quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Roberto Bolaño / Discurso de Caracas

 

Roberto Bolaño


Roberto Bolaño

Discurso de Caracas

Tradução de Lucas de Sena Lima e Daniel Fernandes Vilela

Os detetives selvagens ganhou o prêmio Rômulo Gallegos de romance. Este discurso não é simplesmente algumas palavras de gratidão; ao contrário, com o humor e leveza que o caracteriza, Bolaño faz uma homenagem a sua geração, aquela que aposta a vida à uma causa mal-aventurada.

Outubro de 1999

Sempre tive um problema com a Venezuela. Um problema infantil, fruto de minha educação desordenada, um problema mínimo mas problema após problema. O cerne deste problema é de índole verbal e geográfica. Também é provável que se deva a uma espécie de dislexia não diagnosticada.

Não quero dizer com isso que minha mãe não me levava nunca ao médico, ao contrário, até os dez anos fui um assíduo visitante de consultas e até de hospitais, mas a partir de então minha mãe creu que eu era forte o suficiente para aguentar tudo. Entretanto, voltemos ao problema. Quando era pequeno, jogava futebol. Meu número era o 11, o número de Pepe e Zagalo no mundial da Suécia, e fui um jogador entusiasmado, mas bastante ruim, já que minha perna boa era a esquerda e se supõe que os canhotos não decepcionam numa partida. No meu caso, isso não era certo e eu decepcionava quase sempre, embora, de vez em quando, uma vez a cada seis meses, por exemplo, fazia uma ótima partida e recobrava uma parte, ao menos, do crédito perdido. Pelas noites, como é natural, antes de dormir, pensava e dava voltas a me lamentar a condição de jogador de futebol. E foi então quando tive o primeiro pressentimento quanto a minha dislexia. Eu chutava com a perna esquerda, mas escrevia com a direita. Isso era um fato. Teria gostado de escrever com a esquerda, mas fazia-o com a direita. E aí estava o problema. Por exemplo, quando o técnico dizia: venha para o seu lado direito, Bolaño, eu não sabia para que lado teria que passar a bola. E outras vezes, inclusive, jogando pela ponta esquerda, diante da voz rouca de meu treinador eu me parava e tinha que pensar: esquerda-direita. Direita era o campo de futebol, esquerda era chutar para fora: havia poucos espectadores, crianças como eu, que rodeavam os miseráveis gramados dos campos de futebol de Quilpué, o de Cauquenes, o da província de Bio-Bio. Com o tempo, supostamente, aprendi a ter uma referência cada vez que me perguntavam ou me informavam de uma rua que estava à direita ou à esquerda, e essa referência foi a mão com que escrevo, se não o pé com que eu chuto a bola. E com a Venezuala tive, mais ou menos pelas mesmas épocas, ou seja, até ontem mesmo, um problema parecido. O problema era sua capital. Para mim, o mais lógico era que a capital da Venezuela fosse Bogotá. E a capital da Colômbia, Caracas.

Por quê? Pois então, uma lógica verbal ou uma lógica das letras. A letra v do nome Venezuela é similar, para não dizer familiar, ao b de Bogotá. E o c de Colômbia é primo e irmão da letra c de Caracas. Isto parece intransigente e provavelmente o é, mas para mim se constituiu em um problema de primeira ordem, chegando em certa ocasião, no México, durante uma conferência sobre poetas urbanos da Colômbia, a falar da potência dos poetas de Caracas, e a gente, gente tão amável e educada como vocês, caiu calada a espera de que depois da fala sobre os poetas caraquenhos, passasse a falar dos poetas bogotanos, mas o que fiz foi seguir falando dos poetas caraquenhos, de sua estética da destruição, e inclusa a comparação com os futuristas italianos, resguardando as distâncias, é claro, e com os primeiros letrados, o grupo de Isidore Isou e Maurice Lemaître, o grupo de onde sairia o germe do situacionismo de Guy Debord e a gente que a essas alturas começou a fazer adivinhações. Não creio que pensavam que os bogotanos haviam migrado em massa para Caracas, já que os caraquenhos tiveram um papel determinante neste grupo de novos poetas bogotanos. Tanto que quando dei a conferência por terminada, com um final abrupto, tal como eu então gostava de acabar qualquer conferência, as pessoas se levantaram, aplaudiram timidamente e marcharam correndo para consultar o cartaz na entrada, e quando eu saí, acompanhado do poeta mexicano Mario Santiago, que sempre ia comigo e que seguramente se deu conta do meu erro embora não tenha me contado: para Mario os erros, os garranchos e os equívocos eram como as nuvens de Baudelaire que passam pelo céu, sabe que deve olhá-las, mas não corrigi-las. Ao sair, dizia, nos encontramos com um velho poeta venezuelano, e quando digo velho relembro esse momento e o poeta venezuelano mais jovem do que vou agora, que nos deixou com lágrimas nos olhos dizendo que devia haver um erro, que ele jamais havia ouvido nem uma palavra sobre esses poetas misteriosos de Caracas.

A esta altura do discurso, pressinto que Dom Rômulo deve estar revirando-se em sua tumba. Mas a quem deram o meu prêmio, estará pensando. Desculpe-me, Dom Rômulo. Mas é que inclusive Dona Bárbara, com b, suena a Venezuela e Bogotá, e também Bolívar suena a Venezuela e a Dona Bárbara; Bolívar e Bárbara, que bela dupla formariam, ainda que os outros dois romances de Dom Rômulo, Cantaclaro e Canaima, poderiam perfeitamente serem colombianas, o que me leva a pensar que talvez o sejam, e que sob minha dislexia se esconda um método semiótico bastardo, ou grafológico, ou metassintático, ou fonemático, ou simplesmente um método poético, e que a verdade das verdades é que Caracas é a capital da Venezuela, da mesma maneira que Bolívar, que é venezuelano, morreu na Colômbia, que também é Venezuela e México e Chile. Não sei se entendem aonde quero chegar. Pobre negro, por exemplo, de Dom Rômulo, é um romance eminentemente peruano. La casa Verde, de Vargas Llosa, é um romance colombiano-venezuelano. Terra nostra, de Fuentes, é um romance argentino e advirto que mais não me perguntem em que baseio esta afirmação porque a resposta será prolixa e fastidiosa. A academia patafísica ensina, de forma por demais misteriosa, a ciência das soluções imaginárias que é, como sabem, aquela que estuda as leis que regulam as exceções. E este sobressalto de letras, de alguma maneira, é uma solução imaginária que exige uma solução imaginária. Mas voltemos a Dom Rômulo antes de enfiar-nos em Jarry e notemos, de passagem, alguns estranhos sinais. Eu acabo de ganhar o décimo-primeiro prêmio Rômulo Gallegos. O 11. Eu jogava com o 11 na camisa. Isto, a vocês, parece uma casualidade, mas a mim me deixa trêmulo. O 11 que não sabia distinguir a esquerda da direita e que portanto confundia Caracas com Bogotá, acaba de ganhar (e aproveito este parêntese para agradecer mais uma vez ao jurado desta distinção, principalmente Ángeles Mastretta) o décimo-primeiro prêmio Rômulo Gallegos. Que pensaria Dom Rômulo disto? Outro dia, falando por telefone, Pere Gimferrer, que é um grande poeta e que além do mais sabe tudo e já leu tudo sobre ele, me disse que há duas placas comemorativas em Barcelona, nas casas onde viveu Dom Rômulo. Segundo Gimferrer, ainda que não tenha posto as mãos no fogo sobre o assunto, emuma destas casas o grande escritor venezuelano começou a escrever Canaima. A verdade é que 99,9% das coisas que Gimferrer disse, me jurou de pés juntos, e então, enquanto Gimferre falava (uma das casas em que havia uma placa não era uma casa, e sim um banco, o que plantava uma série de dúvidas, por exemplo se Dom Rômulo em sua estância em Barcelona — e digo estância, e não exílio, porque um latino-americano jamais está exilado na Espanha — havia trabalhado em um banco ou se o banco veio depois instalar-se na casa onde viveu o romancista), como dizia, enquanto o poeta catalão falava, eu me pus a pensar em minha já distante, mas não por isto menos desgastantes, sobre tudo que há na memória, passeios pelo Ensanche, e me vi outra vez ali, aos trancos em 1977, 1978, talvez 1982, e de repente acreditei ver rua ao entardecer, perto de Muntaner, e vi um número, vi o número 11 e logo caminhei um pouco mais, uns passos mais, e ali estava a placa. Isto é o que vi mentalmente. Mas também é provável que nos anos que vivi em Barcelona passei por esta rua, e vi a placa, uma placa que possivelmente dizia Aquí viveu Rômulo Gallegos, romancista e político, nascido em Caracas em 1884 e falecido em Caracas em 1969 e depois, em letras menores, outras coisas, os livros, os prêmios, etc., e é possível, que eu pensasse, sem deter-me: outro escritor colombiano famoso, e e isto só é possível que eu pensasse se eu não me detivesse, insisto, pois a verdade é que então já havia lido algo de Dom Rômulo como leitura obrigatória não sei se em um liceu chileno ou em uma escola mexicana e gostei de Dona Bárbara, ainda que segundo Gimferrer Canaima seja melhor, e, é claro, sabia que Dom Rômulo era venezuelano e não colombiano. O que realmente significa pouco, ser colombiano ou ser venezuelano, e neste ponto voltamos de rebote como um raio ao b de Bolívar, que não era dislexo e ao que não desgostaria ver uma América Latina unida, um gosto que compartilho com o Libertador, pois a mim dá no mesmo que digam que sou chileno, ainda que alguns colegas chilenos prefiram ver-me como mexicano, ou que digam que sou mexicano, ainda que alguns amigos mexicanos preferem considerar que sou espanhol, ou, plenamente, desaparecido em combate, e inclusive a mesma coisa que me chamem espanhol, ainda que alguns colegas espanhóis gritem aos céus e a partir de agora digam que sou venezuelano, nascido em Caracas ou Bogotá, coisa que muito menos me desgosta, muito pelo contrário. O certo é que sou chileno e também sou muitas outras coisas.


E neste momento eu tenho que abandonar Jarry e Bolívar e tentar lembrar daquele escritor que dizia que a pátria de um escritor é a sua língua. Eu não me lembro o nome dele. Talvez tenha sido um escritor que escreveu em espanhol. Talvez tenha sido um escritor que escreveu em Inglês ou Francês. A pátria de um escritor, disse ele, é a sua língua. Parece um pouco demagógico, mas concordo plenamente com ele, e eu sei que às vezes não temos outro remédio, a não ser sermos demagógicos, e às vezes não temos escolha senão a dançar um bolero à luz de uma lanterna ou uma lua vermelha. Embora seja verdade que a pátria de um escritor não é a sua língua, não apenas a sua língua, mas as pessoas que queremos bem. E às vezes a pátria de um escritor não são as pessoas, mas a sua memória. E às vezes a única casa do escritor é a sua lealdade e seu valor. De fato, muitas podem ser as pátrias de um escritor, e às vezes a identidade desta pátria pode ser a terra natal do escritor, por vezes, a identidade deste país depende muito do que se está escrevendo naquele momento. Muitos podem ser os países de origem, ocorre-me agora, mas há apenas um passaporte e o passaporte é obviamente a qualidade da escrita. Isso não significa escrever bem, porque isso qualquer um pode fazer, mas escrever maravilhosamente bem, e nem sequer isto, pois escrever maravilhosamente bem também qualquer um pode. Então o que é uma escritura de qualidade? Pois, o que sempre foi: saber enfiar a a cabeça no escuro, saber pular no vazio, ou seja, saber que a literatura é basicamente um ofício perigoso. Correndo ao longo da borda do precipício: de um lado o abismo sem fundo, e do outro todas as faces que você quer, os rostos sorridentes que você quer, e livros, e amigos, e os alimentos. E aceitar esta evidência, ainda que às vezes nos pese mais que o sepulcro que cobre os restos de todos os escritores mortos. Literatura, como diria o folclore andaluz, é um perigo.

E agora volto, por fim, sobre o número 11, que é o número dos que correm por fora, e já que mencionei o pergio, me lembro daquele capítulo do Quixote onde se discute sobre os méritos da milícia e da poesia, e suponho que o fundo do que se está discutindo é sobre o grau de perigo que também é falar que envolve a natureza de ambos os ofícios. E Cervantes, que foi um soldado, faz o militar ganhar, faz o soldado ganhar ante o honroso ofício de poeta, e se lemos estas páginas bem (algo que agora, enquanto escrevo este discurso, eu não faço, apesar estar vendo da mesa onde escrevo as minhas duas edições de Don Quixote) percebemos nelas um forte aroma de melancolia, porque Cervantes ganha sua própria juventude, o fantasma de sua juventude perdida, diante da realidade do seu exercício de prosa e poesia, até então adversas. E isto me vem à cabeça porque em grande medida tudo o que escrevi é uma carta de amor ou de despedida à minha própria geração, aos que nascíamos na década de cinquenta e os que preferimos emum momento dado o exercício da milícia, neste caso seria mais correto dizer a militância, e entregamos o pouco que tínhamos, o muito que tínhamos, que era nossa juventude, a uma causa em que acreditávamos a mais generosa das causas do mundo, e que de certa forma o era, mas que na realidade não era.

Seria demais dizer que lutamos com unhas e dentes, mas tivemos líderes corruptos, covardes, uma máquina de propaganda que foi pior do que um leprosário, lutamos por partidos que por terem vencido nos mandaram de imediato a um campo de trabalhos forçados, lutamos e pusemos todas a nossa generosidade em um ideal que há mais de cinqüenta anos que estava morto, e alguns já sabíamos, e como nós não saberíamos se lemos Trótski ou éramos trotskistas, mas não fizemos igual, porque fomos estúpidos e generosos, como são os jovens, que tudo dão e não pedem nada em troca, e agora destes jovens não sobrou nada, os que não morreram na Bolívia foram mortos na Argentina ou no Peru, e aqueles que sobreviveram foram morrer no Chile ou no México, e aos que não mataram lá, mataram depois na Nicarágua, na Colômbia, em El Salvador. Toda a América Latina está semeada com os ossos destes jovens esquecidos. E essa é a mola que move a Cervantes para escolher os militares em descrédito da poesia. Seus companheiros também estavam mortos. Ou velhos e abandonados, na miséria e na indiferença. Escolher era escolher a juventude e escolher os derrotados e os que não tinham nada. E isso faz Cervantes, escolhe a juventude. E mesmo nesta debilidade melancólica, neste vazio da alma, Cervantes é o mais lúcido, pois ele sabe que os escritores não precisavam de ninguém para lhes exaltar o ofício. Nós nos exaltamos a nós mesmos. Muitas vezes a nossa forma de exaltação é maldizer o momento em que decidimos ser escritores, mas no geral aplaudimos e dançamos quando estamos sozinhos, porque este é um ofício solitário, e recitamos a nós mesmos nossas páginas, que é a forma de nos exaltarmos, e não precisamos que ninguém nos diga o que precisamos fazer e muito menos que após um levantamento o nosso ofício é eleito o mais honroso de todos. Cervantes, que não era disléxico, mas que o exercício da milícia deixou aleijado, sabia perfeitamente o que dizia. Literatura é um ofício perigoso. O que nos leva diretamente ao Alfred Jarry, que tinha uma arma e gostava de disparar, e ao número 11, do lado esquerdo, olhando de lado enquanto passa como uma bala a placa e a casa onde morou Dom Rômulo, que a esta altura do discurso já não está tão zangado comigo, nem vai aparecer em sonhos a Domingo Miliani para perguntar por que eles me deram o prêmio que leva seu nome, um prêmio muito importante para mim, eu sou o primeiro chileno a obtê-lo, um prêmio que dobra o desafio, se isso for possível, se o desafio pela sua própria natureza, em prol da sua própria virtude, não foi anteriormente dobrado ou triplicado. Um prêmio, segundo este, seria um ato gratuito e agora que eu o penso, penso que é verdade, algo tem de ato gratuito. É um ato gratuito de não falar sobre o meu romance ou os seus méritos, mas da generosidade de um júri. (A propósito: até ontem não sabia de nada). Devemos ser claros, porque, como os veteranos de Lepanto, em Cervantes, e como os veteranos das guerras floridas na América Latina, minha única riqueza é a minha honra. Eu leio e não creio. Eu falando de honra. Pode ser que o espírito de Dom Rômulo apareça no domingo não a Miliani, mas a mim. Estas palavras são escritas em Caracas (Venezuela) e uma coisa é clara: Dom Rômulo não pode me aparecer em sonhos, pela simples razão de que eu não consigo dormir. Lá fora os grilos cantam. Calculo, de uma olhada, que sejam cerca de dez mil ou vinte mil. O canto de um desses grilos é, talvez, a voz de Dom Rômulo, confuso, ditosamente confuso, na noite venezuelana, na noite americana, na noite de todos nós, aqueles que dormem e aqueles que não conseguem dormir. Eu me sinto como Pinóquio.

LETRAS LIBRES

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