domingo, 31 de dezembro de 2017

Eliane Brum / As mulheres que dizem não

As mulheres que dizem não

Nem tudo foi retrocesso em 2017: há algo importante que se move e não é para trás


ELIANE BRUM
25 DEZ 2017 - 07:02 COT


Ele estava lá, o homem perplexo. Ele tinha dito qualquer coisa como “gostosa” para uma jovem mulher. E ela tinha mostrado o dedo, bem na sua cara. Tipo “te liga”. Ele explicava que aquilo não era abuso, era cantada. E a cada vez que explicava parecia encolher de tamanho. Acostumado ao topo da cadeia alimentar por quase toda uma vida, porque ele já era um velho, ele não conseguia compreender porque os lugares haviam mudado. Ele não podia mais fingir que era desejado, ele não podia mais dizer o que queria, e por fim ele desabafou que não era capaz de viver num mundo em que uma mulher não gostasse de ser chamada na rua de gostosa por um homem como ele. De repente, ele tinha ficado muito mais velho. E perguntava: mas por quê? E tenho certeza de que ele não estava blefando. Ele não sabia. Porque por tempo demais não precisou saber. E agora precisa. Naquele exato momento, aquele homem perdeu o último pinto que ainda ficava duro. E não tinha a menor ideia sobre como alcançar potência sendo o que não sabia como ser.
De tantas cenas fortes deste ano, a minha foi essa pequena, quase despercebida. Um desacontecimento que desvela um acontecimento feito onda.
Há uma brutalidade objetiva no que vivemos, no Brasil e em boa parte do mundo, que se acentuou ainda mais em 2017, neste período da história que talvez possa ficar conhecido como a paródia que ele também é, a da boçalidade do mal. E como já sabemos, em fases assim os anos não terminam nem começam, apenas se emendam, e a boçalidade do mal acordará em 2018 tão boçal quando dormiu em 2017. Possivelmente sem sequer saber de si, porque é constitutivo dos boçais ter certeza sobre tudo, inclusive sobre aquilo que menos conhecem, que é sobre si mesmos. Quem sabe de si tem dúvidas enormes, acorda sobressaltado à noite duvidando do seu próprio rosto. Os boçais jamais as têm, pensam que a máscara que colaram é sua única face e repetem muito a palavra “verdade”.
Não é preciso fazer aqui a retrospectiva de nossos horrores. Nós os conhecemos, eles se imiscuíram como parasitas íntimos, aproveitando-se das fissuras que eles mesmos abriam na nossa pele e foram nos sugando a alegria. Mas há uma outra tessitura, uma que se costura numa camada abaixo dos acontecimentos, e que nos aponta onde está a vida e a possibilidade. Há algo que se move – e não é para trás.
Não é possível ejacular nas mulheres em nenhum meio de transporte
As mulheres riscaram o chão. Com as unhas. Não é um de repente, é um processo. Mas algo emergiu com força, também por conta da facilidade de mobilização das redes sociais que, se destroem – e destroem –, também rompem. E fazem irromper. E quando escutamos o que nós mesmas dizemos, quando nos escutamos, é chocante que tenha sido preciso dizer.
Não, não é possível ejacular em nós nos ônibus, nos metrôs e nos aviões. Está vetado ejacular em nós em qualquer meio de transporte. Não, não é possível passar a mão na nossa bunda nas ruas ou nos corredores das firmas. Nem dar tapinhas. Não, não é possível dizer que a mulher é a parte chata da buceta ou fazer qualquer outra piada machista em festas ou em qualquer lugar. Não, não é possível mostrar o pinto quando passamos nem nos olhar de cima abaixo como se quisesse nos lamber. Não, não é possível nos chamar de gostosa ou emitir qualquer comentário sexual no espaço público. Não, não é possível dizer que “é das novinhas que eles gostam mais” nem que “panela velha é que faz comida boa”. Não é possível. Acabou.
Um não é um não. Não é um sim disfarçado, não é não mesmo. E um homem terá que ser mais sensível, se esforçar mais, para entender quando há consentimento para olhares e para aproximações e para sexo. Um homem, se ainda não sabe, porque muitos já sabem, terá que aprender a escutar melhor. Não é tão difícil assim, desde que se compreenda algo muito simples: um não é um limite inultrapassável.
E isso vale para os estranhos, isso vale para os amigos, isso vale para os solteiros, para os casados, para os que escolheram o poliamor. Isso vale.
Isso vale para a direita e vale para a esquerda. Isso vale.
Com consentimento, pode experimentar todas as fantasias, até a de não ter consentimento. Sem consentimento, não pode nada. Mas. Há um mas. Se em qualquer momento a mulher mudar de ideia e quiser parar, o consentimento vira um não. E um não é um não.
O homem podia ser abusado pelo patrão ou abusado pelo branco, mas havia uma mulher que ele abusava depois
Não pode bater em mulheres. Não pode assediar e abusar de mulheres. Não pode violentar mulheres.
Não pode matar mulheres.
Entendo que, para um homem que sempre pôde tudo, porque em qualquer classe social e em qualquer raça os homens sempre puderam mais, parece difícil. O homem podia ser abusado pelo patrão ou abusado pelo branco, mas havia uma mulher que ele abusava depois. Em alguma instância da sua vida ele tinha esta outra a quem poderia impor sua vontade, subjugar. Assujeitar. Arrebentar. Um dia matar.
Está terminando o autoconsentimento tácito do homem sobre a mulher, produzido pelo silêncio, pelo preconceito, pelo domínio ainda masculino das instituições. Produzido como direito de nascença, que vinha junto com o pinto. Produzido pelo discurso do “ela provocou”, “ela estava pedindo”, “ela usava saia curta”, “ela tinha aquele decote”, “ela andava na rua tarde da noite”, “ela no fundo queria”. De nossos desejos só nós sabemos. Mas eventualmente podemos contar. E estamos contando. Basta escutar.
Para quem sempre monopolizou o poder, é difícil dividir o poder: para alguns é o privilégio de falar sozinho que está em risco
Quem pensa que está cada vez mais difícil ser homem, com mulheres que dizem não, tem razão. Deve ser bem difícil dividir o poder para quem sempre monopolizou o poder. E para alguns é o poder de falar sozinho que está em risco. Para alguns dos mais envernizados pela educação formal e pelos livros, o que dói mais é a perda do privilégio de ser a única voz na sala, na mesa do bar, nas livrarias. No palco.
E há algo que dói ainda um pouquinho mais, que é a perda do privilégio de se achar tão bacana, tão moderno, tão cosmopolita, até um pouco feminino. E então chega uma mulher – uma mulher! – e diz: seu rosto, este que você vê no espelho, não é o mesmo que eu vejo. E, olha, você não é tão importante assim, você não está aí rompendo paradigmas com seu discurso, seus posts name-dropping não nos impressionam. Quem está quebrando paradigmas são estas mulheres juntas, andando de mãos dadas pelas ruas.
Aí os envernizados, sentindo-se atacados em seus privilégios de homens e de brancos e de esquerda, adaptam o discurso dos toscos, daqueles que têm menos repertório para atacar. As mulheres então não são mais “as loucas”, “as histéricas”, aquelas “em TPM permanente”. Dizer isso seria se expor em demasia. A ideia de que enxerguem sua brutalidade os horroriza, é preciso exercê-la com palavras melhores e com referências, muitas referências, para encobrir a violência do discurso. Os “esquerdomachos”, uma das palavras mais interessantes que se consolidou em 2017, são sofisticados demais para dizer isso. O que eles dizem então, empacotando suas teorias em esperma e citações?
A mulher que conquistou espaços de poder e de fala, apesar de todo o machismo vigente, quando aponta privilégios de gênero e de raça “não entende os conceitos”, “nomeia erroneamente os fenômenos”, “é incapaz de debater”, “estava indo bem, mas perdeu-se”, “em vez de pensamento têm compaixão”, sua ignorância os constrange.
Uma mulher envelhecer virou não só sinônimo de perda de beleza e de potência num mundo masculino, mas também “velha” virou palavrão
Os esquerdomachos arrancam frases do contexto, o que é uma forma de violência no debate público. Deslocam imagens também do contexto. Para ilustrar seus posts, buscam fotos em que a mulher parece raivosa, talvez porque estivesse falando sobre genocídios quando a fotografia foi tirada e jogada na internet. O carimbo machista do momento é justamente mostrar como as mulheres se tornaram “agressivas”, “raivosas”, “violentas”. E nada mais instantâneo que a imagem para “provar” esse “fato”. Vale tudo para exercer a misoginia sem parecer exercer a misoginia. O desonesto fala de honestidade, o sem ética fala de ética.
E então, sentindo cheiro de sangue, os lambaris acreditam que são tubarões, autorizam-se e acusam: “Sua velha!”. Porque uma mulher envelhecer virou não só sinônimo de perda de beleza e de potência num mundo masculino, mas também “velha”, uma palavra tão rica de sentidos e de experiências, passou a ser usada como palavrão. Ou outro clássico: “Espero que você morra de câncer, sem nem mesmo paracetamol para aliviar a dor!”. E, para não deixar dúvidas, passam a perseguir a mãe, a filha, as mulheres que aquela a ser destruída ama.
O truque já é um clichê. As mulheres, que passaram a vida de violência em violência, percebem a obviedade do propósito na primeira linha.
Em 2018 teremos que andar juntas, de mãos dadas, também com os homens capazes de escutar e de dialogar de igual para igual
Os direitos das mulheres sobre o seu corpo seguirão sendo atacados em 2018. Os direitos às suas mentes, também, mas de formas mais capciosas. Em ano eleitoral, e numa eleição nebulosa como a que temos pela frente, o corpo das mulheres é convertido em moeda. Todas as formas de controle sobre nossos corpos, das mais evidentes, como a criminalização do aborto até em casos hoje permitidos pela lei, às mais sutis, como nos converterem em insanas ou em burras ou em raivosas, estará valendo.
Mais do que nunca teremos que andar juntas, de mãos dadas, também com os homens capazes de escutar e de dialogar de igual para igual. E andar juntas é também escutar, porque o “outro” tem o direito de problematizar tanto quanto “eu”. O direito que não tem é o de desqualificar a pessoa, em vez de enfrentar o seu argumento com argumentos. A premissa de qualquer diálogo é o respeito pelo interlocutor, mesmo que se divirja de suas ideias. Que venham mais livros com cada vez mais vozes e mais diferenças. E que os textos que buscam silenciar argumentos que perturbam sejam apenas esquecidos.
Nos Estados Unidos o ano começou com a marcha das mulheres contra Trump e termina com o barulho dos corpos dos abusadores caindo de seus postos em Hollywood. Mesmo que um homem seja um superpoderoso de uma das indústrias mais lucrativas, já não pode mais assediar, abusar, estuprar. No Brasil, alguns passos começam a ser ensaiados nesse sentido. Se as brasileiras romperem o silêncio sobre o que acontece nos bastidores de grandes empresas e também de redações da mídia, em universidades e coxias, algo por aqui vai se mover um pouco mais.
O homem branco e heterossexual que ainda não compreendeu que terá que dividir poder e perder privilégios já começa a pagar um preço alto
Pelo menos dois fatos possivelmente inéditos marcaram 2017: a Globo, maior rede de comunicação do país, afastou um de seus principais galãs de novelas por assédio sexual e rescindiu o contrato com um de seus jornalistasmais conhecidos por um comentário racista que se tornou público. São dois fatos de um Brasil que se move – e não é para trás.
Essa é a tessitura, de camada mais profunda, feita pelos feminismos – e também pelos movimentos negros e pelos movimentos LGBTQ. Essa segue, persiste, se complexifica, avança. Há muito para conquistar, uma enormidade. Ainda vivemos a boçalidade do mal da direita à esquerda. Mas o homem branco e heterossexual que ainda não compreendeu que terá que dividir poder e perder privilégios já começa a ser enfrentado. E o custo começa a aumentar.
De certo modo, este ano, que não começou em janeiro de 2017 nem acabará em 31 de dezembro, se iniciou com um retrato. O retrato de grande poder simbólico do primeiro ministério de Michel Temer: branco e masculino. E com a mulher relegada ao papel de primeira-dama “bela, recatada e do lar”, enquanto parlamentares, empresários e jornalistas, especialmente jornalistas, produziam textos e comentários embasbacados com a beleza e a juventude de “dona Marcela” e com a potência de Temer, construindo a paródia de um folhetim de Nelson Rodrigues com efeitos na narrativa política. Há todo um imaginário dos sentidos deste casal presidencial e de seus papéis, que produziu impactos na crônica de Brasília, e que ainda precisa ser desvelado para a melhor compreensão desse momento histórico.
Talvez, no campo das simbologias, seja interessante observar que 2017 termina com o marido de dona Marcela governando o país com uma sonda na uretra.
(Que venha 2018! Eu volto a esta coluna em 12 de fevereiro. )
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas



segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Manuel Bandeira / Arte de amar


Manuel Bandeira
ARTE DE AMAR 

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.

A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.







DE OTROS MUNDOS

PESSOA



domingo, 24 de dezembro de 2017

A última entrevista de Manuel Bandeira




A última entrevista de Manuel Bandeira


Numa tarde de março de 1964, três décadas depois de ter publicado o poema que lhe consagraria: “Vou-me embora pra Pasárgada”, o poeta Manuel Bandeira fala ao jornalista Pedro Bloch, em sua última longa entrevista
Pedro Bloch
“Manchete”
Março de 1964

Ninguém sabe explicar como aquele homem, castigado, tantos anos, pela doença, não amargou. Disse Mário de Andrade: “Eu fico espantado de como há certos homens no mundo! Tu, por exemplo. Essa sublime bondade inconsciente, bem no íntimo, de quem nem sabe que é bom”. Vou além. Acho que Manuel Bandeira nem tem plena consciência de sua imensa envergadura de gente e poeta. Acho que, talvez, os quatro anos que viveu em sua terra, Recife, é que explicam, mais que os males, o homem de hoje. Diante de mim está o gigante de nossa poesia: Manuel Bandeira, em seu modesto apartamento, atulhado de livros e calor humano, na Avenida Beira-Mar, no Rio. Do bem que lhe querem todos, da ternura que desperta em quem dele se aproxima, basta dizer que Mário de Andrade só o tratava de Manu ou Manuelucho; Rodrigo Melo Franco de Andrade lhe deu o nome de Manula; Madame Blank, sua amiga de almoço de todo o dia, o trata de Mané. Creio que nunca ninguém teve tanto apelido, tanta gente querendo chegá-lo à sua amizade. (Edição e seleção de poemas Carlos Willian Leite).
Manuel Bandeira: Do Recife tenho quatro anos de existência consciente, mas ali está a raiz de toda a minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida é que vejo o vazio dos últimos.
Rua da União…

Como eram lindos os montes

das ruas da minha infância

Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame
de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…

Manuel Bandeira: Meu nome todo é Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho. Fisicamente me pareço com mamãe (D. Francelina): míope, dentuça como eu; no resto sou como meu pai
Que importa a paisagem,

a Glória,

a baía,

a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco

Manuel Bandeira: Sabe, que meu avô reprovou Castro Alves num exame? Erámos três irmãos. Os mais velhos (Antônio e Maria Cândida) já não existem. Saí do Recife com 2 anos. Deles nada recordo. Viemos pro Sul e com 6 (quando da revolta da Esquadra, em 1892) meu pai nos levou de volta pra casa de meu avô. Fui com 6 e voltei ao Rio com 10. Mas esses quatros anos… Essa coisa de viver, na infância, num lugar e, depois, ser arrancado dele, isola essa vida dentro da vida da gente.
Hoje não ouço mais as vozes

daquele tempo

Minha avó

Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Manuel Bandeira: Papai, no Rio, não teve sorte. Aos 40 anos passou por crise religiosa. Dele recordo com intensidade o dia em que exclamou olhando, pra mim, menino de 6 anos: “É impossível que este menino não saiba ler”. Trancou-se comigo na biblioteca, por duas horas. Saí de lá lendo. Outra coisa que me tocou fundo foi ouvi-lo exclamar ao morrer: “Meu Jesus Cristinho!” E eu conto no poema: “Mas Jesus Cristo nem se ‘incomodou!’”
Vai por cinquenta anos

Que lhes dei a norma:

Reduzi sem danos

A formas a forma.
Manuel Bandeira: Foi o livro de D’Amicis [Edmondo De Amicis, escritor italiano] uma das coisas que mais me marcaram. Ali descobri a literatura e a vida. Isto no Recife. No Rio, eu e meu irmão fomos fazer exame para o Ginásio Nacional (Pedro II). Na casa das Laranjeiras, onde morávamos, nunca faltou pão; mas a luta era dura. Nunca briguei com moleque da rua, mas me impregnei do realismo do povo. (Mais tarde conheci a Lapa.) Comecei fazendo versos pretensamente humorísticos. Com a puberdade, versos de amor. Meus namoros eram sempre calados, namoro de caboclo. E eu, menino ainda, vivia amando moças já feitas. Um dia perguntei a meu tio se Vésper rimava com Cadáver. Ele disse que não. Descobri, mais tarde, que meu ouvido é que estava certo. Tanto se rima consoantemente como toantemente e de outras maneiras. Aprendi que a boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa, não de raridade, senão de uma espécie de resolução musical. Como nas “Pombas” [poema de Raimundo Correia]: “Raia, sanguínea e fresca, a madrugada”. Entre outros eu tinha como colegas do Pedro II o professor [Antenor] Nascentes, o Artur Moses, o Souza Silveira, o Lopes da Costa. Acabei bacharel em Letras.
Ó caro ruído embalador,

Terno como a canção das amas!

Canta as baladas que mais amas,

Para embalar a minha dor
Manuel Bandeira: Como ainda não havia um bom curso de arquitetura no Rio (eu queria ser arquiteto) fui estudar em São Paulo. Aos 18 anos, nas férias do 1º ano para o 2° da Politécnica, fiquei tuberculoso. Durante muitos anos vivi provisoriamente. Hemoptises, tosse, febre, desesperança. Andei de ceca em meca, alopatia, homeopatia, e em junho de 1913 segui para um sanatório suíço (Clavadel). Meu pai ganhava um conto e novecentos. A passagem, ida e volta, custava 900 mil réis. O sanatório, com balcão e quarto, 360 mil réis que valiam 600 francos suíços. Lá fiquei até outubro de 1914. Com a guerra o franco dobrou e eu não pude continuar lá. Foi quando perguntei ao Dr. Bodmer: “Quanto tempo de vida o senhor me dá?” A resposta: “O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida, mas nenhum sintoma alarmante. Pode durar uns cinco… dez anos”. Calcule! (“Então, doutor!, não é possível tentar o pneumotórax? — Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”)
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Manuel Bandeira: Na Suíça, conheci, como companheiro de sanatório, o poeta Paul Éluard e Gala [Gala Dalí], que veio a ser sua esposa e, atualmente, é a mulher de Salvador Dalí.
Não quero mais saber

do lirismo

que não é libertação.

Manuel Bandeira: Voltei. Mal tinha dado pra conhecer Paris. Só 44 anos depois pude voltar à Europa. Aqui no Rio eu ficava até tarde, deitado na praia, no Leme, diante das recriminações de todos. Em 1917 publiquei meu primeiro livro, “A Cinza das Horas”, 200 exemplares me custaram 300 mil réis. Em “Carnaval” (publicado em 1919), depois, eu dizia: “Quero beber! Cantar asneiras!”. Pois um crítico observou: “Conseguiu plenamente o que queria”. Nestes dois volumes e em “Ritmo Dissoluto” estão poemas feitos em estado de lucidez. A partir de “Libertinagem” é que me resignei à condição de poeta. Tomei cedo consciência de que era um poeta menor, consciência de minhas limitações. Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas: o que devemos evitar.
Ninguém passa na estrada.

Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela

uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.

Manuel Bandeira: Ao voltar da Suíça eu era um inválido. Basta dizer que papai passou pra mim o montepio de 500 mil réis. Depois dos 50 é que eu pude começar a trabalhar, a ganhar a vida. Fiscal de ensino. Depois fui lecionar Literatura no Pedro II, até 1942. San Tiago Dantas, posteriormente, me convidou para ensinar Literatura Hispano-Americana na Faculdade de Filosofia, onde permaneci até 1956. Traduzi muito, fiz muita crônica, crítica musical, crítica de arte. Mas, durante a minha doença, dependi de meu pai (até que morreu em 1921) e do montepio. Por falar em crítica musical, ocorre-me que sempre fui muito sensível ao desenho e à música. Na verdade, faço versos porque não sei fazer música. Quando morei na Rua do Curvelo conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da nova geração literária do Rio e de São Paulo: Ronald, Álvaro Moreyra, Di Cavalcanti, Mário e Oswald de Andrade. Em 1921 Mário veio ler aqui sua “Pauliceia Desvairada”. Foi a última influência que recebi. O que veio depois me encontrou calcificado. Também não quis participar da Semana da Arte Moderna. Pouco me deve o movimento. O que devo a ele é enorme. Mas eu falava de Ribeiro Couto, um dos responsáveis pela minha entrada para a Academia. No tempo da Rua do Curvelo era ele quem me ajudava a ajustar-me ao mundo dos sãos, porque a doença gerara em mim um sentimentalão.
Andorinha lá fora está dizendo:

— “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha,

minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…

Manuel Bandeira: Não. Nunca fui um antiacadêmico. O problema é que eu gostava de tomar minhas licenças com a língua. Não aceito que não se possa dizer “me dê isso”, “me dê aquilo” se até o Laet [Carlos de Laet] dizia. Nada mais gostoso que: “pra mim brincar”. Todos os brasileiros deviam querer falar como os cariocas que não sabem gramática. “Ele já mo deu”… é horrível! Horríveis também são quiçá e alhures. A Rua do Curvelo me ensinou muitas coisas. Foi ali que, vendo os moleques de rua, reaprendi os caminhos da infância. A mim sempre agradou o coloquial e até o baixo calão.
Meu coração está sedento

De tão ardido pelo pranto.

Dai um brando acompanhamento

À canção do meu desencanto.
Manuel Bandeira: Em 1921, papai morto, continuei vivendo com 500 mil réis. Outro dia, fui comprar um queijo: custava 550! Em 1940, houve vaga na Academia, Ribeiro Couto voltou à carga. Eu, inspetor de ensino, tinha perdido o montepio: — os 500 mil réis exatos com que a Academia me acenava. Juntei o meu desejo de segurança ao respeito pela Academia e venci o medo de conspurcá-la com os meus pronomes. (Fora dali, onde só tenho amigos diletos, faço programas e crônicas para a Rádio Ministério da Educação.)
É que na tua voz selvagem,

Voz de cortante, álgida mágoa,

Aprendi na cidade a ouvir

Como um eco que vem na aragem
A estrugir, rugir e mugir,
O lamento das quedas-d’água!

Manuel Bandeira: Um dos mais chegados é o Rodrigo Melo Franco de Andrade. Almoço todos os dias com uma cara amiga, de sadios 84 anos, Madame Blank. Já ao Drummond eu quero um bem imenso, mas nunca sentei na mesa dele pra almoçar. Nem ele na minha. Nos admiramos muito, mas não temos convivência doméstica.
Se queres sentir a felicidade de amar,

esquece a tua alma.

A alma é que estraga o amor.

Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Manuel Bandeira: A minha poesia tem tomado um aspecto, assim de preparação para a morte. Estou com 77, vou fazer 78 em abril. Nasci a 19 de abril de 1886. Me sinto cansado. Faço algumas outras coisas, mas só no chão da poesia piso com alguma segurança. Estou perdendo a curiosidade. Prefiro ficar em casa a viajar. Do que imaginei ver só “Ronda Noturna”, de Rembrandt, ultrapassou a expectativa. As obras de arte, “Vênus de Milo” e o resto, de tão divulgadas, já não constituem mais surpresa. Não tenho a menor curiosidade pelo Oriente. Me sinto cem por cento Ocidental.
Provinciano que nunca soube

Escolher bem uma gravata;

Pernambucano a quem repugna

A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província.

Manuel Bandeira: Posso dizer que pouco se me dá, quando morrer, morrer completamente para sempre na minha carne e na minha poesia. Entretanto, já não será possível, para alguns de meus versos, aquela serena paz da morte absoluta, não por virtude própria, mas por culpa de Villa-Lobos (o primeiro a musicar verso meu), Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Jaime Ovalle, Radamés e tantos outros. Gosto de ser traduzido, de ser musicado, de ser fotografado. Criancice? Deus conserve minhas criancices.
Morrer.

Morrer de corpo e de alma.

Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes! — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade
do que do espanto da morte.

Manuel Bandeira: Espiritualmente… minha filosofia é a de Einstein. “Minha religião — disse ele — consiste numa humilde admiração pelo espírito superior e sem limites que se revela nos menores detalhes que possamos perceber com nossos frágeis espíritos. Essa profunda convicção sentimental da presença de uma razão poderosa e superior revelando-se no incompreensível universo — eis a minha ideia de Deus.” Quando li isto, disse comigo mesmo: “É exatamente o que eu sinto”. Não compreendo a negação absoluta de Deus. Como é que veio essa coisa que não começa nem acaba? Tempo infinito… Espaço infinito… Uma coisa absurda que, no entanto, existe!
O pardalzinho nasceu

Livre. Quebraram-lhe a asa.

Sacha lhe deu uma casa,

Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!

Manuel Bandeira: Não sei por que, hoje em dia, tenho pudor de fazer poemas de amor. Muitas vezes, isto se reflete na minha poesia. Não digo tudo, por discreto e a muitos parece hermético. É como se não quisesse que os outros entrassem na minha confidência, no meu segredo. Amei, sim. Mas casar não pude. Primeiro era a saúde. Depois… Minhas finanças. Meus amores não podiam levar-me ao casamento com quinhentos mil réis de montepio.
Aquele pequenino anel que tu me deste,

— Ai de mim — era vidro e logo se quebrou…

Assim também o eterno amor que prometeste,

— Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.

Entrevista concedida ao jornalista Pedro Bloch e publicada na revista “Manchete”, em março de 1964, e republicada no livro “Pedro Bloch Entrevista”, Bloch Editores, em 1989.