Roberto Bolaño |
ROBERTO BOLAÑO INÉDITO
Arquivo de Roberto Bolaño guarda inéditos e revela métodos do autor
Papéis do escritor chileno serão exibidos ao público pela primeira vez a partir da próxima semana, numa grande exposição em Barcelona
Por Guilherme Freitas
Nos últimos dez anos, os leitores de Roberto Bolaño se acostumaram com a imagem, bastante bolañesca, de um escritor que continua a publicar regularmente mesmo depois de morto. A primeira obra póstuma foi seu romance mais ambicioso, “2666”, que o chileno deixou praticamente pronto ao morrer, em 2003, e foi lançado em 2004 com recepção crítica consagradora. Nos anos seguintes, outros livros foram editados a partir do arquivo mantido em sua casa no pequeno balneário de Blanes, na Catalunha: a antologia poética “La universidad desconocida”, o volume de contos “El secreto del mal”, a coletânea de ensaios “Entre paréntesis” (todos inéditos em português) e os romances “O terceiro Reich” e “As agruras do verdadeiro tira”, recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras.
Administrado por sua viúva, Carolina López, o arquivo de Bolaño desperta, por sua fecundidade assombrosa, reações que vão do deslumbramento de fãs e pesquisadores à exasperação dos mais céticos quanto à qualidade das obras póstumas. A curiosidade de uns e outros será saciada a partir de terça-feira, quando o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB) inaugura a mostra “Arquivo Bolaño”, primeira exibição pública dos papéis do autor.
Com curadoria de Valerie Miles, uma das editoras da “Granta” espanhola, e Juan Insua, diretor do CCCB, a exposição reúne centenas de itens como cadernos manuscritos, textos datiloscritos, fotografias, livros, desenhos e objetos pessoais. Em meio a esse material, há originais de pelo menos quatro romances inéditos: “O espírito da ficção científica”, escrito em 1984 e dedicado a Philip K. Dick, “Diorama” (ao lado, um dos cadernos do manuscrito), “A virgem de Barcelona” e “La Paloma Tobruck”.
Cobrindo todo o período em que Bolaño viveu na Espanha — de 1977, quando chegou a Barcelona vindo do México, até 2003 — a mostra ilumina uma fase ainda pouco documentada de sua carreira: os quase 20 anos que passou escrevendo copiosamente, à margem do mercado, antes de começar a publicar por grandes editoras, em 1996, quando lançou “La literatura nazi en América”. Em entrevista por e-mail, Carolina López define a mostra como “a constatação documental da criação de um universo literário”:
— O arquivo de Roberto era seu material de trabalho. Em alguns casos, podemos encontrar a origem de um texto numa notícia de jornal, num filme, na transcrição de sonhos. O arquivo é testemunho do acúmulo de ideias, de sua grande inspiração e do muito que trabalhou ao longo da vida. Foi maravilhoso encontrar um poema anotado em um guardanapo quando ele vivia no México. Tudo isso explica perfeitamente a eclosão criativa de sua última década de vida — diz Carolina, esclarecendo que os inéditos não serão lançados por enquanto. — Nesse momento em que a obra de Roberto está sendo editada em todo o mundo, é preciso dar tempo às traduções antes de publicar outras obras.
Dividida em três partes, referentes às cidades catalãs onde Bolaño viveu (Barcelona, Girona e Blanes), a mostra propõe uma “cronologia criativa” de sua obra, assinalando a gênese de livros que, em muitos casos, começaram a ser burilados décadas antes da publicação. Os cadernos revelam um método baseado na reescrita incansável, com figuras e temas que aparecem em poemas, contos e esboços de romances. Manuscritos dos anos 1980, por exemplo, registram as primeiras menções ao pintor italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que inspirou nome e estética de um dos protagonistas de “2666”, o escritor alemão Benno von Archimboldi (em “As agruras do verdadeiro tira”, que começou a ser composto naquela década, também há um tratamento preliminar desse personagem).
Em entrevista por telefone, de Barcelona, Valerie Miles observa que os manuscritos mostram o trabalho de um artista consciente e meticuloso, na contramão da imagem recorrente de Bolaño como adepto de uma escrita automática e impulsiva. É apenas um dos mitos que a exposição quer desmontar. Entre outros, estão o boato persistente sobre o vício em drogas e álcool (“A bebida dele era o chá”, brinca a curadora) e a ideia, alimentada pelo próprio Bolaño, de que ele se considerava acima de tudo poeta e só passou à ficção para se sustentar ganhando concursos literários (num caderno de 1978 lê-se: “escrevo versos, sonho com um romance”).
Valerie se surpreendeu ao encontrar, muitas vezes no meio de um parágrafo de ficção, recados que Bolaño escrevia como que para animar a si mesmo: “Comprometa-se, Roberto, a olhar”, anota em um deles. Em outro caderno, desenhou um homem puxando os próprios cabelos, imagem que remete a uma conhecida passagem de “Amberes” (2002): “Do perdido, do irremediavelmente perdido, só desejo recuperar a disponibilidade cotidiana de minha escrita, linhas capazes de me erguer pelos cabelos quando meu corpo já não aguentar mais”.
— Bolaño aproveitava tudo. Sua obra é como uma máquina, um grande artifício que deve ser lido como um todo. Ele reescrevia, reescrevia, mas sempre voltava a essa massa de símbolos e personagens que desapareciam e reapareciam de um livro para outro, às vezes com nomes e características diferentes. Seu método era como um caleidoscópio, no qual sempre se pode ver os elementos sob uma nova luz — diz Valerie.
A exposição reúne ainda itens curiosos, como a coleção de jogos de guerra de Bolaño — aficionado pelo assunto, dedicou a ele boa parte da trama do romance “O terceiro Reich”. Há também livros e anotações que aludem a suas influências, como Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, além de cineastas e pintores.
Segundo Carolina, a exposição marca a conclusão da primeira fase da organização dos arquivos. Além de Barcelona, haverá homenagens pelos dez anos da morte de Bolaño (que se completam em 15 de julho) em Blanes e Madri. A exposição fica até 30 de junho em Barcelona e, a julgar pelo interesse mundial em torno do escritor, pode até viajar pelo mundo, avalia Valerie.
— Outro dia soube que já existe um incipiente culto a Bolaño na China — espanta-se a curadora. — Me disseram que há uma livraria muito popular em Xangai chamada 2666.
Cobrindo todo o período em que Bolaño viveu na Espanha — de 1977, quando chegou a Barcelona vindo do México, até 2003 — a mostra ilumina uma fase ainda pouco documentada de sua carreira: os quase 20 anos que passou escrevendo copiosamente, à margem do mercado, antes de começar a publicar por grandes editoras, em 1996, quando lançou “La literatura nazi en América”. Em entrevista por e-mail, Carolina López define a mostra como “a constatação documental da criação de um universo literário”:
— O arquivo de Roberto era seu material de trabalho. Em alguns casos, podemos encontrar a origem de um texto numa notícia de jornal, num filme, na transcrição de sonhos. O arquivo é testemunho do acúmulo de ideias, de sua grande inspiração e do muito que trabalhou ao longo da vida. Foi maravilhoso encontrar um poema anotado em um guardanapo quando ele vivia no México. Tudo isso explica perfeitamente a eclosão criativa de sua última década de vida — diz Carolina, esclarecendo que os inéditos não serão lançados por enquanto. — Nesse momento em que a obra de Roberto está sendo editada em todo o mundo, é preciso dar tempo às traduções antes de publicar outras obras.
Dividida em três partes, referentes às cidades catalãs onde Bolaño viveu (Barcelona, Girona e Blanes), a mostra propõe uma “cronologia criativa” de sua obra, assinalando a gênese de livros que, em muitos casos, começaram a ser burilados décadas antes da publicação. Os cadernos revelam um método baseado na reescrita incansável, com figuras e temas que aparecem em poemas, contos e esboços de romances. Manuscritos dos anos 1980, por exemplo, registram as primeiras menções ao pintor italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que inspirou nome e estética de um dos protagonistas de “2666”, o escritor alemão Benno von Archimboldi (em “As agruras do verdadeiro tira”, que começou a ser composto naquela década, também há um tratamento preliminar desse personagem).
Em entrevista por telefone, de Barcelona, Valerie Miles observa que os manuscritos mostram o trabalho de um artista consciente e meticuloso, na contramão da imagem recorrente de Bolaño como adepto de uma escrita automática e impulsiva. É apenas um dos mitos que a exposição quer desmontar. Entre outros, estão o boato persistente sobre o vício em drogas e álcool (“A bebida dele era o chá”, brinca a curadora) e a ideia, alimentada pelo próprio Bolaño, de que ele se considerava acima de tudo poeta e só passou à ficção para se sustentar ganhando concursos literários (num caderno de 1978 lê-se: “escrevo versos, sonho com um romance”).
Valerie se surpreendeu ao encontrar, muitas vezes no meio de um parágrafo de ficção, recados que Bolaño escrevia como que para animar a si mesmo: “Comprometa-se, Roberto, a olhar”, anota em um deles. Em outro caderno, desenhou um homem puxando os próprios cabelos, imagem que remete a uma conhecida passagem de “Amberes” (2002): “Do perdido, do irremediavelmente perdido, só desejo recuperar a disponibilidade cotidiana de minha escrita, linhas capazes de me erguer pelos cabelos quando meu corpo já não aguentar mais”.
— Bolaño aproveitava tudo. Sua obra é como uma máquina, um grande artifício que deve ser lido como um todo. Ele reescrevia, reescrevia, mas sempre voltava a essa massa de símbolos e personagens que desapareciam e reapareciam de um livro para outro, às vezes com nomes e características diferentes. Seu método era como um caleidoscópio, no qual sempre se pode ver os elementos sob uma nova luz — diz Valerie.
A exposição reúne ainda itens curiosos, como a coleção de jogos de guerra de Bolaño — aficionado pelo assunto, dedicou a ele boa parte da trama do romance “O terceiro Reich”. Há também livros e anotações que aludem a suas influências, como Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, além de cineastas e pintores.
Segundo Carolina, a exposição marca a conclusão da primeira fase da organização dos arquivos. Além de Barcelona, haverá homenagens pelos dez anos da morte de Bolaño (que se completam em 15 de julho) em Blanes e Madri. A exposição fica até 30 de junho em Barcelona e, a julgar pelo interesse mundial em torno do escritor, pode até viajar pelo mundo, avalia Valerie.
— Outro dia soube que já existe um incipiente culto a Bolaño na China — espanta-se a curadora. — Me disseram que há uma livraria muito popular em Xangai chamada 2666.
O GLOBO
Nenhum comentário:
Postar um comentário