revelação, ignorância e tragédia. Ao descrever Amalfitano, um homem de 50 anos, como um sujeito ainda capaz de aprendizado a respeito de si, a narrativa projeta no adulto uma condição de instabilidade, uma contemplação da possibilidade de abertura para o mais imprevisível e improvável: Amalfitano vive, com relação a seu desejo por Padilla, uma surpresa branda, como se percebesse a própria história como um capítulo ínfimo de um texto mais amplo e apenas eventualmente decifrável.

Circundam essa relação os demais personagens: a filha de Amalfitano, Rosa, que vive as dificuldades do deslocamento de Barcelona para o México e da descoberta da homossexualidade do pai; os personagens de Sonora, como Pancho Monje e os gêmeos Pedro e Pablo, um policial e um acadêmico; o escritor francês J. M. G. Arcimboldi, que tem várias obras descritas e comentadas, e cuja biografia é esboçada a partir de listas de amigos, inimigos, e de com quem se correspondia. Todos têm seu lugar, e contribuem para o que há de trama aqui, mas estão certamente à periferia do drama do professor de filosofia que se descobre homossexual aos 50 anos, e que ao tentar explicar à filha o que ocorreu consigo, imagina que se até o Muro de Berlim veio abaixo, “isso também podia acontecer com sua até então inequívoca heterossexualidade”, ambos manifestações da mesma contingência, sujeitos aos mesmos imponderáveis.

Padilla comenta com Amalfitano um projeto de romance que ambiciona escrever, “O deus dos homossexuais” (“o deus dos mendigos, o deus que dorme no chão, nas portas do metrô, o deus dos insones, o deus dos que sempre perderam”). Essas alusões parecem retratar o Grande Romance ambicionado por Bolaño por muito tempo, que encontrou aqui nesse “Agruras” seu espaço de exercício e experimentação: um livro capaz de ser generoso o suficiente para contemplar o que há de enigmático nas mais triviais experiências do mais ínfimo e esquecido dos humanos. Tal ambição, que se espalhou por toda sua obra, é admirável, e rara, e onde quer que se manifeste merece distinção.

Antonio Marcos Pereira é professor da UFBA




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